Crônica | Vingadores: Ultimato, quando os heróis estão do lado dos vilões  

Estreia de filme deve arrebentar corações de fãs, mas parceria da Marvel com junk food também pode, literalmente   

Por mais de uma década, a Disney parecia ter cortado relações com o McDonald’s. Em 2006, depois de anos de parceria, a gigante do entretenimento quebrou o pacto de vendas que tinha com o gigante da junk food. A dona do Mickey Mouse e do Donald dava a entender que não queria conexões com a obesidade infantil e as doenças crônicas promovidas pelo palhaço Ronald. Era 2018, porém, e tudo mudou – ou melhor, voltou a ser como antes.

O rato e o pato foram liberados para se empanturrar novamente de Big Mac e companhia. E, agora, com o sucesso dos filmes da Marvel – comprada pela Walt Disney Co. em 2009 –  principalmente a explosão da franquia Os Vingadores, o que não falta são super-heróis em miniatura sendo comercializados como “brindes”  nos mac lanches da vida. 

Aliás, o suposto rompimento e a volta da relação tiveram como pivô o McLanche Feliz. E, se  em 2006 o motivo da separação era o combo direcionado às crianças que “não cumpria as diretrizes nutricionais da Disney”, algumas sutis alterações no cardápio do McDonald’s garantiram que as duas corporações recolocassem as alianças nos dedos.

Reatada, a dupla dinâmica entrou em ação já com filmes que dialogam com o heroísmo em Os Incríveis 2, e, depois, na continuação de Detona Ralph. Ambos tiveram, no ano passado, brinquedos no McLanche Feliz.

Vamos dar dois passinhos atrás, dois parágrafos, para ser mais preciso,  O tal “rompimento” entre as megaempresas foi daqueles bem mais ou menos. Se os brindes não eram parceiros dos lanches gordurosos mundo afora desde 2006, as lojas da cadeia de fast-food nos parques temáticos da Disney seguiram funcionando normalmente.

Sem falar que, mesmo com as mudanças no cardápio, os lanches que são os carros-chefe históricos da rede de comida-porcaria continuam sendo bombas de gordura e sódio e, acompanhados do açúcar dos refrigerantes, quase irmãos siameses dos sanduíches, fazem um estrago e tanto no organismo, como você pode ver em português e inglês.       

Neste 25 de abril, com o lançamento de Vingadores: Ultimato nos cinemas mundiais, com grande possibilidade de quebrar o recorde histórico de bilheteria pertencente a Avatar, filme de 2009, Disney e McDonald’s vão jorrar dinheiro (estimativas apontam uma arrecadação de três bilhões de dólares, quase 12 bilhões de reais, só de ingressos nas salas de cinema!) nas contas bancárias e nas ações no mercado financeiro, enquanto milhões de pessoas compram junk food para ter bonequinhos fajutos de Capitão América, Homem de Ferro, Thor, Hulk, Viúva Negra e Gavião Arqueiro – lembrando que, dentre esses milhões de pessoas, muitas certamente têm ou terão doenças crônicas não transmissíveis (diabetes, câncer, hipertensão), a maior causa mundial de mortes, sendo parte significativa associada à má alimentação e ao consumo de ultraprocessados.            

Assim, à base de um namoro que nunca terminou de fato, fica fácil retomar e turbinar esse casamento. 

Super-abusos

No Brasil, como o Joiopublicou, o Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor do Ministério da Justiça multou o McDonald’s em R$ 6 milhões no ano passado, a partir da interpretação de que shows do palhaço Ronald em escolas eram ilegais. E a Secretaria Nacional do Consumidor, a qual o departamento é ligado, abriu investigação após denúncias encaminhadas pelo Instituto Alana, de que a rede lanchonetes usa crianças como promotoras dos produtos e pratica venda casada.  

Apoiado em estudos científicos que evidenciam que até os doze anos não há discernimento sobre os efeitos do marketing, o instituto considera que toda a publicidade infantil deve ser considerada ilegal porque crianças dificilmente entendem que o suposto “brinde” com brinquedos é uma estratégia vilanesca para aumentar as vendas dos lanches.  

O plano maquiavélico não para por aí. Outro ataque a direitos se dá com a venda casada, que viola o Código de Defesa do Consumidor, estabelecido desde 1991. Como nos conta o Idec, a situação é bem nítida e fica fácil compreender quem são os vilões que forçam a barra, empurrando uma coisa que você não quer para poder ter outra que quer (quem nunca viu uma criança abandonando lanche e copo imenso de refri no McDonald’s e só dando bola para o brinquedo?).

Óbvio que esse jogo de empurrar goela abaixo é facilitado quando se usa ícones do entretenimento. Inclusive, existem pesquisas que mostram que pessoas mais velhas também são atingidas pelos truques marqueteiros. É o que defende um trabalho da Universidade Brigham Young, dos Estados Unidos.

A cientista Tamara Masters, líder do estudo e pesquisadora na área de negócios, avisa:  

“Eu adoro assistir a filmes e ler livros com heróis e vilões, e comecei a me perguntar se um rótulo com imagem desses personagens faria com que eu gostasse mais ou menos de um produto e se isso poderia afetar minhas escolhas como consumidora. Estava interessada em analisar carros, perfumes e até alimentos. Decidi, inicialmente, estudar essa última categoria.”

O estudo foi publicado na revista Journal of Consumer Psychology, em dezembro de 2018. Entre vários testes, a equipe fez uma análise curiosa: um grupo de voluntários adultos foi dividido. Metade viu as imagens de  garrafas e a outra parte observou um pote de sorvete. Os rótulos das garrafas informavam “Água da Fonte Vilão, implacável, astuta e perigosa” e “Água Heroica da Primavera, paciente, corajosa e com integridade”. O sorvete, idem, era apresentado das duas maneiras. Resultado: os participantes declararam que pagariam mais pela água e pelo sorvete quando os produtos estavam relacionados com a perspectiva heroica.

De acordo com Tamara, a conclusão é de que algo que é “ruim para você” pode ser visto com bons olhos se leva o rótulo de herói. Por outro lado, o mesmo pode ser feito com alimentos saudáveis para estimular melhores escolhas, seja por adultos, seja por crianças.    

Dá para aprender com super-heróis?  

Só posso falar por mim, nesse caso, mas eu aprendi. E não foi pouco. A estas alturas, deve estar mais do que evidente que sou aquilo que hoje se chama  de nerd, geek ou fã de cultura pop. Desde criança, numa época em que ser essas coisas não era nada popular, leio quadrinhos diversos, passando pelos heróis de Marvel e DC, por selos heroicos mais adultos e HQ’s alternativas internacionais e nacionais. Li coisa e boa e ruim em todos os casos, mas, como o assunto aqui são os super-heróis mainstream e o mau uso desses ícones para enrolar crianças e adultos, vou me ater a eles.

Recordemos: a construção do ideário coletivo é estudada faz tempo pela ciência. A figura do herói não é novidade. Dos gregos antigos, veio, por exemplo, a narrativa dos Doze Trabalhos de Hércules, que, inclusive, influenciou a criação de histórias e personagens atuais. Dessa influência, nasceram os super-heróis, parte da cultura popular desde o início dos anos 1930.

Em 1938, era apresentado pela editora National (hoje, DC Comics) o modelo que baseou tudo o que saiu depois: o Super-Homem. E a essência do personagem não tinha nada de “super-patriota que veste as cores do país e defende interesses do governo”, algo que o filho de Krypton carrega injustamente. A essência da criação de Jerry Siegel e Joe Shuster, filhos de famílias judias afugentadas das nações de origem por medo do preconceito e do ódio e que enfrentaram a pobreza nos Estados Unidos da Grande Depressão, era a da distribuição igualitária de justiça. Os roteiros e desenhos colocavam o alter-ego de Clark Kent confrontando patrões exploradores, espancadores de mulheres, políticos corruptos e guerras alimentadas por armas fabricadas nos EUA.                   

Só mais tarde, após a Segunda Guerra Mundial, é que Kal-El – contra a vontade dos criadores Siegel e Shuster – foi transformado em um falso símbolo de patriotismo e do “jeito americano de viver”. Hoje, porém, a depender do autor, o Super-Homem retorna às raízes. Recentemente, ele se pôs a lutar contra supremacistas brancos estadunidenses que planejavam matar imigrantes, numa crítica declarada ao governo de Donald Trump e, ao mesmo tempo, num ato de empatia, já que ele também é “imigrante” e tem lá os próprios problemas com aceitação.

Igualmente lançada pela DC, a Mulher-Maravilha, criada em 1940, tem origem no movimento feminista e mantém, apesar de algumas contradições e escorregadas aqui e ali, forte ligação com a luta pela igualdade de gênero.   

Da Marvel, tão em voga na atualidade, aprendi muito sobre racismo com os X-Men, a ponto de entender que tanto Luther King como Malcolm X estavam certos, a respeito de bullying e diferenças sociais com o Homem-Aranha e de abusos contra crianças com o Bruce Banner/Incŕivel Hulk.    

Tudo bem, podemos debater apropriação cultural. Sei que a indústria dos quadrinhos de santa não tem nada. São corporações que querem mesmo o lucro e que se ajustam de tempos em tempos às bandeiras que julgam convenientes ao momento.

Certo, mas, nesses cenários, há autores de mentes bem abertas que conseguiram e conseguem fazer trabalhos excelentes e politicamente progressistas com esses e outros ícones super-heroicos – temos V de Vingança e Watchmen, de Alan Moore, Sandman, de Neil Gaiman, o Surfista Prateado de Stan Lee e Moebius, os X-men, de Chris Claremont, e a Batgirl declaradamente feminista e lésbica, de Gail Simone, entre muitos outros).                

Sem escapismo puro e simples, mas, também, sem a ideia teimosa e irreal de que os ícones da cultura pop têm todos que morrer, é legal pensar em reconhecer que super-heróis têm o poder de impactar o mundo de verdade. Alguns deles podem até ajudar a proteger nossas vidas simbolicamente, se ao menos conseguirmos apreender as essências dos personagens e explicar pacientemente às crianças que a indústria por trás do lucro puro e simples pode matar tanta gente quanto o estalar de dedos malthusiano de Thanos.        

Imagem em destaque: Denise Matsumoto  

 

Um guia sobre a necessidade de criar regras para a publicidade infantil

 

Por Moriti Neto

É editor e repórter. De preferência, repórter.

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