A publicidade infantil do Felipe Neto não te incomoda, mas o voto do youtuber é um problema

Preconceito e consumismo estavam liberados, até que o “amigo” do seu filho divergiu de você      

Dentre os melhores amigos do seu filho, um é vizinho de parede. Bastam alguns passos e os moleques se encontram no portão. Dia, sim. Outro, também. Você conhece bem a família do garoto que não desgruda do seu e não liga para o fato de que os dois se enchem de refrigerantes, balas e pirulitos quando estão juntos, o que, como já se viu, não é raro.

Também não se importa com o consumismo incentivado pelo pai do coleguinha. Nem mesmo se incomoda com as piadas preconceituosas do tio do menino que aparece aos finais de semana para churrascos, mesmo que seu rebento as repita em alto e bom som, sem compreender o racismo, o machismo e a homofobia contidos nelas.

Eis que não mais do que de repente, anos de amizade transcorridos, e você proíbe a relação. Por quê? Porque é época de eleição. Ânimos exaltados, o pai do amiguinho, surpreendentemente, discorda do cunhado e rebate as já conhecidas piadas homofóbicas, num dia de churrascão.

“Você tem que educar seu filho para que ele tenha a mente aberta, não condenatória, não punitiva, não vingativa. Você tem obrigação de fazer com que seu filho seja uma pessoa decente”, diz o pai.

A amizade até então tolerada, apesar do excesso de açúcar, do estímulo ao consumismo e das piadas sem noção, rolava solta e sem problema, mas, depois dessa, não dá mais.

Os argumentos do pai-vizinho te irritam. Você tinha certeza de que ele assinaria embaixo os discursos do seu candidato a presidente, agora eleito, e se surpreende quando a declaração vem em oposição.

Essa história não é real, mas tem muitos pontos de conexão com uma situação incômoda de fato. O “você” é um sujeito genérico, mas o “vizinho” existe, disse as palavras sobre “mente aberta e não punitiva” e tem quase 28 milhões de seguidores no Youtube. O nome: Felipe Neto.

“Você” escolhe os motivos

Poucos minutos assistindo aos vídeos de um dos youtubers mais seguidos do Brasil, principalmente por crianças e adolescentes, são suficientes para perder a paciência. Felipe empurra, a cada cinco minutos (em gravações que duram entre 15 e 20), algum produto à vulnerável audiência. Ingressos para as apresentações que realiza, o “livro” que escreveu, vendas casadas, tudo é motivo de publicidade. Vira e mexe, come algo cheio de açúcar e corantes, e diz aos fãs o quanto é bom, embora o perito nessa questão seja o irmão, Lucas.

Esse conjunto expõe a molecada à publicidade infantil. Uma resolução do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) sugere a proibição da exposição de menores de 12 anos a comunicação mercadológica, amparada na Constituição Federal, no Código de Defesa do Consumidor (CDC) e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Porém, um dos  vídeos mais acessados de Felipe, intitulado  “O que eu comprei na Disney com 18 mil reais”, é um hiper-estímulo ao consumismo e não leva em consideração que grande parte do público que o acompanha nem imagina o que é ter em mãos tal quantia em dinheiro para gastar numa aventura de um só dia. Talvez, nem em um ano. Ou em dez.

Um evento no mês de abril resume as mensagens consumistas de Neto: convidado pela Associação dos Supermercados do Estado do Rio de Janeiro (Asserj) para dar uma palestra cujo tema era “Lugar de criança é no supermercado”, o youtuber falou a empresários sobre estratégias de aproximação com o público infantil. Ou seja, ele estava lá para “ensinar” a homens de negócios de um dos principais ramos do varejo quais os melhores critérios para expor, ainda mais, crianças e adolescentes à publicidade.

Rapidamente, o Movimento da Infância Livre de Consumismo (Milc) reagiu: “Lugar de criança pode até ser no supermercado, mas ao lado dos pais aprendendo a comprar comida de verdade e sabendo o que, de fato, vale a pena botar no carrinho, sem ceder aos apelos consumistas!”

Além disso, há bullying nos conteúdos veiculados. Um rapaz acima do peso é alvo das piadas preconceituosas de Felipe frequentemente.  Termos como “retardado”, “burro” e “idiota” são usados recorrentemente nesse e em outros vídeos.  “Macumbeiro” também surge como xingamento. Os seguidores de religiões de matrizes africanas parecem não merecer respeito por parte do youtuber.

Pouco antes das eleições, em setembro, Felipe lançou um vídeo “tentando adivinhar quem nasceu homem ou mulher”.  Imagens de pessoas saltam na tela no que o influenciador digital batizou de “teste de conhecimento”. Um texto de abertura avisa que a “brincadeira” trata apenas de “sexo biológico”.

Ao público, majoritariamente jovem, não fica nítida qual a intenção. O youtuber menciona “gênero de nascimento das pessoas”, o que só causa mais confusão. Ainda assim, ele tenta definir quem parece a ou b, x ou y. Há trechos em que as reações do apresentador vêm com comentários como: “Se for um homem, eu vou ficar bolado, porque eu achei atraente”. Ou: “Parece um homem que tem pepeca”.

O ativista trans Lucca Najar, também youtuber, publicou, no mesmo mês, uma resposta ao vídeo de Neto e explicou como a “brincadeira” afeta gravemente as vidas de pessoas “reais”:

“Eu estou há dois anos aqui no YouTube tentando desconstruir exatamente isso que você [Felipe] chama de sexo biológico. Se você entrar em qualquer vídeo meu aqui do canal, você vai ver vários comentários falando que eu nasci mulher”, diz Najar.

Consumismo, bullying, preconceito. Nada disso te abalou até outubro de 2018 em relação a Felipe Neto? Então, vamos ver o que ocorreu depois para entender os motivos de você proibir seu filho de assisti-lo.

Você escolhe 2

A partir da eleição presidencial no 2º turno, Felipe decidiu se manifestar politicamente. Inclusive, se posicionando contra o presidente eleito, Jair Bolsonaro. O youtuber se indignou contra o projeto “Escola sem Partido”, uma das bandeiras do futuro governo, e passou a sofrer constantes ataques dos defensores do político de ultra-direita.

Via Twitter, o apresentador enfatizou: “Se decidirem seguir em frente com o Escola sem Partido e a perseguição de professores, deixo claro q usarei todas as minhas forças para incentivar os jovens q me assistem contra esse autoritarismo. Nossos alunos protegerão nossos professores. Disso eu tenho certeza!”

As retaliações vieram em peso: “Aqui em casa já bloqueei seu canal e o do seu irmão [Lucas Neto]. Meus filhos não sofrerão lavagem cerebral feita por você, ou por qualquer DOUTRINADOR… #SeuProfessorEstragouSuaCabecinha #EscolaSemPartido”, respondeu um seguidor.

Outra seguiu a linha: “Meus filhos foram muito bem educados para respeitar e proteger os professores. Mas eu quero sim uma escola sem partido. E por esse seu post meus filhos não te assistem mais.”

Vinha mais, dessa vez, um homem: “DENUNCIEI (sic) @felipeneto que tem dezenas de milhões de seguidores, principalmente jovens, adolescentes e pré-adolescentes, por incitar a violência ‘moral’ contra professores que aderirem aos preceitos da Escola Sem Partido. Escola Educa, a família doutrina!”

Até, nas palavras de mais um, que se declarou ex-seguidor, o nível cair aos xingamentos preconceituosos mais escancarados: “Apaga logo seu canal, seu viadinho.”

Tudo porque às vésperas da eleição no segundo turno, Felipe,  conhecido antipetista, abriu a opção eleitoral:  “Votarei em Fernando Haddad, sem brilho”, destacou o youtuber, reforçando que só votaria no PT porque Jair Bolsonaro representava  “o atraso e a violência”.

Mesmo com o bombardeio, o apresentador não arredou pé da posição em relação a Bolsonaro. Em publicações no Twitter (em que possui mais de 8 milhões de seguidores) e no YouTube, diz que o presidente eleito é intolerante, contrário às minorias e homofóbico. Num dos tweets, ressalta que “sempre foi, é e sempre será #EleNão”, se referindo ao movimento iniciado por mulheres que reuniu milhões de pessoas em oposição ao capitão reformado do Exército.

“O ódio de vocês só mostra quem está certo. Aqui só tem espaço pra amor, não vou devolver com o mesmo ódio. Então, por favor, fiquem à vontade pra lotar de mentions. Aproveitem e lotem meu canal de dislikes porque o algoritmo do YouTube ama. Eu sempre fui, sou e sempre serei #EleNão.”, garante o youtuber, no microblog.

O que vale?

Que há benefícios e malefícios a serem avaliados nas cada vez mais difundidas práticas digitais é evidente e, mais óbvio, é o compromisso que a sociedade deve ter com a reflexão sobre qual lugar está reservado à infância.

De forma complexa, as crianças estão atualmente muito mais desprotegidas da propaganda abusiva do que nos tempos em que a TV mandava no mercado publicitário. O YouTube e as redes sociais permitem um exercício de indução ao consumo e a comportamentos relatados por influenciadores como “experiências incríveis” com este ou aquele produto, esta ou aquela situação, sem que a relação comercial seja transparente.

A superexposição a esses conteúdos é quase inevitável. E, a não ser que se queira criar filhos numa bolha da qual um dia eles vão cair e se machucar muito, a melhor saída é o diálogo constante.

Isso, se os seus argumentos não começarem pela proibição de um canal ou outro,  porque o youtuber, com todos os problemas demonstrados nas mensagens que espalha, conseguiu ser mais democrático do que você.

(Fotos do destaque: Reprodução/Youtube e Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil)
Por Moriti Neto

É editor e repórter. De preferência, repórter.

Matérias relacionadas