Graves problemas causados por embalagens do refrigerante mais conhecido do planeta mostram que riscos não estão só em tomá-lo
É atual e não é “mito”: desde 24 de janeiro deste ano, a Coca-Cola Indústria Ltda. e a Spal Indústria Brasileira de Bebidas S.A. devem dinheiro pela venda de refrigerante impróprio para o consumo. A dívida é com Erilda Silva Faria, moradora do pequeno município mineiro de Formiga, que fica a 196 km da capital Belo Horizonte, e onde residem 68.423 pessoas. Em 2015, a consumidora foi a um mercado da cidade para comprar uma garrafa da bebida açucarada campeã mundial de vendas. Saiu de lá com mais do que o líquido açucarado na embalagem. E, infelizmente, não era uma promoção. Nada de “pague um, leve dois”. Já em casa, ela percebeu um “corpo estranho” no recipiente. Algo parecido com um “rato”.
Havia testemunhas. Erilda afirma que buscou, diversas vezes, solucionar o problema administrativamente, em contatos com as empresas, mas “somente obteve respostas vagas e protelatórias”. Decidiu entrar na Justiça. Pediu a condenação das fabricantes ao pagamento de indenização por danos morais, negada em primeira instância. Não desistiu e seguiu no enfrentamento contra a megacorporação, com um apelo ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG).
Os advogados da consumidora, Thiago e Thomaz Muniz Oliveira, alegaram, no recurso, que, ao permitirem a comercialização de um produto em tais condições, as empresas colocaram em risco a saúde e a segurança da família e mesmo da população. O argumento pela indenização também reforçou o surgimento de “abalos psicológicos”, já que a cliente alega que, ao se deparar com qualquer tipo de refrigerante, “tem sensações de náusea e repugnância”.
Para a 13ª Câmara Cível do TJ-MG, ficou evidente que o refrigerante possuía defeitos de fabricação, o que caracteriza violação do dever de não causar riscos aos cidadãos, de acordo com o Código de Defesa do Consumidor (CDC). A sentença foi reformada e, as empresas, condenadas a pagar R$ 10 mil em caráter indenizatório.
O desembargador relator, José de Carvalho Barbosa, observou que o juiz de primeiro grau reconheceu a existência de defeito no produto, mas avaliou que a não ingestão da bebida fechava a brecha à indenização, apesar do “corpo estranho”. Barbosa entendeu diferente. “Entendo que a comercialização de produto alimentício contendo corpo estranho enseja dano moral, ainda que não tenha ocorrido a ingestão do conteúdo, não podendo os sentimentos de repugnância, nojo e repulsa vivenciados pelo consumidor serem considerados meros aborrecimentos. Não há como se possa admitir que encontrar um corpo estranho em produto alimentício seja fato corriqueiro, que configura mero dissabor a que todos estamos sujeitos a suportar no dia a dia”, enfatizou. Os desembargadores Newton Teixeira de Carvalho e Rogério Medeiros votaram de acordo com o relator, enquanto Alberto Henrique e Luiz Carlos Gomes da Mata se mostraram contrários.
“Não há como se possa admitir que encontrar um corpo estranho em produto alimentício seja fato corriqueiro, que configura mero dissabor a que todos estamos sujeitos a suportar no dia a dia”
Em nota, a assessoria de comunicação da Coca-Cola afirma que a empresa é “idônea” e que cumpre as decisões judiciais. Sobre o processo específico, a posição é de não se pronunciar a respeito de ações em andamento. Cabe recurso da decisão e a Coca já entrou com embargos de declaração, no último dia 29 de janeiro.
Corpos feridos
O caso da moradora de Formiga é grave, mas, creia, existem situações piores envolvendo a marca de refrigerantes. Vamos andar pelo tempo. Isso nos permitirá entender que os fatos não são tão isolados quando se trata de embalagens de Coca-Cola e “acidentes” de consumo.
Vinte de janeiro de 1995 é uma data inesquecível para Forlan Aparecido Bossoni. Não por boas lembranças. Naquele dia, o paranaense de Maringá manuseava dois engradados do refrigerante na mercearia do pai, Alceu, que recebeu os produtos minutos antes, do caminhão da empresa Rio Preto Refrigerantes S/A, ex-fabricante regional autorizada, que dispunha de tecnologia e dos concentrados (xaropes) da transnacional para produzir a famosa linha de bebidas. Tudo tranquilo, certo? Errado. Uma das garrafas de Coca KS de 290 ml explodiu, na altura do gargalo. Cacos de vidro voaram até tocar o rosto do rapaz e alguns estilhaços penetraram o olho direito. Aos 17 anos, ele estava cego de uma vista.
A família buscou o Judiciário. Longo caminho. Primeira, segunda e terceira instâncias. Os Bossoni ganharam em Maringá e no âmbito estadual. O Superior Tribunal de Justiça, em Brasília, seria a nova parada. Lá, houve tentativa de inversão do ônus da prova. A autorizada da Coca argumentou que cabia à vítima provar que a explosão da garrafa foi espontânea e que poderia haver “imperícia no manuseio do vasilhame”. A Sul América Seguros entrou no processo. Tinha contrato com a empresa de bebidas. O objetivo era evitar a reparação por danos involuntários, pessoais e/ou materiais causados a terceiros.
Veio a tentativa de rediscutir o tipo de dano pelo qual a Rio Preto foi condenada. A seguradora argumentava não ter ficado claro se era moral ou corporal. Se fosse considerado dano moral, a Sul América estaria livre da obrigação, pois a apólice não cobria essa classificação. Relator do caso, o ministro Carlos Alberto Menezes Direito afirmou que “houve o pedido de condenação tendo como causa de pedir o acidente que acarretou atrofia e perda de visão, com necessidade de prótese ocular (olho de vidro)”.
As empresas também questionaram um dos pontos da condenação, que determinou o pagamento de R$ 10 mil somente para despesas médicas e hospitalares futuras, cirurgia estética e implantação de prótese. O ministro-relator refutou e disse que as provas nos autos revelavam a necessidade de uma “prótese ocular devido à perfuração do globo ocular por caco de vidro, o que causou perda total da visão do olho direito sem possibilidade de recuperação, como atesta laudo médico”.
O corpo jurídico empresarial que representava os interesses da megacorporação de bebidas açucaradas havia engordado e, ao menos, esperava uma mudança na questão da indenização. Não deu. Perderam ambas, a Rio Preto Bebidas e a seguradora. Em novembro de 2000, o STJ manteve a decisão da Justiça estadual, favorável à vítima. Era a confirmação de que Forlan seria indenizado em 400 salários mínimos por danos estéticos e receberia pensão mensal correspondente a 40% do salário mínimo, incluído o décimo-terceiro, até a data em que completar 65 anos de idade (em 2042, totalizando 245 salários mínimos). A companhia de seguros foi condenada a ressarcir a Rio Preto a quantia paga ao consumidor até o limite da apólice.
A condenação se deu com base no Código de Defesa do Consumidor (CDC), artigo 12, segundo o qual o fabricante só não é responsabilizado nesses casos em três situações: se provar que não colocou o produto no mercado; que, mesmo tendo distribuído o produto no comércio, o defeito inexiste; ou que houve culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.
Nem saímos do Paraná e temos outro caso. Ocorrido, inclusive, poucos dias antes da explosão que cegou Forlan. Dezembro de 1994: Paulo Roberto da Costa Claro, de Curitiba, estava em Foz do Iguaçu, na casa dos sogros, para comemorar o Natal. Comprou refrigerantes num supermercado da cidade. Entre as garrafas, havia uma de 1250 ml de Coca Diet, que dilaceraria a celebração. A embalagem de vidro estourou no rosto de Paulo, no momento que ele a colocava num isopor com gelo. A festa virou drama e, ainda que a família tenha corrido em busca de socorro hospitalar, uma deformidade permanente na região mandibular inferior esquerda não pôde ser evitada.
O trajeto de Paulo Roberto, que era 2º tenente-médico do Exército, foi semelhante ao do comerciante Forlan. Passou pelo Poder Judiciário nos três graus. O método organizacional de protelação se repetia: a Spaipa S/A Indústria Brasileira de Bebidas, autorizada da Coca-Cola que colocou o produto perigoso no mercado em Foz do Iguaçu, também era assistida por uma seguradora no processo. Trazia a tiracolo a General Accident Companhia de Seguros.
Porém, também no ano 2000, a ação relatada pelo ministro Ruy Rosado de Aguiar, terminou com a condenação da empresa no STJ. Considerada culpada pelos ferimentos causados, a Spaipa teve de arcar com indenização de RS 30 mil.
Exemplos dramáticos no mesmo estado não impediram que a “grande marca” seguisse atrelada aos fabricantes locais que foram condenados. Muito pelo contrário. Em 2013, a Coca-Cola Femsa, franquia de peso da megacorporação na América Latina, anunciou a compra de 100% da Indústria Brasileira de Bebidas Spaipa, por US$ 1,85 bilhão. Com a aquisição, a companhia passou a atender a 66 milhões de consumidores no Brasil. A Spaipa (São Paulo e Paraná é o “nome” que a sigla tenta, com gosto duvidoso, representar) é, atualmente, a distribuidora dos produtos da marca em todo o Paraná e boa parte do estado de São Paulo.
Tudo em casa, dançando de rostinho colado, a outra causadora de ferimentos graves, a Rio Preto Refrigerante S/A, foi adquirida, em 1995, pela própria Spaipa. Ou seja, é “sempre” Coca-Cola.
Não bastam?
“Ah, mas esses casos são antigos”, dizem os fãs da Coca-Cola. Certo, se não bastam os feridos da década de 1990, daremos um salto no tempo. Entre 2011 e 2016 está de bom tamanho? Foi nesse período que Jorge Carlos Martins Zurdo, de Sorocaba, no interior de São Paulo, teve várias surpresas desagradáveis.
Em 2011, quando ainda cumpria a rotina de trabalho como balconista em um bar do município, recebeu, pela manhã, uma carga de bebidas, nas quais só encostaria outra vez no final da tarde, ao reabastecer um freezer de refrigerantes. Explosão, embalagem de vidro, reprise: Coca-Cola. Jorge foi atingido pela tampa de metal da garrafa no olho esquerdo, lado em que perdeu totalmente a visão. “Toda vez que vejo ou pego uma garrafa, vem o trauma. Lembro daquilo, que vai me acompanhar pela vida”, diz o hoje ex-balconista. Depois do incidente, ele ainda foi demitido do bar. Agora, vive de bicos e conta com a renda da esposa, que trabalha como diarista.
“Toda vez que vejo ou pego uma garrafa, vem o trauma. Lembro daquilo, que vai me acompanhar pela vida”
Jorge Carlos Zurdo acionou a Justiça e chegou a ter esperança de que a situação fosse resolvida logo. O laudo de perícia solicitado durante o processo confirmou a existência de risco de explosão no manuseio de garrafas de vidro com refrigerantes e deixou expresso que a Coca não instrui corretamente a manusear e armazenar o produto. “A forma como o produto foi armazenado no estabelecimento comercial e depois carregado até o freezer fez com que houvesse uma reação inesperada. A empresa não deixa claras as regras básicas de armazenamento e treinamento sobre o manuseio do produto em estabelecimentos comerciais”, descreve o documento.
A decisão de primeira instância, entretanto, veio apenas cinco anos depois, pelas mãos do juiz Pedro Luiz Alves de Carvalho, de Sorocaba. Publicada em 29 de fevereiro de 2016, definiu a indenização de R$ 17,6 mil por danos morais e estéticos contra a fabricante da Coca-Cola na região, a Sorocaba Refrescos S/A. Pouco, perto das perdas físicas e morais que Jorge Carlos sofreu. O valor se mostrava ainda mais inexpressivo se levados em conta os lucros literalmente bilionários da megacorporação, que tem no Brasil o quarto maior mercado do mundo.
Em nota, a Coca-Cola Brasil afirmou, à época da publicação da sentença, que a segurança das embalagens de vidro segue normas técnicas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Além disso, garantiu que os rótulos trazem as informações sobre os cuidados para manuseio do produto. A Sorocaba Refrescos informou que prestou assistência ao autor da ação.
Apesar da insignificância da quantia para a transnacional, era previsível o que viria a seguir. “Modo protelar” acionado, as empresas apelaram da sentença. O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) era o novo cenário. O que talvez elas não esperassem era que o acórdão saísse ainda em 2016, no dia 1 de dezembro. Nele, o relatório do desembargador Felipe Ferreira é contundente sobre as responsabilidades no acidente. “Verifica-se que não obstante as alegações da requerida de que o controle de qualidade realizado sobre o produto evita totalmente a ocorrência de acidentes da natureza deste noticiado nos autos, o laudo pericial atestou que, a depender das condições de manuseio e armazenamento dos engradados, é possível o estouro. E não há que se imputar a responsabilidade pelo ocorrido ao autor, eis que dos autos constatou-se que os engradados em questão eram armazenados ao lado do refrigerador, em temperatura ambiente, não destoando do que é usual aos comércios da mesma natureza. E a alegação da requerida no sentido de que orientava os comerciantes sobre a forma de armazenamento dos produtos, além de não restar cabalmente comprovada nos autos, não a isenta da culpa decorrente do acidente, especialmente considerando que tal orientação tinha como principal escopo evitar o perecimento dos produtos, e não a ocorrência de acidentes”, argumentou. Ele destacou, também, que trabalhadores do comércio ou consumidores não podem ser expostos ao risco de ter a integridade física prejudicada por fornecedores.
Assistido pela Justiça Gratuita, Zurdo teve a indenização aumentada para R$ 40 mil, metade por danos morais e outra parte por lesão física. Já a Sorocaba Refrescos, após os votos dos desembargadores Antonio Nascimento e Bonilha Filho, que acompanharam o relator, viu também os honorários advocatícios serem acrescidos, de 8% para 12% do valor da decisão, pagamento que também ficou a cargo da fábrica da Coca-Cola.
Dilema: de um lado, apesar de nenhum dinheiro ser suficiente para compensar o que José Carlos Martins Zurdo enfrentou e de a Coca poder pagar muito mais, a sentença expõe as falhas possíveis no processo de produção de um gigante do mercado de bebidas açucaradas e aponta riscos à saúde (entre tantos) pouco debatidos no tema comercialização de refrigerantes. Por outro, é óbvio que as corporações preferem pagar pequenas indenizações aqui e ali do que arcar com o ônus material (grana) e simbólico (imagem) de uma campanha de recall de produtos tão conhecidos.
Recall de refrigerantes? Sim, inclusive há previsão desse dispositivo no Código de Defesa do Consumidor, artigo 10, para qualquer produto que apresente defeitos ou vícios ocultos de fabricação. Além disso, pessoas cegas e deformadas, somadas a “corpos estranhos” misturados com bebidas esquisitas, deveriam ser mais do que suficientes, não?
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