Quando o alimento vira arma do preconceito

Fome e transtorno: o fascismo que nunca deixou de ascender sobre a população LGBTI  

Os domingos no bairro de Anfield, em Liverpool, na Inglaterra, costumam ter como grande atração as partidas do tradicional Liverpool FC, time 18 vezes campeão inglês e detentor de cinco títulos da Liga dos Campeões, principal torneio de futebol da Europa. Em 3 de setembro passado, porém, os “Reds” perderam as manchetes para uma denúncia do jornalista e ativista Josh Parry.

Repórter do Liverpool Echo, ele participava, em agosto, de um culto na igreja pentecostal Ministério da Montanha de Fogo e Milagres (Mountain of Fire and Miracles Ministry, em inglês), quando decidiu se revelar gay ao pastor assistente. Conhecido como “irmão Michael”, o religioso pediu a Josh que falasse em particular sobre a questão e o chamou para uma sessão individual. Nela, o clérigo propôs a realização de uma “terapia de libertação”, o que incluiria “passar fome por três dias para humilhar a alma”.

A homossexualidade seria “curada” por inanição, incluindo não beber água por 72 horas. Era um “tratamento de choque”, segundo as palavras do pastor. Josh Parry não poderia deixar a sede da igreja e receberia “treinamento” para associar a orientação sexual a uma experiência desagradável. Durante o aconselhamento, o jornalista ouviu que ser gay é “biologicamente errado”, mas que a “terapia poderia corrigi-lo para casar e ter filhos”.

“Uma vez que passei pela sessão privada de aconselhamento, ele me disse que ser gay é uma ‘mentira de Satanás’ e que pessoas gays e trans só perseguem a celebridade”, conta Josh.

Josh Parry conseguiu gravar a proposta de “cura” feita pelo pastor

Felizmente para o repórter, ele fazia parte de uma investigação jornalística e gravou a conversa. Mesmo com a comprovação em mãos, o pastor titular da igreja, Desmond Dele Sanusi, negou publicamente que a “terapia” tenha sido oferecida e alegou que a igreja “não discrimina a sexualidade de ninguém”.

Pausa rápida: Sanusi é descrito no site da igreja como um “erudito estudioso da bíblia, orador espiritual, ungido há muitos anos e fundamental para o desenvolvimento de muitas igrejas”. A página também destaca que ele é um “neurocirurgião reconhecido que publicou muitos artigos científicos e se apresentou em muitas reuniões científicas internacionais”.

 Três dias sem comer e beber: essa foi a proposta do pastor para “corrigir” Josh Parry

A reportagem de Parry resultou numa petição dirigida ao Parlamento inglês reivindicando a proibição das “curas gays” na Inglaterra. Com milhares de assinaturas, o documento despertou o debate público sobre o tema.

Um dos organizadores da campanha, o jornalista sabe bem que práticas como a que lhe foi oferecida têm potencial para capturar pessoas mais vulneráveis, que se não se sentem à vontade diante da própria sexualidade.

“Apenas dois anos atrás, eu estava lutando para chegar a um acordo com o fato de ser gay. E eu só ‘saí’ para os meus pais três semanas antes de minha investigação ser publicada, porque eu não queria que eles lessem pela primeira vez no Echo”, explica Josh, acrescentando que ficou aliviado quando percebeu que a revelação “não mudou absolutamente nada” na relação familiar.

Fachada da igreja Ministério da Montanha de Fogo e Milagres, em Liverpool, Inglaterra

Porém, ele avalia que outras pessoas cujos pais não aceitem a orientação sexual podem se sentir mais pressionadas a realizar essas “terapias”. “Ou porque os pais as forçam diretamente a isso, ou porque sabem que, provavelmente, serão rejeitados”, diz.

Reações

A petição repercutiu e foi apoiada por instituições psiquiátricas de peso do Reino Unido. Além disso, manifestantes protestaram contra a “cura gay” em várias cidades inglesas. A mobilização chegou às portas da igreja do Ministério da Montanha de Fogo e Milagres, em Liverpool, no mês de novembro.

Em apoio à campanha, parlamentares encamparam a causa e pressionaram o governo, que, inicialmente, emitiu resposta decepcionante, em uma nota oficial:

“O governo condena totalmente qualquer tentativa de tratar como doença a opção de ser gay, lésbica ou bissexual. No entanto, não acreditamos que criar uma lei seja o caminho certo a seguir”, destacava o texto, de janeiro deste ano. “Este governo está empenhado em combater a discriminação contra as pessoas LGBT. É por isso que já trabalhamos com os principais órgãos de registro e credenciamento de psicoterapeutas e profissionais de aconselhamento.”

Embora repelissem a prática no discurso, os representantes do Poder Executivo não estavam dispostos a dar o passo necessário para bani-la. Sem leis a respeito, a “terapia de conversão” ainda pode ser usada livremente no país.

As manifestações prosseguiram, contudo. E, em maio, o site Pink News teve acesso a uma pesquisa nacional feita pelo governo, que perguntava a pessoas LGBTI se elas realizaram a “terapia de conversão” ou se receberam propostas nesse sentido ao longo da vida.

“Isso nos ajudará a investigar quais etapas adicionais poderíamos dar para terminar com essa prática. Estamos analisando as respostas à pesquisa e publicaremos uma avaliação ainda este ano”, respondeu um porta-voz do governo.

Os resultados da escuta governamental são ansiosamente aguardados pela comunidade LGBTI, já que tornar ilegal a “cura gay” salvaria vidas, literalmente. De acordo com pesquisa da American Psycological Association, pessoas que passaram pela “terapia de conversão” possuem probabilidade seis vezes maior de ter depressão do que aqueles que não foram instados a “curar” a orientação sexual e nove vezes mais chances de suicídio. Eles também estão mais propensos a contrair doenças sexualmente transmissíveis.

Fome: arma política

O dia 8 de março de 1933 em Berlim foi atroz. Surgiam os primeiros campos de concentração nazistas da Alemanha. Considerada até então a capital europeia da liberdade sexual, a cidade se tornava palco de uma cruzada homofóbica. Soldados da Gestapo, a polícia política de Hitler, invadiam pontos de encontro de gays e lésbicas, os arrastando para a detenção, seguida, invariavelmente, de assassinato. Entre as muitas formas perversas de matar os reféns nos campos de horror nazistas, a inanição era uma das mais utilizadas contra os homossexuais.

“Os homossexuais eram torturados e morriam lentamente, de fome ou por excesso de trabalho”

Preso no campo de concentração de Sachsenhausen por ser homossexual, o médico e escritor alemão Classen von Neudegg sobreviveu ao Holocausto e publicou – na revista alemã Humanitas, da cidade de Hamburgo – uma série de artigos explicando os horrores que vivenciou.

“Os homossexuais eram torturados e morriam lentamente, de fome ou por excesso de trabalho. Tudo, com uma crueldade inimaginável”, aponta um dos relatos.

Mas isso ficou para trás, em 1945, fim da Segunda Guerra Mundial, você pensa. Eu também. Até ler sobre os homossexuais presos durante o pogrom (ataque em massa contra uma minoria, com a intenção de eliminá-la), realizado em abril do ano passado, na Chechênia, região da Rússia (país que recebe a Copa do Mundo ainda este mês, sob denúncias de repressão e discriminação, é bom lembrar).

Lá, agentes do governo se infiltraram em redes sociais e salas de bate-papo digitais usadas por homossexuais com o objetivo de criar emboscadas e aplicar um “castigo coletivo” a gays chechenos. A operação macabra teve início após a ordem de Ramzan Kadyrov, líder regional bancado pelo governo do presidente russo Vladimir Putin.

O jornal checheno Novaya foi o primeiro a relatar a existência dos pogroms, informando que pelo menos 100 homens gays haviam sido presos, sendo três mortos, nas batidas policiais, o que foi confirmado pela ONG internacional Human Rights Watch.

A “limpeza profilática” de homossexuais, como diziam os agentes de segurança durante as prisões e torturas, foi praticada por períodos que variaram de um dia a várias semanas, segundo a organização de direitos humanos.

Alguns “retornaram para as famílias quase mortos por causa dos espancamentos e fome”, comenta Tanya Lokshina, diretora da divisão russa da ONG.

As autoridades chechenas reforçaram o cenário de terror ao comentar a denúncia. Em entrevista ao repórter Andrew Kramer, do The New York Times, o porta-voz do governo checheno Alvi Karimov afirmou que os relatos de pogroms antigay certamente eram falsos, porque “não há homens gays na Chechênia”.

“Em Grozny (capital da Chechênia), alguma vez, você já percebeu alguma pessoa que, por sua aparência ou seu modo de agir, pareça ser alguém com uma orientação errada (sic)? Desenvolve-se uma política pública (sic) para se resolver um problema. Eu posso afirmar oficialmente que não há qualquer política pública desse tipo, porque esse problema não existe. Se houvesse um problema, existiria uma política pública como essa”, enfatizou Karimov.

Transtornos da discriminação

A discriminação às pessoas LGBTI tem potencial de impor situações de exclusão social e pobreza, tendo a fome como uma das principais e mais sérias consequências. O diagnóstico é do Subcomitê sobre Prevenção da Tortura e outros Tratamentos ou Punições Cruéis, Desumanas ou Degradantes da Organização das Nações Unidas (ONU) e foi divulgado em comunicado oficial no mês passado.

“A discriminação contra as pessoas LGBTI alimenta a espiral de violência a que elas estão sujeitas diariamente e cria um ambiente favorável à exclusão de oportunidades em todas as facetas da vida, incluindo educação e participação política e cívica, contribuindo para a instabilidade econômica, a falta de moradia e a saúde debilitada”, aponta o pronunciamento.

Andreia Torres, PhD em comunicação e saúde, revela outras preocupações com a população LGBTI além da fome causada pela pobreza. Ela cita estudos que mostram que cerca de 15% dos homens homossexuais e bissexuais lutam contra alguma forma de transtorno alimentar.

“Alguns podem sentir-se pressionados a alcançar um físico mais magro e musculoso. Além dos ideais estéticos, outros fatores podem contribuir para o desenvolvimento de transtornos alimentares nesta população”, observa.

Desses fatores, Andreia ressalta o medo da rejeição, a internalização de mensagens negativas sobre o próprio corpo ou sobre a identidade de gênero, experiências de violência ou estresse pós-traumático, discriminação e bullying, insegurança física ou emocional, e falta de suporte familiar ou isolamento.

Pesquisa realizada este ano pelo National Eating Disorders Association e pelo Reasons Eating Desorder Center (instituições estadunidenses que promovem discussões sobre transtornos alimentares) demonstrou que 54% dos jovens LGBTI dos Estados Unidos já tiveram algum tipo de transtorno alimentar, como bulimia e anorexia, dentre outros distúrbios ligados à preocupação excessiva com aparência física. Desse dado, extraiu-se outro, ainda mais grave: 88% dos que enfrentaram alguma desordem relacionada a alimentos tentaram suicídio uma vez ou mais.

“Os resultados deixam claro que o número de LGBTI’s jovens afetados pelos transtornos alimentares é expressivamente maior do que a média do restante da população”, conclui o trabalho.

Brasil

O relatório anual do Grupo Gay da Bahia (CGB), o mais antigo grupo militante da causa no Brasil, aponta crescimento de suicídios no conjunto das mortes causadas pela homotransfobia.

Em 2017, além de 387 homicídios – número que torna o Brasil o líder mundial em assassinatos de pessoas LGBTI –,  o trabalho de pesquisa do GGB registrou a ocorrência de 58 suicídios, sendo 33 gays, 15 lésbicas, 7 trans e 3 bissexuais. Alguns deixaram cartas denunciando o sofrimento causado pela homotransexualidade,

O cientista social Eduardo Michels, responsável  pelos levantamentos do GGB, confirma que a maioria das vítimas é composta por garotos jovens e pobres.

 

Sete bate-papos cabeçudos (e descontraídos) sobre alimentação

Foto de capa: Wikimedia Commons

Foto 1: Twitter de Josh Parry

Foto 2: Liverpool Echo

 

Por Moriti Neto

É editor e repórter. De preferência, repórter.

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