Cientistas discutem ética patrocinados por empresas de alimentação

Congresso de entidade criada pela Coca-Cola e outras corporações apresenta pesquisas de alimentação apoiadas pela indústria

O palco é um dos hotéis mais luxuosos do interior do estado de São Paulo. Os convidados, cientistas envolvidos com alguns dos achados mais recentes sobre alimentação. O objetivo é, como afirma o estatuto do organizador, facilitar a obtenção de informações científicas em benefício da saúde pública. E o anfitrião é uma das mais conhecidas entidades de pesquisa ligada à indústria mundial de alimentos, o International Life Sciences Institute (ILSI), criado em 1978 pela Coca-Cola.

Cientistas da alimentação reuniram-se no 10ª edição do Congresso Nacional do ILSI Brasil, para discutir, sob o patrocínio do instituto ligado a empresas como Coca-Cola, Nestlé, Danone e Monsanto, a integridade das pesquisas na área. No encontro, realizado entre os últimos 10 e 12 de abril, no cinco estrelas Grande Hotel São Pedro, em Águas de São Pedro, acadêmicos trouxeram seus estudos preocupados em manter a integridade, fazer a divulgação e saciar o desejo de que pesquisas criem produtos vendáveis.

Linhas gerais, a programação se dividia em três discussões. A primeira, sobre a integridade ética de pesquisas científicas. A segunda, sobre a conturbada relação entre a mídia e a ciência. E a terceira, não menos importante, dedicada a compartilhar as descobertas mais recentes, entre pesquisas conclusivas ou ainda preliminares, do Conselho Científico Consultor (C3) do ILSI. Entre estes, destaque para o caráter de especialização em cada um dos estudos conduzidos.

Na pauta dos pesquisadores estava o que era o mais específico, do mais específico, do mais específico. Estudos feitos, por exemplo, sobre como a variabilidade interindividual pode ser determinante para os efeitos causados pelo consumo de compostos bioativos, conduzido pela pesquisadora Neuza Maria Aymoto Hassimotto, professora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF) da USP.

Ou pesquisas como a encabeçada por João Ernesto de Carvalho, professor titular da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Unicamp, sobre as variadas origens de produtos naturais usados para tratar e prevenir o câncer e a necessidade de sintetizá-los quimicamente, dada sua complexidade e oferta escassa no meio ambiente.

Ou, ainda, uma investigação sobre os peptídeos (moléculas formadas pela ligação de dois ou mais aminoácidos, que são os mesmos compostos das proteínas) bioativos e o seu potencial benéfico para a saúde, feita pela pesquisadora Maria Teresa Bertoldo Pacheco, do Instituto de Tecnologia de Alimentos (ITAL), ligado ao governo paulista.

Ela, que ainda não chegou a uma conclusão definitiva, tentou sintetizar um alimento com ferro para anêmicos, usando o metal, mas esbarrou num produto que tem gosto de ferro. Portanto, ainda era desagradável para o consumo humano. Trata-se de um caso emblemático entre as pesquisas apresentadas: olhar para um problema de saúde pública privilegiando um aspecto específico em vez de vê-lo sob uma ótica mais geral. Seria algo como substituir a abordagem de algo da cozinha por algo da farmácia. Anemia, em muitos casos, decorre da deficiência de consumo de alimentos com ferro. Isso faltou falar.

Tornar as pesquisas em produtos vendáveis era uma preocupação, senão central, mas entre aquelas que podem motivar alguns estudos. Não só havia uma palestra dedicada a dividir experiências sobre como transferir tecnologia desenvolvida em universidades públicas para empresas. O ato de tornar uma pesquisa em mercadoria foi chamado de “alegria” por Alessandra Bastos Soares, diretora da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Convidada a ser palestrante do Congresso, ela afirmou: “Quem produz ciência está preocupado com questões mínimas do dia a dia. A gente estava comentando: que alegria desenvolver um produto em um laboratório e chegar em uma drogaria e [o produto] estar lá. A gente fala que é só um cosmético. Mas quem usa e se beneficia disso sabe o valor. Pode ser uma saliva artificial, pode ser um produto para máscara, pode ser um alimento funcional… Pode ser uma fórmula para uma criança que não pode ser alimentada com o leite da mãe.”

Em outro caso emblemático, o médico pediatra Mauro Batista de Morais expôs seu estudo sobre a relação entre problemas na microbiota intestinal de crianças e o consumo de frutose. No resumo do resumo: alguns meninos e meninas podem estar com dores de barriga por decorrência de consumo de frutose em excesso. Este é o açúcar que vem das frutas e é usado, na sua forma pura, nos xaropes de refrigerantes. Nas frutas, diferentemente das bebidas, ele se mistura às fibras, tendo uma absorção, em tese, mais lenta pelo corpo humano.

Durante a discussão da pesquisa do pediatra não houve, porém, uma única menção, pergunta, questionamento, hipótese associando o problema nas crianças ao consumo de refrigerantes. No máximo, uma única vez foi ventilada a possibilidade da “ingestão de xaropes” associada às dores abdominais, mas sem relacioná-las às bebidas adoçadas. Ganha uma lata de Coca-Cola quem se lembrar qual a empresa que está por trás da criação do ILSI.

Ética e ciência

Um dos destaques do encontro no interior paulista foi o escritor, jornalista e frade dominicano Frei Betto, que fez uma palestra de quase uma hora de duração sobre ética. Ele falou do sentido etimológico da palavra e a diferenciou do que é a moral, uma virtude menor, mais reduzida à vivência individual de uma pessoa, segundo definiu. No entanto, deu atenção especial a um ponto. “Na política, não vamos esperar a virtude das pessoas. Vamos esperar a virtude das instituições”, disse.

Frei Betto conversou com a reportagem do Joio após participar do Congresso. Ele negou estar ciente, mas contamos que o instituto pelo qual foi convidado é bancado por grandes corporações. “Não sabia que o ILSI é financiado pela Coca-Cola. Não tenho por hábito indagar a procedência dos fundos das instituições que me convidam para proferir conferências, desde que não queiram pautar meu conteúdo nem censurar minha fala”, afirmou.

Durante a apresentação, o palestrante chegou a criticar o que chamou de “indústria de produtos nocivos”. “No evento de Águas de São Pedro falei sobre ‘Ética’. E lá pelas tantas citei como algumas indústrias de produtos nocivos à saúde financiam publicidade através dos filmes ‘made in USA’, e nomeei explicitamente o tabaco e a Coca-Cola…”

Também questionamos se um instituto científico financiado pela indústria não configuraria conflito de interesses. Isto é, perguntamos se um instituto financiado por uma empresa que fabrica um produto reconhecido por danos à saúde, como é o caso dos refrigerantes, não pode ser questionável nas suas implicações éticas sobre a ciência. Para Frei Betto, esta é uma questão primeiramente individual. “Isso é um problema para a consciência dos participantes do ILSI. Dei meu recado, acentuei a importância da ética na vida pessoal, social, política e empresarial, e espero que tenha servido de reflexão a eles.”

O intuito do ILSI, segundo seu Diretor e Presidente do Conselho Científico e de Administração, Franco Lajolo, professor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP, é estimular a divulgação do conhecimento científico. “Um exemplo para isso são os seminários e congressos”, afirmou, em entrevista ao Joio — a íntegra da conversa estará disponível em breve. Mas a atuação do instituto vai além da troca científica. Tem grande relevância nas tomadas de decisão de políticas públicas. Seja no Brasil, seja no mundo.

Por aqui, o ILSI tem voz ativa na Anvisa. A cadeira do instituto seria originalmente ocupada por universidades, mas a relação da entidade com pesquisadores de diversas instituições de ensino lhe garante o espaço de discussão na agência. Lá, o ILSI e outras organizações próximas à indústria têm trabalhado para agilizar processos, especialmente no que diz respeito à aprovação de novos produtos. Como a indústria investe em inovação, está sempre alguns passos à frente da agenda regulatória.

Mundo afora, o instituto coleciona apoio a estudos duvidosos. Por exemplo, como revelado pelo New York Times: “No país mais obeso da Ásia [Malásia], nutricionistas recebem dinheiro dos gigante dos alimentos”. No caso, o ILSI patrocinou um estudo que examinou como o Milo, uma bebida láctea da Nestlé, influenciou crianças que o consumiam. De modo previsível, a conclusão falava dos benefícios que o produto oferece, dando exatamente o tipo de resultado que a Nestlé e a General Mills gostariam de obter.

Nos Estados Unidos, o ILSI chegou a reunir, em 2009, um grupo de acadêmicos, ex-funcionários do governo e representantes de Coca-Cola, PepsiCo e outras empresas para desenvolver uma lista de critérios para “obter resultados de pesquisa imparciais a partir das atividades financiadas pela indústria”. As empresas pagaram pela iniciativa. O instituto publicou o relatório no seu periódico Nutrition Reviews, mas o artigo foi criticado por diversas outras outras revistas nutricionais.

(Foto do destaque: Divulgação/ILSI Brasil)

Por Guilherme Zocchio

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