‘Não somos racionais, e isso determina nossas escolhas alimentares’

Para uma escolha alimentar, boa ou ruim, basta um empurrãozinho. Esse argumento é do advogado Edgar Gastón Jacobs, pesquisador das relações entre direito e economia. Ele afirma que nossas decisões sobre comida não são racionais, na maioria das vezes. Na dúvida sobre o que comer, recorremos a emoções, lembranças e “atalhos mentais”, em suma, que orientam nossas opções.

“O que me faria deixar de comer um alimento supersaudável e me levaria a comer um alimento não-saudável?”, pergunta o advogado.

Jacobs, para responder à questão, fundamenta-se na economia comportamental. Trata-se de uma nova área do conhecimento, que procura, aliando-se à psicologia, à neurociência e às ciências sociais de um modo geral, desmistificar a ideia de que há uma racionalidade que dita as ações das pessoas e dos mercados. Hábitos, experiências, emoções, fatos aleatórios influenciam mais do que se pode imaginar o funcionamento da economia. E a indústria de alimentos sabe disso.

Em uma concepção mais clássica, as ditas ciências econômicas partem do pressuposto de que o ser humano é, invariavelmente, um ser racional. Sobre isso, porém, o pesquisador acrescenta: “O grande clique é que a questão da racionalidade existe, mas em muitos momentos da nossa vida nós não somos racionais”. Essa face irracional, de várias expressões, norteia nossas escolhas alimentares.

Para explicar este ponto de vista, o advogado toma emprestada a noção de nudge — “empurrãozinho”, em tradução livre do inglês. Esse conceito é utilizado por autores como Daniel Kahneman (1934 – ) e em obras da economia comportamental, como o livro Nudge: O Empurrão para a Escolha Certa (Richard Thaler e Cass Sunstein. 2019. 408p. Editora Objetiva), para detalhar os fatores que influenciam as pessoas na hora de tomar decisões.

Mineiro, Jacobs veio a São Paulo para uma palestra no seminário Da Ciência ao Prato, ocorrido em setembro. O evento foi organizado pelo projeto Alimentando Políticas, do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), com o objetivo de fomentar políticas públicas sobre alimentação baseadas em evidências. Na ocasião, Jacobs concedeu entrevista para O Joio e O Trigo.

Além de advogado, ele é doutor em direito e professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, pesquisador da Universidade José do Rosário Vellano e possui livros e publicações nas áreas de direito educacional, direito e economia, direito da propriedade e direito do consumidor e regulação.

Confira os principais trechos da entrevista abaixo.

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Pergunta – Na sua palestra, você disse que as pessoas, ao fazerem escolhas alimentares, sofrem algum tipo de manipulação ou indução. Como isso acontece?

Resposta – Normalmente, são estratégias de marketing baseadas em muita pesquisa. Não é um marketing intuitivo. É um marketing muito trabalhado para saber exatamente como o consumidor escolheria e induzir a esse comportamento. Esse é o rumo do marketing, que em si não tem nada de ruim, mas o foco dele é o lucro, é claro, e nunca a saúde. Pelo menos não o marketing da indústria [alimentícia].

Quais são os mecanismos e atores que interferem nas escolhas alimentares?

As emoções certamente interferem. Eu me lembro de várias vezes consumir determinado produto ou no estado mais de felicidade ou de pressa, que já é outro problema. A gente vive em uma sociedade hipercomplexa e de hiperconsumo. A gente tem tanta oferta o tempo todo que, se não escolher rápido, acha que vai perder uma oportunidade.

Nesse contexto, relacionado à velocidade da escolha, a gente ativa um sistema que o autor [Daniel] Kahneman chama de “sistema automático”: eu faço escolhas rápidas usando uma espécie de instinto natural que tenho. Por exemplo, não há instinto que não me guie para o chocolate, para o doce, para alimentos saborizados — às vezes, nem têm sabor, mas o sabor artificial me guia.

Por outro lado, o que me faria deixar de comer um alimento supersaudável e me levaria a comer um alimento não-saudável? Existe a questão específica das chamadas heurísticas. As heurísticas são espécies de atalhos mentais. Na dúvida para saber se um determinado é bom ou ruim, eu posso usar uma referência.

Assim, posso ter como referência que todos os produtos que eu comi que, por exemplo, eram da Coca-Cola eram saborosos. Então eu vou consumir algo porque é da Coca-Cola. Eu faço uma inferência falsa de que tudo é bom porque está ligado a essa marca e, com base nessa inferência, eu decido rápido.

O advogado Edgar Gastón Jacobs em palestra no evento Da Ciência ao Prato (Foto: Ricardo Massaki/Idec)

O ambiente também influencia?

Sim. Temos a questão do enquadramento. E aí a gente pode colocar a influência da família, da educação, é claro, mas também a influência do marketing dentro dos estabelecimentos. Muitas vezes, o nosso entorno vai facilitar escolhas ruins. Exemplo comum é a questão da altura na prateleira dos alimentos para a criança. Normalmente, está em uma altura que elas veem. Eu mudo o ambiente para forçar a uma escolha errada nesse caso.

Eu poderia mudar também para forçar a escolhas corretas. Aumentar o tamanho da letra [dos textos]. Esse é um caso do Código de Defesa do Consumidor. Ele obriga que esteja em fonte tamanho 12 tudo que é ruim para o consumidor em um contrato. Tem até uma história interessante, porque antes ele mandava que estivesse em negrito. Então, eu poderia fazer um negrito com fonte oito. Agora ele manda estar em fonte 12.

Após citar uma máxima do filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900), segundo a qual as meias-verdades prevalecem sobre a ciência, você afirmou que nós não somos totalmente racionais nas nossas decisões. O que isso quer dizer, especialmente a respeito de nossas escolhas alimentares?

A gente trabalha com a ideia de que as pessoas são racionais. O direito do consumidor, quando fala em não ter publicidade ou rotulagem enganosa, pressupõe que o consumidor é racional — ele escolheria usando a racionalidade. O grande clique, e aí vai a frase do Nietzsche, é que a questão da racionalidade existe, mas em muitos momentos da nossa vida nós não somos racionais.

É comum a gente fazer escolhas alimentares no ato da compra ou motivado por uma vontade muito grande de ter um produto. Então, o que move a gente é a emoção, sabor, que é importante também mas não é o único critério, esses tipos de critério.

Mas não é possível, mesmo assim, fazer escolhas alimentares com equilíbrio?

Aí entra o pressuposto da racionalidade. Essa é a meia-verdade. Quando eu imagino que as pessoas são sempre racionais, eu desprezo o fato que elas têm escolhas que não são. Temos emoções e outros valores que interferem, mas nós mesmos “desligamos” a nossa racionalidade. Em alguns momentos, é mais proveitoso agir rapidamente, agir por impulso, automaticamente. Isso melhora o dia a dia, mas atrapalha na hora de comer.

A indústria alimentícia diz que não existem alimentos ruins e que o melhor para a saúde é fazer escolhas alimentares equilibradas. Fiz a pergunta anterior por isso. O que diz uma narrativa do tipo?

Existe uma discussão que é muito interessante e importante para economia comportamental, que é a de jogar a responsabilidade para o indivíduo. A economia comportamental entende que há uma certa responsabilidade do indivíduo pelos seus atos, mas o Estado ajuda [o indivíduo] a escolher.

Um livro básico que começou a tratar desse tema é o Nudge, que tinha como subtítulo aqui no Brasil, O Empurrão para a Escolha Certa. Essa é a ideia. Tudo bem, eu não vou tolher as escolhas ruins, mas eu vou te empurrar para as escolhas corretas, assim como o marketing empurra para as escolhas que não são as melhores.

Qual o papel das políticas para evitar com que os consumidores sejam manipulados e sejam induzidos a escolhas mais saudáveis?

Eu vejo dois caminhos que são necessários. Pesquisar muito para saber em que situações eu consigo dar aquele “empurrão” para escolha certa e, depois com essa evidência comprovada, aplicar em uma lei para orientar a conduta das pessoas.

As nossas condutas, sim, são modificadas por lei. Agora a pergunta que a gente não se faz é exatamente de qual conduta eu estou tratando. Normalmente, a gente vê a conduta visível, como comprar algo. Mas e a conduta anterior, de tomada de decisão? O que eu estou fazendo por essa questão?

No Brasil, que políticas são importantes para isso?

Eu vejo hoje poucas políticas. Eu citaria uma lei no Rio de Janeiro que determina que o tamanho das fontes usadas para alimentos que estão em promoção seja a mesma para o valor do alimento, que é o que mais chama a atenção, e para a data de validade. Quer dizer que, se eu colocar o valor do alimento em fonte 70, eu vou ter que colocar a data de validade com a mesma fonte — e no mesmo lugar. Esse é um exemplo de lei.

Mas no Brasil há outras políticas que podem nos ajudar. Agora está em discussão [na Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa] o novo tipo de rotulagem. Além da questão da disponibilidade de informação ou da efetividade dos rótulos, a gente tem que saber como os novos rótulos influenciam na tomada de decisões. Isso seria uma modificação baseada em um nudge.

Agora, não é nudge, não é esse “empurrão”, uma política que envolva só tributo. Assim, eu desprezo o processo de escolha da pessoa no alimento. Será que o determinante é só o preço? E, se for o preço, será que ao ver algo mais caro ela deixa de comprar ou deixa de comprar outro produto? É muito mais importante olhar para o fato que está sendo regulado do que pensar em uma lei simplesmente por senso comum.

Propostas de rotulagem frontal em vias de decisão pela Anvisa (Imagem: Reprodução)

Recentemente, a Anvisa se inclinou a um modelo de alerta de rotulagem frontal semelhante ao existente no Canadá, com retângulos e uma lupa. Qual sua avaliação sobre este modelo? É bom ou é ruim? Por quê?

A priori, e isso é uma hipótese que deve ser testada, eu acho que os órgãos de defesa do consumidor podem testar, parece-me uma escolha ruim. Essa escolha nos leva a trilhar um caminho de decisão que é um caminho longo.

Tem uma lupa, e do lado da lupa estão sinalizados os problemas: “Alto em sódio”, “Alto em gorduras [saturadas]”, “Alto em açúcar [adicionado]”. Provavelmente o consumidor vai primeiro ver a lupa e só depois analisar o quadro. Eu sou capaz de intuir, mas acho que isso deve ser comprovado por evidências, que no momento que ele ver a lupa ele já decidiu, não dá nem tempo de ver o que está do lado.

Por outro lado, com a rotulagem em triângulo, ao bater o olho, a gente tem uma referência que a rotulagem em triângulo é uma rotulagem que indica perigo. A gente associa naturalmente, e essas associações comuns são as bases dos nudges.

(Foto do destaque: Ricardo Massaki – 18.set.2019/Idec)

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Por Guilherme Zocchio

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