Covid-19: os três personagens da tragédia anunciada

Quem ainda irá defender um grupo que zomba da desgraça alheia e aprofunda a desigualdade em um cenário de crise de saúde pública?

Moe, Larry e Curly. Você já ouviu falar desse trio. Por aqui, ele ganhou uma adaptação. Jair Bolsonaro, Luiz Henrique Mandetta e Paulo Guedes. Em vez da televisão em preto e branco, estão à frente do Brasil durante “uma pequena crise”, algo “superdimensionado” ou “uma fantasia” que, de acordo com os últimos números oficiais, até aqui infectou 1.891 pessoas e vitimou 34. “Histeria”, dizem sobre a Covid-19.

As definições vêm de palavras do presidente Bolsonaro, paródia de Moe, que na versão original de Os Três Patetas gosta de distribuir impropérios e agressões, mas que é apenas engraçado, e não, perigoso, como a tosca versão tupiniquim.

A essa altura da epidemia do novo coronavírus (o SARS-CoV-2), a situação do país bem que, para alívio do público, poderia ser uma comédia, mas, enfim, percebe-se que, na verdade, é uma tragédia — muito mais duradoura do que obras de Ésquilo, Sófocles ou Eurípedes. A “pequena crise” iniciada em março deve estabilizar apenas em setembro, seis meses depois, segundo previsões, sabe-se lá com quais sequelas.

Os protagonistas têm créditos na direção, embora culpe-se o coro pelos rumos que o enredo seguiu.

Fala-se que o brasileiro é caloroso demais, gosta de beijos e abraços quando deveria evitar, o que, porém, não é dito enfaticamente. Também, afirma-se que o povo mantém as portas do comércio abertas, quando deveria fechar, mas, sem muitas garantias, o micro e o pequeno empresário, que pegam no batente todo dia, não veem alternativa.

Critica-se, ainda, aqueles que, quando muito, são tratados como coadjuvantes: o motoboy, o motorista, que se expõem aos riscos da doença, os mesmos, no entanto, para quem é mais arriscado não ter dinheiro ao fim do mês. Isso, sem falar daqueles vistos um degrau abaixo, como figurantes, moradores das regiões pobres do país, que mal têm emprego ou residência.

Mandetta, ministro da Saúde, é o pior ator do trio, assim como Larry é o menos memorável dos Patetas. Em O Joio e O Trigo, sabíamos dos papeis que ele já desempenhara: de declarações equivocadas sobre alimentação à privatização do que é público.

No prólogo da crise desencadeada pelo coronavírus, Mandetta encenou que, em fevereiro, o Brasil estaria preparado para enfrentar o obstáculo: “Nosso sistema de saúde já passou por epidemias graves e nós vamos passar por esta situação”, declarou no fim daquele mês, quando se recusou a adotar medidas mais enérgicas.

Nos últimos atos, entretanto, o ministro mostrou que não havia estudado o roteiro com o devido cuidado. Voltou atrás. “Claramente”, disse na última sexta-feira (20), apenas um mês depois, “em final abril o nosso sistema de saúde entra em colapso.”

Agora, ele está envolvido em um caso de conflito de interesses por comprar para o Ministério da Saúde insumos médicos de uma empresa que financiou a sua campanha a deputado federal, como mostrou o jornalista Breno Costa. Não obstante, Mandetta também insinua que são as pessoas, e não as autoridades, que adotam a conduta errada durante a crise.

O ministro minimizou a imprudência de Bolsonaro, que descumpriu a recomendação de evitar aglomerações incentivando e participando das manifestações de 15 de março. “Não é ele, é todo mundo”, comentou Mandetta, com uma crítica aquém do necessário, em uma entrevista concedida sobre protestos ocorridos no mesmo dia.

Se há alguma relação da sociedade brasileira com o curso que toma a história do Covid-19, isso diz respeito à dramática desigualdade social. Os ricos trouxeram a doença ao país e os pobres foram os primeiros a morrer.

A primeira vítima confirmada da nova doença era um homem de 62 anos, porteiro aposentado. No Rio de Janeiro, o segundo caso fatal registrado foi o de uma mulher de 63 anos que trabalhava como empregada doméstica. Ela provavelmente contraiu o vírus da patroa, que havia retornado doente da Itália e não informou à funcionária.

Morreram desconhecidos, os nomes não foram revelados. Pouco, além das profissões, as funções periféricas no capitalismo à brasileira, de herança escravagista, sabe-se sobre os dois. Mais tarde, serão apenas estatísticas, outro número a adicionar na contagem final da epidemia que varre o país.

Nada mais clássico. Na antiguidade, as rapsódias silenciavam sobre a plebe para falar dos aristos — termo do grego antigo que originou a palavra aristrocracia. Com sutis diferenças, há quem, na modernidade, trate do povo, mas por linhas tortas. Paulo Guedes é um desses.

Antecipando o clímax da desgraça, o ministro da Economia assumiu o papel que lhe é característico. Anunciou que, para o combate da epidemia da Covid-19, o governo federal quer permitir que empresas cortem a jornada e o salário pela metade. “Para preservar os empregos”, argumentou sua equipe, que disse mais: oferecerá R$ 200 por mês a trabalhadores informais.

A ação de Guedes não termina por aí. Ao lado do presidente da República, publicaram os dois, nesta segunda-feira (23), uma medida provisória que permite que empresas suspendam os contratos de trabalho —e os salários— por até quatro meses. Mais tarde no mesmo dia, a dupla voltou atrás e alegou um erro redação na regra.

Teria sido um ato falho? Algo que é imprevisto, e, ainda assim, desejado. O Painel do jornal Folha de S.Paulo informou que o Ministério da Economia se reuniu com empresários, sem ouvir os trabalhadores, dias antes de editar a medida provisória.

Da esq. à dir., Curly, Moe e Larry, versão original de três autoridades brasileiras (Imagem: Reprodução)

Congelar o preço dos aluguéis? Conceder crédito com juro subsidiado? Isentar contas de água e de luz? Ou simplesmente oferecer um apoio decente em dinheiro? “Nem pensar! Coisa de comunistas!”, frases do repertório. “Comunistas” como Donald Trump, o oráculo de Bolsonaro, que negocia oferecer entre US$ 1 mil US$ 2 mil às famílias nos Estados Unidos.

Nada é mais característico dos chamados liberais brasileiros do que as ações de Guedes — e aqui vale um parênteses: também um liberal, o inglês John Locke (1632-1704) disse que era legítimo derrubar do poder o tirano, quando esse usurpava as garantias do povo.

Nos Patetas, Curly contracenou passagens icônicas com Moe, com quem compartilhava da agressividade, além das trocas de socos, dedadas e empurrões. Fiavam-se um no outro para o sucesso do show. O mesmo se passa com Guedes e Bolsonaro.

Neste momento, o trio de patetas direciona a agressividade para outros alvos. “Brevemente, o povo saberá que foi enganado por esses governadores e por grande parte da mídia nessa questão do coronavírus”, afirmou o líder do grupo no último final de semana.

Como na ironia trágica, ele pensa que fala dos outros, mas diz, sem saber, uma verdade sobre si: mais breve ainda, todos saberão que foram enganados por Jair Bolsonaro e a mamadeira de piroca.

Para nós, o que se passa não é exatamente uma novidade. Desde o início de “isso daí”, em janeiro de 2019, O Joio acompanha o desmanche de políticas sociais conduzido pelo capitão reformado do exército brasileiro e sua trupe.

Programas de enfrentamento à miséria descontinuados, órgãos de combate à fome extintos, estoques públicos de alimentos com as portas fechadas, desidratação do apoio à construção de cisternas… Engana-se quem pensa que o pacote de maldades terminaria com a Reforma da Previdência.

Cedo ou tarde, entretanto, o coro iria alertar sobre uma peripécia: os personagens da tragédia sofreriam o revés de uma reviravolta.

Panelas bateram nas janelas do país por seis dias consecutivos, enquanto um primeiro pedido de impeachment de Bolsonaro era protocolado no Congresso Nacional. Até esta segunda, já são duas as solicitações e, segundo levantamento do jornal Folha de S.Paulo, há 15 atos de Bolsonaro que poderiam ser enquadrados como crime de responsabilidade.

Há algo de peculiar nas tragédias. O sofrimento pode ser irrestrito a todos os personagens. Porém são os protagonistas, sem exceção, que sofrem os mais fatídicos destinos. A hora chegará para o trio de patetas que conduz o Brasil durante esta tormenta.

*Texto atualizado às 10h55 de terça-feira (24) para inclusão de informações sobre a medida 
provisória que permitia a suspensão de contratos de trabalho, além de atualização sobre os

números da Covid-19.
Por Guilherme Zocchio

Matérias relacionadas