Pioneiro em evidenciar que o excesso de líquidos pode matar até esportistas de alto rendimento e em mostrar a manipulação de pesquisas pelas corporações, Tim Noakes se tornou um dos maiores inimigos da indústria
A indústria do açúcar liga o alerta vermelho todas as vezes em que o nome de Timothy David Noakes é mencionado. A luz amarela, na verdade, pisca há tempos, a partir da década de 1980, quando o estudioso nascido no Zimbábue transformou a prática do esporte na África ao desafiar ideias balizadas por pesquisas duvidosas financiadas pelas corporações.
Com um trabalho junto a maratonistas na Universidade do Cabo, na África do Sul, Noakes investigou a hiponatremia, estado orgânico perigoso, causado pela ingestão de muito líquido antes e durante a atividade física. A pesquisa constatou que o excesso de hidratação diluía o nível de sódio no corpo. Resultado possível, nos casos mais graves: o inchaço do cérebro, o que pode causar convulsões e morte.
A história do exercício associado à hiponatremia começou a ser comentada por Tim Noakes na década de 1970, quando o cientista se dedicava à avaliação de um maratonista que corria os 89 quilômetros da Comrades Marathon (Maratona dos Camaradas, a mais tradicional da África do Sul). Naquele período, Noakes acompanhava o consenso científico de que o consumo de líquidos por corredores poderia ser livre, ou seja, os praticantes de corridas de longa distância (dentre os quais ele se inclui, com 70 provas disputadas) deveriam bebê-los à vontade.
Em 1981, no entanto, um telefonema e uma carta modificaram a visão e a vida de Noakes. Era Eleanor Sadler. Já uma senhora à época, a sul-africana corria anualmente a Maratona dos Camaradas e desmaiou durante a prova. Esteve em coma por quatro dias. Seguidora dos conselhos do fisiologista, ela questionava: “Fiz tudo certo, o que aconteceu?”.
“Eu não tinha absolutamente nenhuma ideia no momento. Tudo o que sabíamos era que a concentração de sódio no sangue dela era muito baixa. A questão era se tinha bebido demais, ou se tinha perdido muito sal, ou se era ainda uma combinação de ambos. Ao longo dos quatro anos seguintes, descobri que Eleanor tinha bebido demais. Eu percebi que, se nós disséssemos às pessoas que bebessem mais de 800 ml por hora, iríamos nos meter em problemas, particularmente com mulheres corredoras, que são menores e correm mais lentamente. Vi que haveria mortes e previ que seriam entre as mulheres que corriam maratonas”, relembra Noakes, hoje com 68 anos.
Tim começava a mexer num vespeiro. Desde 1969, um respeitado fisiologista estadunidense, David Costill, iniciou estudos quando o Gatorade entrou no mercado. Costill se dirigiu aos representantes da marca produzida pela PepsiCo (também fabricante do refrigerante Pepsi) e indagou sobre o funcionamento do produto. Além disso, avisou que o pesquisaria. O objetivo era levantar dinheiro para financiar um laboratório, na verdade, uma espécie de “chantagem” que a indústria resolveu bancar.
A pesquisa de David Costill concluiu que a bebida mantinha as temperaturas dos corpos dos corredores mais baixas e cravou que isso era adequado e melhor para o praticante de exercícios. Logo, o American College of Sports Medicine (ACSM) pediu ao pesquisador para escrever as primeiras diretrizes sobre o tema, o que ele fez em 1975, afirmando que os corredores deveriam beber regularmente durante a prática esportiva.
A influência de Costill aumentou no debate público, a ponto de trabalhos dele para os militares dos EUA determinarem que a reposição de líquidos era uma arma tática. Assim, se os membros das forças armadas bebessem mais durante as manobras, produziriam mais e melhor.
Tim Noakes reviu posições sobre o consumo de líquidos e despertou a preocupação da corporação.
“Era só uma ideia dele (Costill). Não tinha nenhuma base científica. Dois anos depois, ele publicou um artigo dizendo que, se os soldados dos EUA bebessem 1,9 litro por hora quando se exercitavam no calor, iriam executar as manobras muito melhor. Não havia evidência concreta de que isso fosse verdade. O problema é que o conselho foi abraçado pelos militares. Eles mudaram as diretrizes para dizer que você deveria beber 1,9 litro por hora”, explica Noakes.
A posição de Costill culminou, em 1996, com as novas diretrizes norte-americanas, que indicavam que uma pessoa deve tomar por hora tanto quanto aguentar durante o exercício. Isso se tornou um mantra. Ou seja, você tem de beber antes de ter sede. Foi depois disso, segundo o médico africano, que os problemas da hiponatremia se tornaram frequentes em todo o mundo.
Ter maratonistas e soldados portando garrafinhas de isotônicos é uma bela propaganda gratuita. Inspira pessoas a consumir mais líquido e também a comprar produtos com aura de bem-estar e aumento de produtividade. Ver isso referendado por órgãos governamentais, então, oficializa e contribui para a criação de um mito.
Tim Noakes, em 1986, já era o autor do livro Lore of Running (A Ciência da Corrida, disponível somente em inglês no Brasil), precedido pelo artigo científico “Água e Intoxicação: uma complicação possível durante a resistência do exercício”, considerado referência na área. Ele não aceitava os argumentos frágeis que faziam a indústria de bebidas isotônicas cheias de açúcar crescer aos bilhões em lucros. E, ainda que o American College of Sports Medicine mudasse as diretrizes em 2007, as divergências são persistentes.
Os estudos seguiram e o fisiologista passou a recomendar que corredores consumissem menos líquidos, entre 400 a 800 mililitros por hora, de água a isotônicos. Claro que, ali, marcas como a Gatorade já se incomodavam.
“Globalmente, são mais de 1,6 mil casos de hiponatremia documentados (entre corredores amadores) de intoxicação por líquidos desde 1981”
“A diretriz do ACSM que diz que não se deve perder mais de 2% de peso corporal durante o exercício é contrária às evidências científicas publicadas e as descobertas em atletas de elite que bebem antes de ter sede, tendo o desempenho prejudicado. ‘Beba a sede’, é o que aconselho, independentemente da quantidade de peso que você perca”, avisa o pesquisador.
O médico afirma que não existe nenhum caso de morte registrada por desidratação em maratonas. Por outro lado, dos anos 1980 para cá, ao menos 17 atletas morreram de hiponatremia. “Globalmente, são mais de 1,6 mil casos de hiponatremia documentados (entre corredores amadores) de intoxicação por líquidos desde 1981”, revela.
O aviso de Noakes é um alarde e tanto no mundo esportivo. Qualquer pessoa interessada em esporte sabe que se hidratar é importante durante sessões de exercícios. A questão é: quanto de líquido você deve ingerir?
A maratonista inglesa Kate Mori foi vítima do desconhecimento. Aconselhada desde sempre a se adiantar à sede, ela seguiu a orientação manipulada pelas corporações à risca na Maratona de Londres, em 2007. Bebeu em todos os pontos de hidratação possíveis, num total de 3,5 litros tomados no percurso de 42,195 quilômetros.
Próxima da linha de chegada, Kate se sentiu mal. Necessitou da ajuda de outros corredores para ficar de pé. Com diarreia grave, vômitos e confusão mental, deu entrada num hospital londrino. Além disso, em uma cena aterradora, as pernas da atleta se movimentavam involuntariamente, pareciam continuar correndo. Ela não estava desidratada, como pensaram colegas e treinadores ao socorrê-la. Ao contrário, havia ingerido líquidos demais. Hiponatremia.
A Maratona de Boston (EUA) foi palco de drama ainda maior. Em 2002, a médica estadunidense Cynthia Lucero, habitual corredora, decidiu disputar a prova para divulgar a Sociedade de Combate à Leucemia do estado de Massachussetts. A causa nobre não impediu o desfecho trágico. Ela desmaiou durante o trajeto. Morreu três dias depois. Inicialmente, os médicos suspeitaram de desidratação, mas o quadro clínico acabou fechando a causa-mortis como “ingestão excessiva de líquidos”.
Beba se tiver sede, mas cuidado
“Beba quando tiver sede”. A frase cunhada por Tim Noakes nos anos 1980 é ecoada nos dias de hoje por vários pesquisadores. A Universidade de Monash, na Austrália, fez um estudo que registrou, por meio de ressonância magnética, a atividade cerebral e o esforço de beber água em duas situações: com sede, após a prática de exercício físico, e sem sede, depois do consumo de grandes quantidades de água.
A investigação concluiu que o cérebro é dotado de mecanismos de defesa que se ativam quando tomamos líquidos em excesso. Os testes revelaram que pode surgir a sensação de “garganta fechada”, o que triplica o esforço para engolir.
“No estudo, verificamos o esforço que fazemos quando bebemos demais, o que significa que temos de superar algum tipo de resistência cerebral”, comenta Michael Farrell, coordenador da pesquisa.
Um grupo de pesquisas da Universidade de Oakland (EUA) publicou, em 2017, uma revisão atualizada a respeito de hiponatremia. E aumentou o volume do alarme: se na década de 1980 o problema afetava mais os atletas de triatlo, escalada e ultramaratona, foi observado que, nos últimos anos, houve aumento de casos em maratonas, esportes de equipe e até na yoga.
Nesse quadro, é impossível não falar das megacorporações e da influência delas no ato de “beber”. O Gatorade – que rende US$ 4 bilhões anuais à transnacional PepsiCo – é uma das marcas envolvidas em financiar e distorcer pesquisas de ciência do exercício para aumentar as vendas. Faz isso há quatro décadas, incitando pessoas a beberem mais do que precisam.
Somente após as pelo menos 17 mortes previsíveis por hiponatremia entre atletas, PepsiCo e ACSM (que se gaba de ter mais de 50 mil membros e profissionais certificados espalhados pelo planeta, e exibe, além da PepsiCo, a megaempresa de alimentos transgênicos Dupont entre os parceiros) finalmente admitiram, em 2015, a possibilidade de desfechos fatais por consumo exacerbado de líquidos A informação, no entanto, discutida em um webinário e num artigo restritos, com foco em atletas de futebol americano, chegou a pouca gente.
Um dos documentos da PepsiCo admite, na última linha, a possibilidade de intoxicação e morte
Era uma reação tímida à atuação de Noakes. Com as pesquisas do fisiologista em alta, o rastro de parte dos ganhos da PepsiCo com o Gatorade foi mostrado. Parcela dos lucros bilionários derivados do produto são enviados a parceiros em ciência do exercício, como o American College of Sports Medicine, a National Association of Strength and Conditioning e a National Athletic Trainer’s Association, todas dos Estados Unidos.
A PepsiCo deixou de manter a retranca sobre o assunto e abriu o jogo de interesses nos EUA, inclusive confessando a intenção de “identificar maneiras de educar para o Gatorade agregar valor junto ao importante grupo influenciador (de treinadores)”. O texto diz, ainda, que parcerias com sociedades científicas devem se dar em colaboração com o marketing esportivo. “Trabalhemos em estreita colaboração com a equipe de marketing esportivo sobre estratégia e execução para influenciadores de ciências e a tradução para grupos de profissionais. Colaboremos nos esforços com organizações parceiras importantes e em conferências-chave, incluindo o ACSM, entre outras”, expõe o conteúdo.
Larry Armstrong, presidente do próprio ACSM entre 2000 e 2015, admitiu ao Wall Street Journal que o financiamento da Gatorade “afeta a objetividade científica das pesquisas”. Entretanto, a parceria e os dólares da PepsiCo continuaram a entrar no caixa da organização.
Carl Heneghan, pesquisador da Universidade de Oxford, do Reino Unido, estudou especificamente os isotônicos Gatorade e Powerade. Ele argumenta que as bebidas esportivas diferem dos refrigerantes em apenas um elemento: a inexistência de gás. “Os fabricantes afirmam que as bebidas esportivas, como o Gatorade ou o Powerade, contêm eletrólitos, frutose e sacarose, mas, na essência, isso tudo se resume a sal e açúcar”, ressalta Heneghan.
As coincidências entre isotônicos e refrigerantes não se restringem aos compostos de sal e açúcar na África do Sul. As bebidas gaseificadas também toparam com um sólido muro de contestações. O nome do obstáculo é o mesmo que colidiu com os isotônicos: Tim Noakes.
Esta história tem outros capítulos pela frente.
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A teia no Brasil
No Brasil, o Gatorade é apoiador declarado do Centro de Estudos do Laboratório de Aptidão Física de São Caetano do Sul (Celafiscs), organização encabeçada por um dos nomes mais influentes da área de ciências do esporte na América Latina, o médico ortopedista Victor Matsudo. A entidade abriga o programa “Agita São Paulo”, que possui várias parcerias com órgãos públicos país afora e sustenta o discurso de que o sedentarismo (e o cidadão sedentário, portanto) é o maior vilão da saúde brasileira, deixando de lado o impacto negativo da má alimentação vendida e difundida pela indústria. Matsudo, aliás, trabalhou como consultor brasileiro da marca por muitos anos e é bastante ligado ao ACSM.
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Foto 1: Tim Noakes/Facebook
Foto 2: The Russells