The Video Game Soda Machine Project

Máquinas de refrigerante aos milhares no mundo dos games

Trabalho de pesquisador que começou com uma piada segue a catalogar número gigante de “vending machines” em jogos virtuais

Jason Morrissete é um cara viciado em refrigerantes. Ou seja, este texto começou mal. Lá vem história lugar-comum. Quanta gente não consegue ficar longe de um refri? Bem, digamos que o vício de Jason é “diferente”. A obsessão dele não é pelo açúcar ou pelas várias substâncias aditivas misturadas com água e gás e despejadas em embalagens coloridas. São as máquinas dessas bebidas que o atraem. Falo daquelas de colocar notas ou moedinhas e esperar a latinha cair: as “vending machines”, geringonças automáticas que não são muito mais do que geladeiras chamativas com um sistema de venda e cobrança.

E a mania de Morrissete se aprofunda em camadas específicas. Ele gosta mesmo é das máquinas de venda virtuais. Como assim, diacho? Esse homem não tem o que fazer na vida? Pior que tem. E muito.

Jess, como prefere ser tratado, trabalha bastante. É professor de ciência política na  Universidade Marshall (Marshall University), uma instituição pública de ensino superior localizada na cidade de Huntington, no estado da Virgínia Ocidental, nos Estados Unidos.

É também o criador do The Video Game Soda Machine Project, um site com o objetivo de catalogar capturas de tela de todas as máquinas de venda automática de refrigerantes que já apareceram em videogames. Em números atualizados, a coleção apresenta mais de três mil máquinas, abrangendo mais de 1.500 jogos em praticamente todos os gêneros e plataformas. 

“Penso muito em máquinas de bebidas e onde elas se encaixam mais amplamente nos jogos desde que lancei o The Video Game Soda Machine Project, em 2016. O projeto, como todas as melhores ideias, começou como uma piada”, brinca Jess, numa tirada de sarro que tem fundo de verdade.

Foi numa tuitada de captura de tela de uma máquina de bebidas fictícias apelidada de “Sprinkle Fizz”, do jogo Batman: Arkham Knight, que ele sugeriu que “alguém” compilasse uma lista de itens semelhantes em outros jogos. Não teve jeito. Sem voluntários inicialmente, esse “alguém” se tonou ele próprio.

Foi num jogo do Homem-Morcego que tudo começou para Jess Morrissete (The Video Game Soda Machine Project)

A partir dali, várias publicações no Twitter de Jess criaram um senso de comunidade em torno do projeto. Jogadores de várias partes do mundo demonstraram interesse e começaram a capturar telas em que aparecem máquinas de refrigerante e enviar ao pesquisador. Morrissette incentivou as pessoas e passou a publicar mais e mais, sempre dando créditos a quem manda sugestões. 

E à medida que essa coleção peculiar cresce, o professor reflete proporcionalmente sobre o quanto as máquinas interferem no design de jogos, o que elas significam e por que aparecem com tanta frequência ao longo da história. 

“Não é como se elas aparecessem aleatoriamente em nossos jogos favoritos. Os desenvolvedores fazem escolhas conscientes de design para incluí-las, presumivelmente com um senso de propósito que varia de um contexto para outro”, explica. 

Luz nas sombras e radiação

Mesmo que você não curta super-heróis, há uma boa possibilidade de que já tenha ouvido falar de Gotham City, a cidade do Batman. E do quanto ela é sombria, cheia de becos sujos. Pois é. Isso muda um tanto quando surge uma colorida máquina de refrigerantes.

“Num primeiro momento, foi o que me chamou a atenção no jogo Arkham Knight. A máquina se destacava porque era uma anomalia de cores energéticas em meio ás sombras”, conta Jess.    

De fato, a máquina azul-rosada chega a iluminar as ruas de Gotham, servindo de “farol” aos jogadores. Nesse quesito, é mais eficaz do que qualquer poste de iluminação pública. E, segundo o pesquisador, as luzes e cores de máquinas de bebidas açucaradas colocadas em corredores sombrios não são exclusividade do universo do Homem-Morcego. Famosos jogos de terror, a exemplo de Silent Hill e Resident Evil, também utilizam o recurso, assim como alternativas mais infantis, casos de Super Mario Bros, Pokémon e Tartarugas Ninja.

Queridas Tartarugas Ninja, comer pizza de vez em quando, beleza, mas larguem mão do refeigerante (The Video Game Soda Machine Project)

No entanto, nada impacta tanto — pelo menos, não a mim — quanto a série de jogos Fallout, conhecida por altos graus de violência. Nela, a ingestão de  uma lata de “Nuka-Cola” (uma referência às Cocas e Pepsis da vida) chega a restaurar a “saúde” do personagem controlado pelo jogador, ainda que o bonequinho virtual tenha recebido sopapos, facadas, tiros e até bombas. Milagroso: você toma um refri e ganha o fator de cura do Wolverine

Porém, fique atento: sabe-se lá se contendo alto grau de ironia por parte dos desenvolvedores, é grande o risco de dependência ou até de exposição à radiação se o jogador exagerar na bebida. Não sei se contaminação radioativa pode ser considerada uma doença crônica não transmissível, mas que isso lembra os males — diabetes, hipertensão e até câncer — associados ao consumo excessivo de ultraprocessados no mundo real, refrigerantes incluídos, parece inegável.

Na série Fallout, um duelo entre armas e refrigerantes mostra que os dois têm potencial destrutivo (The Video Game Soda Machine Project)

Jess conta uma passagem curiosa sobre essa série de games e a “Nuke-Cola”.

“O Fallout 76 [um dos jogos da série] teve um  momento de ressurgimento com a introdução de máquinas de venda controlada por jogadores em 2019. Uma economia próspera no jogo surgiu onde os jogadores poderiam vender de tudo, desde a Nuka-Cola até armas nucleares, por diversão e lucro. Mas o jogo não durou muito. Todo mundo ficou rapidamente entediado. Eu acredito que o capitalismo ali foi divertido enquanto durou”, comenta.  

Pra que tudo isso?  

Entre os maiores desafios dos designers de jogos, um consenso é a construção de cenários de imersão capazes de manter os jogadores mergulhados no ambiente do game, fazendo com que se sintam “presentes” no mundo virtual. E as máquinas de refrigerante são uma parte tão onipresente na vida moderna, em tantas partes do planeta, que acabaram por se tonar um elemento reconhecido rapidamente. Quando, por exemplo, elas surgem em um cenário futurista, ajudam a vincular ficção científica a algo que faz sentido para quem vive no século 21.  Quando aparecem anacronicamente, em um jogo ambientado no passado, sinalizam que esse período não era tão diferente do nosso.

Tudo captura de afetos, óbvio, porque os nossos ancestrais caçadores e coletores certamente nunca se preocuparam em encher a pança com gás e açúcar, e, no futuro (torço fervorosamente) as novas gerações serão muito mais cuidadosas com os impactos na saúde pública e no ambiente que a junk food já causa.  

Mas, nessa toada de sequestro de afeições, é bem fácil entender como Jason Morrissete conseguiu catalogar três mil máquinas. Ele tenta resumir os sentimentos que hoje nutre pelo número que o projeto alcançou.   

“Como fã e desenvolvedor de jogos, é muito legal poder me aprofundar nos detalhes e reunir outros fãs e desenvolvedores para debater os cenários, a imersão, a qualidade de cada jogo. Como acadêmico, eu realmente subestimei bastante quantas máquinas de refrigerantes estavam nos jogos. Quando o projeto atingiu cem capturas de tela, eu tinha certeza de que estava chegando ao fim. Pensei a mesma coisa quando chegou a duzentas e, novamente, quando chegou a seiscentas”, ressalta Jess.

Agora, na casa dos milhares, ele está convencido de que há pelo menos mais algumas centenas de máquinas por aí, esperando para serem descobertas.

“Isso é, sem dúvida, entre tantas coisas, também um retrato do mundo de consumo excessivo em que vivemos. A onipresença das máquinas impressiona”, pondera.

E na real?

Além da “Nuka-Cola”, do violento Fallout, ou do “Sprinkle Fizz”, de Gotham, o pesquisador conta que chegou a encontrar marcas reais. O site documenta alguns produtos conhecidos, frutos de acordos de marketing que enchem os mundos virtuais com Coca-Cola ou Mountain Dew, um treco verde-limão fabricado pela Pepsico, que, aliás, joga milhões de dólares anualmente em patrocínios de megaeventos “gamers” e conseguiu, vendendo aos jogadores muita bebida açucarada e muito Doritos, reverter a tendência de queda na comercialização de produtos ultraprocessados da corporação.     

“Vivemos em uma cultura inundada pela publicidade. E empresas de refrigerantes como Coca-Cola e Pepsi foram fundamentais para criar essa cultura. Por sua vez, grandes empresas de jogos, como a Capcom, surfam nessa ideia e brincam à vontade com ela”, enfatiza Jess.   

O Pepsiman, da Pepsico, que reverte tendência de queda de vendas ao custo da saúde de quem ama games (Divulgação)

Em um dos casos mencionados pelo professor, um dos jogos da Capcom, o Devil May Cry, circulava entre os potenciais jogadores latas de “Virility”, como parte de uma campanha de marketing viral. Linhas gerais, a mensagem era a seguinte: “Essa é a única bebida de que você precisará”, enquanto cartazes e outdoors do jogo prometiam um “você mais apto, inteligente e sexy”. Tá bom.

Um refrigerante que promete virilidade pode até atender aos mais tradicionais padrões de macheza de uma estrutura capitalista-patriarcal, mas, convenhamos, levados em conta os aspectos não saudáveis dos refris de verdade, é uma baita de uma mentira enlatada, embora virtual (lembremos do sequestro de afetos).  

Só que a bizarrice não fica restrita aos videogames. Na vida de carne e osso, a coisa também é feia. Não é raro ver máquinas automáticas de venda de ultraprocessados em escolas e hospitais, no cúmulo do absurdo.

“Sabemos que dietas ricas em açúcar estão relacionadas com a obesidade, diabetes tipo 2 e uma série de outros problemas, enquanto que uma dieta rica em sal contribui para a pressão arterial elevada. Mas ter máquinas de venda automática no coração dos nossos hospitais envia a mensagem de que não há problema em comer lanches doces e salgados”, aponta esse ótimo texto, traduzido do Daily Mail, da Inglaterra, pelo site brasileiro Tia Beth.  

Falando em Brasil, pra começar, a gente encontra por aqui, fácil, fácil, a maioria dos jogos — e das máquinas de refri — citados nesta matéria. Fora isso, no chão do dia a dia, nossos ambientes alimentares são preenchidos por comida-porcaria. Dê uma circulada por metrôs e escolas e você corre o sério risco de topar com uma máquina automática de venda de refrigerantes.

Conselho de amigo: entre as ruas e os games, é melhor sempre ignorá-las.    

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