Não, prato feito não engorda mais do que fast food

Como a interpretação apressada de um estudo levou a milhões de pessoas a mensagem errada sobre o que devem comer

Parecia a melhor notícia que 2019 poderia entregar: fast food engorda menos que comida de verdade. Criançada, bora passar as férias no McDonald’s! Sem moderação. Batata grande, refri gigante, sobremesa. Mas, como tudo nesse ano de Jesus-MariaSantinha-EitaPeste, a notícia se desmanchou no ar.

“Os brasileiros têm exagerado no prato de comida. E, com esse excesso, até um alimento considerado saudável pode engordar mais do que o lanche de fast food”, resumiu o Jornal Nacional.

Linha parecida à adotada pelo concorrente Jornal da Record: “De porção em porção, muita gente anda passando da conta e comprometendo a saúde.”

“Ao buscar refúgio e prazer na comida em excesso, a pessoa acaba aprisionada pela obesidade. Os mecanismos de compensação bioquímica do cérebro são afetados, e a pessoa perde a noção do exagero e da saciedade”, declarou O Globo.

Gilberto Dimenstein, no Catraca Livre, chutou o balde: “McDonald’s engorda menos do que prato feito ou comida a quilo.” E completou: “Fiquei muito impressionado com essa pesquisa científica.”

Os jornalistas leram o estudo, publicado em dezembro no BMJ (antigo British Medical Journal)? Pode ser que sim. Mas é provável que muitos não tenham lido. Atolados em múltiplas funções, os repórteres não têm tido tempo de observar algumas questões outrora básicas. E as redações continuam sequestradas pela busca incessante por audiência – é o caso explícito de Dimenstein, que angariou mais de oito mil compartilhamentos sem ler o estudo e com uma manchete em tudo errada.

Nessa linha de raciocínio, cuidados primordiais se tornam descartáveis: ler o artigo, observar a metodologia, checar as fontes de financiamento e o histórico dos pesquisadores, atentar para o que não foi destacado no texto.

Peso não é tudo

Curiosos pela enorme repercussão, fomos atrás dessas respostas. A primeira questão é que, mesmo que os jornalistas lessem o artigo, correriam o risco de chegar à mesma conclusão: prato feito engorda mais do que fast food. Seria necessário olhar com bastante atenção para entender diferente.

Da forma como foi feita, era previsível que a avaliação chegasse a esse resultado. “Refeições de fast food tiveram uma quantidade significativamente menor de energia do que as refeições de restaurantes de serviço completo”, conclui o estudo. Para fazer essa afirmação, os autores levaram em conta as calorias totais dos pratos. Ou seja, você pega um prato de arroz, feijão, mandioca, carne e salada e soma as calorias. É de se esperar que um pão de queijo ou um pão de batata apresentem menos calorias totais que uma refeição completa.

Se você olha por essa lente, o resultado é esse aqui. Os pontinhos vermelhos são pratos comprados em restaurantes e lanchonetes de fast food. Os azuis, em restaurantes de “sit down”, ou seja, para se sentar, também conhecidos como restaurantes de serviço completo.

No Brasil, a coleta de dados ficou a cargo de pesquisadoras da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo. “Por que a gente fez esse estudo? A respeito de fast food já é muito falado. As grandes redes estão sendo estudadas. Agora, nos restaurantes menores e nas redes pequenas, onde boa parte da população come no dia a dia, não existem tantos estudos”, diz Vivian Suen, professora e nutróloga, que coordenou o trabalho por aqui.

Ao usar as calorias totais, os autores colocam frente a frente lanches contra refeições completas. Pode até ser que, nas condições atuais de renda e precarização, pessoas estejam almoçando cotidianamente o que antes eram lanches. Mas, via de regra, o consumo mais comum de coxinhas, croquetes e afins segue a ser entre refeições, e não no lugar de.

“Por que chamamos atenção em relação à quantidade? Porque na prática clínica, quando vai atender um paciente, orientar um obeso, o que você vai orientá-lo é em relação à quantidade calórica que vai ingerir”, defende Vivian.

Para exercer comparações, porém, é preciso levar em conta a densidade calórica, ou seja, a proporção entre calorias e peso do alimento ou preparação. Para ficar bem fácil de entender: o que tem mais densidade calórica é alface ou Doritos? Manja? É o gráfico abaixo – de novo, vermelhos para fast food, azuis para pratos feitos. A informação não está em destaque no estudo, mas está lá.

A culpa é de quem?

Para classificar as refeições, os autores levaram em conta o tipo de estabelecimento, e não o tipo de comida. Em cada restaurante avaliado perguntou-se quais eram as duas preparações mais populares e estas é que foram analisadas.

É por isso que um croquete de carne acabou entrando no grupo dos restaurantes de serviço completo – é aquele ponto azul lá no alto, no meio dos vermelhos, com uma alta densidade calórica. O segundo ponto azul é um croquete de frango, também comprado num restaurante de serviço completo. Ambos certamente puxaram para cima a média dos pratos feitos, contribuindo para chegar à conclusão de que esse grupo pode ser mais calórico que os fast food.

E os dois pontos vermelhos que conseguiram ficar no meio dos pratos feitos? São isso aí: pratos feitos, de arroz e feijão, mas comprados em restaurantes de fast food. Isso certamente ajudou a puxar para baixo a média das bolinhas vermelhas – ou seja, o resultado, caso tivessem sido descartados ou tivessem sido classificadas como refeições e não lanche, seria outro. Perguntamos a Vivian se foi cogitado descartar esses pratos, já que obviamente não se enquadram na categoria correta, e ela respondeu que não.

“Apesar de se combater o fast food, apesar das campanhas todas, a obesidade segue crescendo. Então, o que o pessoal está comendo além do fast food que pode estar contribuindo? É mais para chamar a atenção desse outro lado. Não é, de jeito nenhum, para estimular a comer fast food”, resume Vivian.

É por isso que muitos pesquisadores têm se dedicado a estudar alimentos ultraprocessados, também conhecidos como comida-porcaria. As pessoas podem engordar comendo um prato feito? Claro. Um sujeito que encare um PF gigantesco por refeição provavelmente ganhará peso.

Em carta enviada ao BMJ, integrantes do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da USP, principal centro de estudos sobre ultraprocessados, acusaram “limitações no desenho do estudo” e “problemas de interpretação dos resultados”. Eles apontaram uma falha na seleção das refeições analisadas. Lembraram que os pesquisadores excluíram da avaliação bebidas e sobremesas, tipicamente consumidas em fast food.

“E, mais importante, o estudo não leva em conta o que as pessoas consumiram no resto do dia. Alimentos ultraprocessados, tipicamente servidos em restaurantes, têm um grau menor de saciedade do que refeições feitas de alimentos minimamente processados.”

Olhando as estatísticas, o que mudou nas últimas décadas foi a venda, o consumo e a disponibilidade de comida-porcaria. Além das evidências científicas, podemos pensar empiricamente. Se você tem uns 30 anos ou mais, deve se lembrar que lá atrás havia McDonald’s em poucos bairros e custava os olhos da cara. Ou que refrigerante era um luxo para o fim de semana. Ou que não havia lojinhas repletas de tranqueiras a cada trinta metros. E que iogurtes cheios de açúcar eram guardados a sete chaves na geladeira. A curva de consumo desses produtos cresceu em paralelo à de obesidade em vários países.

No estudo em questão, os pesquisadores queriam destacar que os alimentos cotidianos podem ter um papel na epidemia de obesidade e doenças crônicas. Todo mundo deve conhecer um restaurante famoso por servir um PF gigantesco. E pode ser que, ao ir nesse lugar, você acabe induzido a comer mais: porque não gosta de desperdício, porque fica aflito e passa a comer mais rápido, porque encara o que vier.

É válido tentar entender todos os fatores que podem estar contribuindo. Essa é a pergunta do milhão do século 21. Porém, se formos olhar para qualquer padrão alimentar considerado saudável, chegaremos sempre a uma resposta parecida: comer comida de verdade, variada, sem excessos, majoritariamente de origem vegetal. Vulgo arroz com feijão.

Dois pesos

Peso é um fator fundamental para explicar por que a pesquisa chegou a esse desfecho. O prato feito mais leve coletado em Ribeirão Preto tinha 640 gramas, e o mais pesado chegava a 1,3 quilo.

Você talvez conheça alguém que mande ver nessa quantidade de comida. Mas, provavelmente, esse alguém é famoso por ter um apetite fora da curva. Pode ser uma pessoa que trabalhe fazendo força o dia todo – a expressão “prato de pedreiro” não nasceu à toa. Mas, via de regra, as pessoas comem muito menos do que isso. Um prato desse tamanho provavelmente é vendido para ser dividido por dois, três, quatro.

“A gente pediu a quantidade normalmente vendida para uma pessoa”, defende Vivian Suen.

Claro que dá pra trabalhar a elasticidade desse seu sistema digestivo para, a longo prazo, construir a proeza de engolir aquele PF de 1.340 gramas seguido de sobremesa, refrigerante e salgadinho. Mas requer treino – não tente fazer em casa.

Um outro aspecto importante é notar que a pesquisa toma em consideração apenas as calorias como parâmetro. Não se está falando de indicadores nutricionais gerais. Para além da energia, uma alimentação envolve sal e gorduras, tipo de gorduras, vitaminas e minerais. Tudo isso interfere em uma série de outras questões que um leigo como eu jamais poderia explicar.

Segundo Vivian, o estudo que foi agora divulgado é uma pequena parte de uma pesquisa maior, na qual esses mais aspectos serão abordados.

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As grandes redes de fast food não foram incluídas no estudo pelo motivo que a professora citou acima: já há bastante análise sobre elas – o que faz com que a manchete de Dimenstein falando em McDonald’s esteja muito errada. Em vez disso entraram os alimentos vendidos em cadeias locais ou pequenos comércios.

Se alguém resolver almoçar pão de batata, dificilmente será apenas uma unidade. Se for, dali a pouco essa pessoa estará com fome. Em compensação, boa parte das pessoas, caso queira se arriscar a engolir um quilo de comida, vomitará, desistirá ou passará a tarde jiboiando, e provavelmente só tornará a enfiar alguma coisa na boca depois de muitas, muitas, muitas horas.

E essa é uma questão para a qual devemos atentar: como disse o pessoal do Nupens, o estudo compara lanches e pratos, e não dietas. Indivíduos não foram submetidos a um dia inteiro dessas refeições para entender como funcionam no organismo em termos de saciedade, ingestão calórica total, composição nutricional e uma série de outros cruzamentos possíveis. Isso será feito no desdobramento do estudo, segundo Vivian, que irá acompanhar um grupo de mulheres. Serão aplicados questionários, realizadas medição de peso e de gasto energético e avaliados aspectos qualitativos dos alimentos.

Dedo na cara

Culpar arroz e feijão pela epidemia de obesidade é algo antigo. A maior parte das vezes isso partiu de esforços da indústria de comida-porcaria. É o clássico exercício de apontar o dedo para o outro quando a professora da escolinha quer saber quem colocou tachinhas na cadeira.

A maneira como foi divulgado o estudo fez lembrar de imediato um outro, feito no Brasil e publicado em 2016. O texto comparava uma refeição cotidiana em casa com as de lanchonetes, e concluía que não havia diferença substancial do ponto de vista nutricional.

Ao analisar os cardápios das redes de fast food, as autoras do trabalho incluíram na composição iogurtes e frutas, que obviamente não são a primeira escolha de quem vai a um restaurante desse tipo. “Essas comparações ilustram que o foco deveria ser colocado na qualidade nutricional, mais do que no local de alimentação”, conclui o artigo, assinado por duas profissionais da Equilibrium, uma consultoria da indústria de alimentos, e por Silvia Cozzolino, professora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP.

Cozzolino era, também, integrante do conselho consultivo do McDonald’s. À época, o caso suscitou um abaixo-assinado para que ela deixasse a presidência do Conselho Regional de Nutricionistas da 3ª Região (São Paulo e Mato Grosso do Sul), cargo que continua ocupando.

É uma conclusão bem parecida à do estudo recém-publicado, no qual os autores sugerem que é preciso pensar em políticas públicas para todos os tipos de restaurantes, e não apenas para as grandes redes de fast food.

No geral, governos têm optado por tomar ações em relação às cadeias de restaurantes por uma questão de impacto: as redes estão em todos os lados e, ao padronizar uma medida, rapidamente surtem efeito. Em vez disso, ações um a um são mais lentas e muito difíceis de implementar e fiscalizar, ainda mais num país do tamanho do Brasil. Mas executivos da indústria de ultraprocessados não deixam nunca de se queixar da falta de medidas contra a coxinha e o pastel.

Não é mera coincidência que nossa primeira menção ao estudo de Cozzolino estivesse num texto que intitulamos “Os alimentos ultraprocessados são os reis da confusão”. Imagine você a situação de um pai ou uma mãe que tenha assistido a uma reportagem que transmitiu a ideia de que fast food e comida de verdade se equivalem. É confusão na certa.

É pra declarar?

O estudo recém-publicado teve o financiamento do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos e da Universidade Tufts, além de uma verba da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) para a parte brasileira.

Os autores declararam ao BMJ não ter conflitos de interesses a reportar.

Susan Roberts, a autora principal, tem uma empresa que oferece soluções para lidar com ganho de peso, com planos a partir de US$ 199.

Outra pesquisadora, Rebecca Kuriyan, da Índia, participou do ISCOLE. Foi uma pesquisa global financiada pela Coca-Cola que suscitou, somada a outras, um escândalo. Nos últimos anos, uma série de reportagens documentou o esforço da corporação para eximir de responsabilidade os refrigerantes e culpar o sedentarismo pela epidemia de obesidade.

Isso deveria ter sido declarado por Kuriyan? As percepções sobre conflitos de interesses variam enormemente entre pesquisadores, da mais alta repulsa à mais alta complacência. Boa parte resiste a admitir que a fonte de financiamento pode influenciar o desenho e os resultados dos estudos.

Vamos pensar um pouco sobre o desfecho dessa pesquisa. É sabido que a imagem da Coca passa por uma crise. E são conhecidos os esforços da empresa em desviar o foco para tentar criar uma ideia de que o produto-chefe pode ser parte de um estilo de vida saudável – as pesquisas patrocinadas pela companhia, como dissemos, são prova clara desse esforço.

Então, um estudo que responsabiliza a comida de verdade parece bom para os interesses da Coca, ainda mais ao sugerir que é preciso promover uma agenda pública mais ampla, sem foco específico no fast food. Quem é a acompanhante-mor de hambúrgueres, fritas, coxinhas, pastéis?

Esse episódio é mais uma oportunidade para o mundo científico debater o que deve e o que não deve ser declarado quando se pergunta sobre conflito de interesses.

E traz mais uma chance de o jornalismo, recém-derrotado por um meme em eleições presidenciais, discutir os danos provocados pela audiência acima de tudo. Esse problema pesa bem mais que um PF gigantão. E é indigesto.

Imagem em destaque: vcheregati. Flickr.

Por João Peres

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