Do charque até a ora-pro-nóbis: a luta pela soberania alimentar na Bahia

Agricultores familiares mostram que ação local faz a diferença, mas, também, que políticas públicas têm de superar governos   

Por Juliana Fronckowiak Geitens, especial para o Joio

“Meu maior momento é a cozinha. Tô ali a mil: é casa pra limpar, prato pra lavar, mas, se tiver comida pra fazer, eu tô feliz da vida! Não tem estresse nem nada que me faça ficar triste”, conta Mara, com um largo sorriso.

Assentamento Dois Riachões. Ibirapitanga. Bahia. Uma “regra”: quando tem evento, é Mara (Elismária Silva de Oliveira) quem cozinha. No almoço de encontro entre agricultores e consumidores da região, o cardápio é variado: galinha com ora-pro-nóbis, farofa de nibs de cacau com banana-da-terra e amêndoa de sapucaia, salada orgânica de couve, cenoura, beterraba, molho de limão com cupuaçu e azeite extra-virgem de licuri, cortadinho de abóbora e chuchu, além dos sucos de cupuaçu e cacau.

Vem pro rango? Olha só o almoço no Assentamento Dois Riachões
Foto: Jefferson De Paula Dias Filho

A agricultora, uma das lideranças do Movimento Estadual de Trabalhadores Assentados, Acampados e Quilombolas (Ceta), do Sul da Bahia, e moradora do assentamento Dois Riachões, está mais do que acostumada a fazer comida em grande quantidade. Desde 2005, período em que os moradores do Dois Riachões se organizavam politicamente, Mara colabora nas refeições. 

“Eu sempre cozinhava para 75, às vezes, 80 pessoas e, mesmo assim, ficava apreensiva na hora que via os outros experimentando… Será que vão gostar?’”.

Mara fala das famílias que ficaram acampadas às margens da rodovia BA-652 por, aproximadamente, seis anos. Nesse período, como não tinham terra para plantar alimentos, buscavam comida em cidades próximas. Depois que ocuparam o território em Ibirapitanga e por influência do Ceta, decidiram que tudo dentro daquelas terras seria produzido com base orgânica e sustentável. Hoje, o cardápio do assentamento conta com opções cultivadas no próprio território e em outras comunidades parceiras.

A Bahia é o terceiro estado brasileiro com maior número de assentamentos, atrás apenas de Maranhão e Pará. São cerca de 42 mil famílias assentadas, além de 5 mil famílias quilombolas e 24 aldeias indígenas vivendo no estado. A forte presença dos povos tradicionais configurou, por séculos, uma produção agrícola pautada na cultura de subsistência, ou seja, comunidades rurais utilizando métodos tradicionais de cultivo e produzindo o básico para sobreviver. 

Segundo o historiador Joaci de Sousa Cunha, doutor em História pela Universidade Federal da Bahia e testemunha ocular e científica da caminhada dos movimentos sociais em solo baiano desde 1996, a questão da agroecologia e da consciência alimentar permeia um processo longo e complexo, alinhado à luta dos povos tradicionais pela terra.

“A agroecologia era algo estimulado e debatido desde o século passado, mas se tornou um hábito alimentar cotidiano nas famílias a partir do PAA (Programa de Aquisição de Alimentos). Como já havia a discussão agroecológica e a necessidade de você banir os insumos químicos e os venenos, [a agroecologia] chegou a ser regimento interno dos assentamentos”. comenta Joaci. 

Potencial pra revolucionar 

A história da região Sul da Bahia é marcada por um regime de exploração muito violento nas fazendas de cacau durante décadas, pautada por diversas formas de subordinação.

“Eu conheci essa realidade e posso afirmar que a alimentação nessa relação social na produção do cacau era, basicamente, arroz, feijão, farinha e charque”, relata o historiador.

Segundo Joaci, foram as estratégias de desenvolvimento local sustentável e a geração de novas oportunidades de trabalho, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que impulsionaram uma  “revolução alimentar”.

O PAA foi criado em 2003, dentro de um grupo de políticas do programa Fome Zero, do governo federal, e pretendia implementar ações nas políticas agrícolas voltadas ao acesso de alimentos às pessoas em vulnerabilidade social e alimentar. Já o PNAE teve origem na década de 1940, mas, foi só no final da década de 90, com as políticas de descentralização de recursos, que veio a grande adesão dos municípios brasileiros à proposta – um salto de   15% na década de 50, para 70%, em 1998.

Hoje, a regulamentação do PNAE exige que no mínimo 30% dos recursos repassados para os municípios sejam destinados à aquisição de alimentos da agricultura familiar, priorizando orgânicos, agroecológicos e alimentos da sociobiodiversidade. 

Segundo pesquisa do programa de pós-Graduação em Agroecologia da Universidade Federal de Viçosa, em Minas Gerais, o impacto do PAA se tornou visível na diversificação da produção, seguida por melhorias na qualidade dos alimentos produzidos, o fortalecimento dos movimentos sociais e o aumento da renda familiar. 

Os principais grupos beneficiados pelo programa são dois: os agricultores, que vendem o que produzem, e os consumidores, a ponta que, além de estimular a comercialização, usufrui das vantagens da boa comida. Dessa relação, nasce um ciclo virtuoso que também ajuda o meio ambiente, já que a produção preferencialmente orgânica não agride solo, água e ar.

De acordo com dados da atualização mais recente do PNAE, a Bahia é o terceiro estado brasileiro no ranking de aquisição de alimentos saídos da agricultura familiar para abastecer escolas públicas estaduais. Somente São Paulo e Paraná estão à frente. No ano de 2017,  mais de 72 milhões de reais foram repassados aos agricultores familiares.

“Era muito difícil as pessoas deixarem o charque, o feijão e a farinha para produzir verduras e legumes. O PAA e o PNAE tiveram um papel decisivo nessa transição: eles asseguraram a mudança nutricional e alimentar na maioria dos assentamentos que eu conheço – e eu conheci dezenas”, relata Joaci.

Encontro de consumidores e agricultores no Assentamento Dois Riachões,  com visita à plantação de cacau orgânico
Foto: Jefferson De Paula Dias Filho

Extrativismo de quintal

Em Serra Grande, a gente aprende: “Eles fazem um extrativismo de quintal e levam pra feira”, explica o biólogo Sidilon Mendes. A expressão “extrativismo de quintal”, criada por ele, sugere a interação da população do Litoral Sul da Bahia com a diversidade de alimentos que a região, coberta por Mata Atlântica, oferece, a ponto de ser abundante nas casas da comunidade.

“O acesso a um supermercado, a uma padaria, é muito difícil para a população. Eles trazem pra feira os alimentos que sempre tiveram no quintal… Tem a época do cupuaçu, o coco, os bananais, a fruta-pão, graviola, jaca”, conta.

A feira também promove o convívio da população. Faça chuva ou sol, ela está ali, como um “mercadão” a céu aberto. Cheio de cores, cheiros, sons e sabores. Grupos cantam e dançam. Crianças brincam por todo o espaço. Ambulantes vendem doces feitos a partir de produtos locais.  

Criançada em dia de feira: cores, sabores e muita brincadeira em Serra Grande
Foto: Jefferson De Paula Dias Filho

O Nordeste guarda uma característica: parte significativa dos feirantes deixa os alimentos espalhados em cestas de palha ou mesmo no chão. A partir de 2015, os movimentos políticos da região que priorizam orgânicos passaram a estimular a organização dos feirantes e a apresentação dos alimentos com a aquisição de placas informativas e até aventais.

“No estado da Bahia, a agroecologia vem sendo praticada não só no bioma da Mata Atlântica, mas, também, no bioma da caatinga, por movimentos sociais, por assentamentos rurais. Já existe um histórico em regiões dispersas”, conta Luiz Fernando Vieira Pozza, técnico em meio ambiente e morador da região.

Rolando com sol ou chuva: a feira de Serra Grande, no distrito de Uruçuca, Bahia
Foto: Jefferson De Paula Dias Filho

Apesar de não constar da atualização mais recente do relatório geral de assentamentos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), de dezembro de 2017, existem 40 famílias, numa extensão de 406 hectares, vivendo no assentamento Dois Riachões. 

O histórico alimentar dessas pessoas se diferencia do de Mara, a personagem do início desta reportagem. Naturais do oeste da Bahia, os pais e irmãos dela vivem às margens do Rio São Francisco, no assentamento Sítio do Mato – também ligado ao movimento Ceta, que engloba mais de 12 mil famílias entre acampados, assentados e quilombolas. 

“Minha família é de camponeses e produz sem veneno desde que nasci”, ela explica. 

A família de Mara, personagem que abre esta história, colhe alimentos da roça para o Dia dos Pais
Foto: Elismária Silva de Oliveira

“A gente come sempre da roça, minha mãe só busca fora o que não pode produzir. Ela é daquela camponesa que ainda cozinha com a banha de porco, cria o porco pra comer, a galinha caipira pra comer, tudo pra subsistência. A minha história é toda do campo”, completa Mara.

A Estrada-Parque Ilhéus-Itacaré e o turismo 

Na visão de Salvador Ribeiro, engenheiro florestal que atua na região há 20 anos, o turismo contribuiu muito para a expansão e diversificação da produção alimentar local.

Ele esclarece que, a partir de 1996, quando foi construída a rodovia que liga Ilhéus a Itacaré, a economia do turismo chegou, trazendo novos costumes de consumo, o que  remodelou a produção. 

A Estrada-Parque Ilhéus-Itacaré (BA-001), a que Salvador se refere, fez parte do Programa de Desenvolvimento do Turismo do Nordeste (Prodetur), iniciado em 1994, com recursos vindos do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). O programa recebeu 670 milhões de dólares, um terço deles aplicados na Bahia.

Abrangência do Prodetur nos estados nordestinos. 
Fonte:: BNB (Banco do Nordeste do Brasil)

Especificamente no litoral sul da Bahia, os movimentos ambientais ativos na década de 1990 conseguiram sensibilizar as autoridades públicas para a implementação de medidas que colocassem foco na compensação ambiental do impacto que a rodovia e as outras obras de infraestrutura causariam. As principais foram o estabelecimento de duas Áreas de Proteção Ambiental (APAs) e um Parque Estadual, além de túneis subterrâneos para o trânsito de guaiamus (caranguejos).

Atualmente, não é raro encontrar franceses, espanhóis, italianos, alemães e brasileiros oriundos de várias partes do país vivendo nas cidades litorâneas do Sul baiano. 

“Vim de uma experiência na França, onde comecei a despertar a vontade de sair dos produtos industrializados e a ter uma alimentação mais saudável. Junto com ela, veio a vontade de sair das grandes cidades, do ritmo de trabalho acelerado, quando olhamos no espelho e nos enxergamos nos decompondo de cansaço, de correria, de não ter tempo para os filhos, não ter tempo para comer”, conta Ana Clara de Mello Vianna, carioca que recentemente mudou-se para o distrito de Serra Grande, com o filho de cinco anos e o marido francês.

A família passou um tempo em Cabo Verde, na África, mas segundo ela, o problema da escassez de alimentos naquela região seca os fez mudar novamente.

 “Aqui, na Bahia, é outra realidade, porque a gente tem essa diversidade de alimentos”, conta. 

Outro fator decisivo para a mudança foi a escola Dendê da Serra, que segue a pedagogia Waldorf – ou seja, um ensino focado no desenvolvimento humano dos alunos, priorizando conteúdos artísticos, musicais e alimentos naturais -, chamariz da região. A escola tem um método de “apadrinhamento” e compensação de custos. Em outras palavras, famílias que têm condições de pagar um valor a mais na mensalidade dão oportunidade para alunos sem condições financeiras.

Assim como Ana Clara, Atílio Baroni Filho e Cinthia Sento Sé fazem parte do coletivo de pais da escola de ensino fundamental Quintal da Serra, extensão da escola Dendê da Serra. 

Atílio, nascido em São Paulo, diz ter se mudado para a região há três anos por ser um local com “mais oportunidades de conseguir terra e trabalho, e existirem movimentos fortes da pedagogia Waldorf e da agroecologia”, além da proximidade dos grandes centros, como Ilhéus e Itabuna.

“Cada vez mais, o turismo começa a entender que o território não é só o litoral, não é só a zona costeira. Tem a zona rural, onde acontecem coisas muito interessantes, movimentos que vêm ganhando cada vez mais força”, conclui Luiz Fernando, o técnico de meio ambiente.

A mistura entre os assentados, quilombolas e indígenas – tríade que caracteriza a região – configura um panorama de grande diversidade no Litoral Sul da Bahia. As várias frentes de articulação popular que lutam por qualidade de vida alimentar e social tornaram a região uma referência na produção agrícola sustentável.

“É um amplo processo de transição alimentar e requer conversão político-ideológica em relação à forma de organização, às relações de gênero e de cuidado com a natureza”, afirma o historiador Joaci de Sousa Cunha.

Tem que virar política pública            

A partir desse cenário micropolítico, a importância do apoio real e contínuo à agricultura familiar no Brasil, principalmente se for considerado o papel que os alimentos básicos cumprem na vida da população em geral, fica evidente, a não ser que não se queira enxergar. 

Dados do extinto Ministério do Desenvolvimento Agrário, de 2015, mostram que a agricultura familiar domina a produção de mandioca (87%), feijão (70%), carne suína (59%), leite (58%), carne de aves (50%) e milho (46%).

De acordo com o mais recente Censo Agropecuário brasileiro, de 2017, divulgado no ano passado,73% das pessoas que trabalham na produção agropecuária têm parentesco com o produtor, ou seja, têm raízes na agricultura familiar.

Desde que a produção de alimentos garanta independência política, um caminho de protagonismo e iniciativa, e não faça os agricultores se submeterem aos “pacotes que vem de cima”, o historiador Joaci de Sousa acredita que políticas públicas, como a do incentivo à agroecologia, são pilares para a agricultura familiar. 

No entanto, há um problema. E dos graves.   

“Infelizmente, os governos não transformaram isso [os programas] em política pública. Continuaram como programas que dependiam não de uma estrutura, mas de alocação de governo a governo. O PAA poderia ter sido consolidado, porque ele começou a promover uma revolução na base produtiva e nos hábitos alimentares”, avalia.

O historiador ainda enfatiza que a agroecologia deve ser entendida como uma das faces do processo de luta política pela terra. 

“É fundamental que a sociedade compreenda que um alimento limpo, um alimento que a gente possa confiar, é uma das missões da luta camponesa que não pode sobreviver sem a luta conjunta pela terra e por políticas públicas”, finaliza. 

Foto em destaque: Movimento Estadual de Trabalhadores Assentados, Acampados e Quilombolas (Ceta)

Com micropolítica em rede, a comida de verdade na Bahia   

Por Redação

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