O Joio e O Trigo

O olho que tudo vê: como a indústria barrou uma lei municipal de restrição a ultraprocessados

Iniciativas locais podem ajudar a promover hábitos mais saudáveis; conheça projeto que desestimulava comida-porcaria em Jundiaí, mas foi vetado pela prefeitura

Jundiaí. Interior do estado de São Paulo. 70 km de distância da capital. No ano de 2018, o vereador Faouaz Taha (PSDB) conseguiu fazer passar pelo legislativo local um projeto de lei que proibiria estabelecimentos comerciais de exibir alimentos ultraprocessados, como docinhos e refrigerantes, em prateleiras com menos de um metro de altura.

O objetivo era proteger crianças da publicidade apelativa e contribuir para evitar o desenvolvimento de doenças crônicas e obesidade, aliviando a pressão sobre o sistema público de saúde. Estima-se que o tratamento de doenças relacionadas à obesidade custe ao Sistema Único de Saúde (SUS) R$ 500 milhões por ano e que esses males correspondiam, antes da pandemia do coronavírus, a 70% das mortes no país. 

Além disso, segundo o IBGE, 27,6% das crianças brasileiras na faixa de 5 a 9 anos estão acima do peso. Nessa mesma faixa, 13 em cada 100 são obesas. Os índices de obesidade para jovens de 10 a 15 anos triplicaram entre 1986 e 2016.

A ideia de proibir a exibição dos ultraprocessados é um caso que exemplifica como iniciativas locais podem ajudar a promover hábitos alimentares mais saudáveis. Durante as eleições de 2020, a proposta pode servir como inspiração para candidatos às prefeituras e vereanças.

O prosseguimento do projeto de lei no interior paulista traz à tona, também, como a indústria de alimentos ultraprocessados atua para evitar qualquer medida regulatória. Jundiaí, um município de 350 mil habitantes, é sede de algumas das corporações mais emblemáticas do setor.

Elaborado com apoio do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec) e do Instituto Alana, o PL 12.336/2017, de autoria de Taha, passou, durante o ano de 2017, sem dificuldades por todas as comissões da Câmara Municipal de Jundiaí antes de ser aprovado por 14 votos a 1, em uma sessão repleta de falas entusiasmadas e elogios ao projeto de lei.

“Daqui a pouco vamos tirar dinheiro de todas as áreas para botar na Saúde e não vai resolver o problema”, discursou enfaticamente o vereador Rafael Antonucci (PSDB), antes de sugerir que a restrição de ultraprocessados se estendesse a terminais de ônibus e parques públicos. 

Cale-se agora, fale para sempre

Vinte dias depois, no entanto, o prefeito Luiz Fernando Machado, também do PSDB, decidiu vetar o PL, sob justificativa de que “no atual cenário econômico do país” seria impossível contratar e treinar fiscais para identificar produtos ultraprocessados nos mercados. “Diminuição de lucros, desemprego e perda de arrecadação” também eram riscos trazidos pela nova lei, conforme argumentou o chefe do executivo. 

À época o país enfrentava um cenário econômico difícil, é verdade. O Produto Interno Bruto registrava o crescimento de apenas 1,32% por dois anos seguidos (2017 e 2018), depois de um período de crise econômica com duas quedas de mais de 3% do PIB em 2015 e 2016.

Por decorrência, a arrecadação de impostos caiu, e os recursos financeiros dos governos começaram a minguar. Desse contexto, vieram propostas como a Emenda Constitucional 95, que estabeleceu um “teto” para os gastos públicos com saúde e educação, entre outras medidas cujo foco era desobrigar o Estado de garantir direitos para recuperar o caixa.

Jundiaí, como outras cidades brasileiras, iniciou naquele momento um período de ajuste fiscal, buscando reequilibrar as contas. Mas, segundo informações do próprio município, 65% de seus débitos haviam sido sanados, entre janeiro e novembro de 2017, com menos de um ano de reestruturação das finanças públicas. 

“Recuperamos a capacidade de planejar e a credibilidade da prefeitura com o objetivo de melhorar a qualidade dos serviços entregues à população. Estamos fazendo um ajuste nos gastos públicos e adequando-os à realidade da arrecadação da cidade”, declarou Machado em uma nota do site oficial municipal, publicada em dezembro daquele ano.

O controle relativamente rápido das dívidas do município, além do fato de o projeto de restrição de ultraprocessados ter um baixo custo para ser colocado em vigor, levantam, então, outras motivações sobre o veto à proposta, comenta o autor do PL.

Não colocá-lo em prática seria conveniente para o poder econômico da região, onde estão instaladas algumas das principais corporações multinacionais que fabricam ultraprocessados. “Aqui em Jundiaí nós temos uma indústria alimentícia fortíssima. Fábricas da Coca-Cola, Ambev, Fini…”, descreve Taha. 

Na conversa que teve com o Joio, o vereador afirmou que representantes das empresas não participaram de nenhuma das audiências públicas para discussão do projeto de lei.

“Não fomos procurados por elas durante o debate prévio do PL”, disse. Isso quer dizer que as companhias de ultraprocessados sequer apresentaram publicamente seus argumentos. “Depois da aprovação, as empresas foram procurar o prefeito, [porque] sabiam que teriam prejuízo. Acredito que a pressão foi muito grande”, acrescentou Taha.

Uma jogada direto ao rei

Esse tipo de estratégia empresarial não é bem uma novidade. Ignorar os peões e marchar direto ao rei é uma prática que associações de empresas mantêm como uma espécie de mandamento bíblico. Em O Joio e O Trigo, mostramos como isso acontece em órgãos públicos das mais diversas esferas e dos mais variados temas.

Para tomar um caso recente, basta olhar para a aprovação dos alertas em alimentos na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). No decorrer do processo que culminou na escolha de selos com lupas, representantes de empresas como Ambev, Coca-Cola, Danone e Nestlé tentaram influir na discussão não pelas vias legítimas de participação, mas diretamente com os diretores da Anvisa  — inclusive em reuniões cujo compromisso não constava em agenda oficial.

Em certo momento, o lobby dos empresários foi além e chegou até a pedir que o então presidente Michel Temer (2016-2018) interferisse no assunto, mesmo sem ele saber bulhufas a respeito. Nesse caso, não se tratou de um encontro nos porões do Palácio do Jaburu para “manter isso aí”, mas de uma reunião na sede da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), na capital paulista. 

Não é por acaso, portanto, que as mesmas empresas, representadas pelas suas associações de classe, estivessem presentes tanto nas decisões sobre rotulagem, em Brasília, quanto em um projeto de lei sobre o comércio de alimentos em uma cidade do interior de São Paulo. A indústria tudo vê, tudo sabe e tudo quer.

Após o xeque-mate

O veto do prefeito de Jundiaí voltou à Câmara em meados de maio de 2018, mas dessa vez a Casa decidiu se posicionar de modo conveniente à indústria alimentícia, com 11 votos favoráveis à decisão do Poder Executivo e 6 contrários. 

Justificando a mudança de voto, o vereador Valdeci Vilar (PTB) chegou a dizer que havia sido “procurado por comerciantes” e que agora tinha o entendimento de que sua “classe” sairia prejudicada com a aprovação da nova lei. Questionado por um colega pelo fato de não ser vendedor de alimentos, o vereador petebista se explicou: “Eu vendo prateleiras”. 

Na ocasião, a Associação Paulista de Supermercados (Apas) comemorou a derrubada do projeto: “Mais uma vitória para o setor supermercadista. O projeto de lei da cidade de Jundiaí que regularia a exposição de produtos alimentícios ultraprocessados [foi] arquivado. A manutenção do veto é consequência do árduo trabalho realizado pela Apas e associações da indústria de alimentos.”

Atualmente candidato, Taha disse à reportagem que pretende reapresentar o projeto de restringir a exibição de ultraprocessados, caso seja reconduzido à Câmara Municipal. Apesar do veto, ele afirma que a apresentação do PL foi importante para chamar a atenção da sociedade sobre a importância de promover uma alimentação adequada e saudável.

“Vamos voltar a discutir, ouvir de novo, e quem sabe eles [a indústria alimentícia] participam conosco”, afirmou.

Jundiaí, aliás, tornou-se o primeiro do estado de São Paulo, e o segundo do Brasil, a aderir a uma rede latino-americana com um comitê político formado por crianças. A iniciativa é uma das marcas da gestão do prefeito Machado na cidade, e tem como foco valorizar a proteção dos direitos à primeira infância.

Para Taha, o contexto de atenção aos direitos das crianças torna favorável a apreciação de um projeto pela alimentação saudável. Ele acredita que as discussões do PL, em que pese o insucesso em aprová-lo, provocaram uma mudança de mentalidade local, chamando a atenção sobre a necessidade de restringir os ultraprocessados. “O mundo está mudando e eles [a indústria de alimentos] precisam se adaptar. Não somos nós que precisamos nos adaptar a eles.”

Se a moda pega…

Para Gabriela Glinternik, chefe do Procon da cidade à época da votação e uma das cabeças por trás do projeto, a preocupação da indústria era que a lei de Jundiaí pudesse “fazer pegar a moda” de restringir a venda de alimentos ultraprocessados. Ou seja, a partir da iniciativa municipal, propostas do tipo poderiam surgir em mais lugares.

“Apesar de não ter sido aprovado, o projeto foi uma unanimidade, teve muito envolvimento da comunidade”, diz. “A proposta despertou a consciência sobre o apelo que a alimentação tem na saúde das pessoas de qualquer idade.”

Glinternik avalia que o projeto toca em uma questão importante: evita compras não conscientes, por restringir a presença de produtos próximo à caixa registradora. “Quando alguém vai fazer as compras, precisa estar consciente do que está fazendo. Mas, se você chega na hora de pagar e encontra aquele ‘labirinto’ de produtos na fila do caixa, essa consciência vai por água abaixo. Não deveria haver esse tipo de assédio no caixa. O caixa é para pagar, e o consumidor tem que estar focado”, comenta a advogada.

Medidas do tipo têm impacto. Uma iniciativa semelhante à de Jundiaí já foi implementada em Berkeley, no Estado da Califórnia, costa-oeste dos Estados Unidos. Por lá, o Conselho Municipal, equivalente à Câmara Municipal, aprovou uma lei para banir a exibição de certos tipos de comida-porcaria. A regra proíbe alimentos com altos índices de açúcares adicionados e de sal nas gôndolas dos caixas de pagamento dos estabelecimentos maiores que 230 m².

Parece algo bem específico, mas a iniciativa adotada na Terra do Tio Sam —onde, aliás, os ultraprocessados abundam como em pouco países do mundo— soma-se a outras que trazem resultados. Entre 2004 e 2016, em Berkeley, as compras de bebidas adoçadas caíram de 10,9% para 3,3% entre crianças e de 12,7% para 9,1% entre adultos, segundo os achados de um estudo no Journal of the Academy of Nutrition and Dietetics.

Por Guilherme Zocchio

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