O Joio e O Trigo

Coca e Ambev podem ganhar mais benefícios públicos com reforma tributária

‘Erro’ no projeto de lei dá mais R$ 200 milhões ao ano para corporações e amplia para R$ 2 bi esquema na Zona Franca. Na outra mão, reforma propõe imposto sobre refrigerantes

A reforma tributária em tramitação no Congresso pode aumentar ainda mais os incentivos para a fabricação de refrigerantes no Brasil, ampliando para cerca de R$ 2 bilhões a soma estimada dos créditos presumidos a serem recebidos anualmente por Coca-Cola e Ambev.

O Projeto de Lei 68/2024 regulamenta o novo modelo de cobrança de impostos e cria regras específicas para a manutenção do regime especial da Zona Franca de Manaus, garantida ainda na aprovação do texto principal, em dezembro de 2023.

Por ser produzida na área de livre comércio, a matéria-prima mais importante dos refrigerantes, os concentrados, tem alíquotas zeradas de PIS/Cofins e isenção do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). Há ainda abatimento de ICMS, o tributo estadual sobre a circulação de mercadorias e serviços, e outros incentivos no âmbito municipal. 

As empresas que fabricam os concentrados na região também se beneficiam da redução de 75% no Imposto de Renda sobre Pessoa Jurídica. Em abril, mostramos no Joio que a Coca-Cola poupou R$ 4,3 bilhões ao longo de nove anos apenas com esse descontão no IR. 

Crédito presumido é um instrumento que impede que se pague novamente imposto sobre itens que já foram tributados antes. É uma maneira de evitar que a tributação em cascata acabe afetando o preço final de um produto.

É o caso do IPI, por exemplo. Mesmo sendo isentos, os produtos fabricados na Zona Franca podem receber “de volta” o valor equivalente à alíquota deste tributo. No caso dos concentrados, o IPI já foi de 27% e hoje está em 8%.  

Votado em regime de urgência pelos deputados, o texto enviado pela equipe econômica do governo aos deputados tinha mais de 500 artigos. Um inciso passou (quase) despercebido: parte dos produtos fabricados na região passarão a ter créditos presumidos sobre a Contribuição Social sobre Bens e Serviços (CBS), que substituirá impostos federais

O problema é que os concentrados já não pagam esse tributo e deveriam ter entrado em uma lista de exceções. Ou seja, em vez de manter as atuais condições de benefícios do setor, o texto acaba por ampliar em cerca de R$ 200 milhões ao ano os incentivos para a produção da bebida. 

“O fato de que hoje não se aplica PIS/Cofins no concentrado de refrigerante não foi trazido para o modelo. Logo, o concentrado de refrigerante na CBS passará a ter esse crédito presumido de 2%”, explicou ao Joio uma fonte do Ministério da Fazenda.

Somado à devolução de IPI e de ICMS, o valor pode chegar a pouco mais de R$ 2 bilhões, segundo cálculo feito com base no faturamento do setor em 2023 e considerando apenas os tributos que incidem sobre produtos (atualmente IPI e ICMS, e, no futuro, o crédito da CBS).  

Os refrigerantes também protagonizam mais uma irracionalidade na reforma tributária. Ao mesmo tempo que vão seguir se beneficiando de um vantajoso pacote de incentivos fiscais na etapa principal de seu processo produtivo, devem ser incluídos no Imposto Seletivo, que cria uma taxação extra para produtos nocivos ao meio ambiente ou à saúde. 

Trecho do projeto de lei 68: texto foi enviado pelo próprio governo sem excluir setor de concentrados e mantido na votação pela Câmara dos Deputados, no último dia 10 de julho. Imagem: Reprodução

Custo político

A política tributária vigente na Zona Franca de Manaus é diferente do restante do país, com uma série de vantagens em impostos federais, estaduais e municipais. Um regime diferenciado criado para ser temporário, mas que já dura meio século e deverá vigorar por outros cinquenta anos. 

Diante da pressão exercida pelos parlamentares da região e pelos setores econômicos lá instalados, a área de livre comércio foi mantida na votação do texto principal, em dezembro de 2023, contrariando a ideia original da equipe econômica do governo federal e da reforma de um modo geral, que é simplificar e unificar tributos. 

Na prática, isso cria dois sistemas tributários paralelos: o da Zona Franca e o do restante do país. O IPI, por exemplo, seguirá valendo de forma excepcional apenas para os produtos similares aos que são fabricados no Polo Industrial de Manaus. Isso garante que os setores instalados na região continuem se beneficiando com créditos, mantendo a ideia original da Zona Franca de criar um diferencial competitivo. 

No caso dos refrigerantes, Coca-Cola e Ambev vendem o concentrado para suas próprias envasadoras, com alíquota zerada de IPI. Com isso, acumulam créditos, mesmo sem terem pago. 

Apenas essa modalidade de incentivo garante, ao ano, cerca de R$ 755 milhões de economia para as duas corporações, considerando o faturamento do setor em 2023 e tomando por base dados públicos disponibilizados pela Superintendência da Zona Franca de Manaus, a Suframa.

Procuramos a Coca-Cola e a Ambev, mas ambas optaram por não se manifestar sobre o tema. 

Equívoco

Integrantes da equipe econômica do governo federal argumentam que houve um equívoco na redação do texto. 

No entanto, coube a um membro da oposição apresentar uma emenda que sugeria retirar os concentrados da regra. “Sempre defendi a ZFM, mas isso coloca [o regime] em descrédito no restante do país “, avaliou o deputado Domingos Sávio (PL/MG). “Minha opinião é que deve seguir existindo para incentivar o desenvolvimento da Amazônia e de Manaus, mas não para ser objeto de enriquecimento de multinacionais como Coca-Cola e Ambev em prejuízo de empresas nacionais.” Vale lembrar que já nos anos 1990 a Procuradoria da Fazenda Nacional, ligada ao Poder Executivo, alertou que o esquema vigente na Zona Franca representava um caso de “enriquecimento ilícito”.


Domingos Sávio (PL/MG): Presidente, apenas um esclarecimento do Relator [… ] Na Emenda 569, nós tratávamos de retirar uma questão que me pareceu, até em conversa com o pessoal da Fazenda, um equívoco. Essa emenda amplia o benefício para a questão dos xaropes na Zona Franca de Manaus, que já é uma questão de altas controvérsias.

Presidente Arthur Lira (PP/AL): Qual é o texto que vai ampliar xarope, Deputado?

DS: É uma emenda que amplia o atual benefício de 8% para 10%.

AL: O senhor quer dizer que essa emenda foi acatada?

DS: Não, eu quero dizer que essa matéria veio no texto do PLP 68. Conversando com o próprio Appy, ele disse: “Olha, isso deve ter sido um equívoco. Não era nossa intenção aumentar o benefício fiscal”.Aí é curioso que, infelizmente, minha emenda pareça não ter sido acatada. Eu queria ouvir do Deputado Reginaldo se ela foi ou não acatada.

AL: Deputado Domingos, custa-me acreditar que esse texto tenha vindo do Governo aumentando o que toda a Casa condena […]Se o senhor souber onde é que está, peço que aponte no texto, e nós conversamos com o Relator.


Embora protocolada, a emenda não foi aceita pelo relator da reforma tributária e vice-líder do governo na Câmara, o deputado Reginaldo Lopes (PT/MG). Procuramos o parlamentar e, como não houve retorno aos nossos pedidos de esclarecimentos, ficou difícil entender por qual motivo o texto não foi corrigido. 

Entidades setoriais se movimentam para emplacar uma emenda retirando os concentrados da concessão de créditos da CBS na votação no Senado. O que não deverá ser uma tarefa fácil, já que o projeto de lei será relatado por Eduardo Braga, líder do MDB e senador pelo estado do Amazonas. 

Procurado por nossa reportagem, o senador informou, por meio de sua assessoria, que só falará “após a análise da consultoria do Senado”. 

“A opção foi pela manutenção da ZFM até a completa transição para o novo modelo de desenvolvimento”, limitou-se a informar a Instituição Fiscal Independente do Senado, que ainda estuda o extenso texto e as alterações feitas no dia da votação na Casa vizinha. 

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Novela sem fim 

A reforma tributária vem sendo mais um capítulo de uma novela que está se arrastando há anos e que envolve também, indiretamente, o mercado vizinho, de cerveja. 

Em linhas gerais, o argumento é que as condições excessivamente favoráveis em termos tributários contribuem para a concentração de mercado, com a formação de um oligopólio nas mãos de Coca-Cola e Ambev. 

No caso dos refrigerantes, a batalha é de David e Golias, com pequenas marcas de um lado e a Coca-Cola do outro. Como a Zona Franca foi mantida e os incentivos para a produção do concentrado também, as fábricas regionais da bebida seguirão arcando com um custo tributário significativamente maior, mesmo fabricando o mesmo produto.

“Na prática, quando Ambev e Coca-Cola comprarem concentrado de refrigerante de suas controladas na Zona Franca de Manaus, esses produtos terão um crédito de imposto de 10%, sem que o imposto tenha sido pago no início da cadeia”, critica Fernando Rodrigues de Bairros, presidente da Associação dos Fabricantes de Refrigerantes do Brasil (Afrebras), que representa empresas de menor porte.

Além disso, um dos argumentos é que a Zona Franca amplia as vantagens da Ambev também na produção de cervejas, ainda que de forma indireta, contribuindo para que a corporação se mantenha na liderança deste mercado no Brasil, com uma fatia superior a 50% das vendas. 

Ou seja, mesmo com uma fatia bem menor do que a da Coca-Cola, líder absoluta no mercado de refrigerantes, os incentivos fiscais obtidos pela Ambev com a produção na Zona Franca seriam suficientes para desequilibrar as condições de concorrência no mercado de cerveja. 

Neste caso, a briga é de gente grande e envolve outra corporação global, a Heineken, além da brasileira Grupo Petrópolis, empresas que ocupam o segundo e terceiro lugares, respectivamente, em termos de participação no mercado nacional de cerveja. 

Incentiva de um lado, taxa de outro

A proposta enviada pelo Ministério da Fazenda ao Congresso já nasceu com alguns problemas. Apesar da proposta de taxação de refrigerantes, todos os demais produtos ultraprocessados, assim como armas e munições, ficaram de fora da lista de itens, a despeito dos setores do governo alinhados com a discussão sobre segurança alimentar e nutricional, e ao conjunto crescente de evidências que associam o consumo desses produtos a doenças crônicas. 

“O lobby da indústria de alimentos talvez tenha sido o maior dos lobbies. Houve uma conexão entre o agro, as indústrias de alimentos e as associações de supermercados, e esses setores fizeram uma pressão enorme para incluir alimentos não saudáveis na redução de 60% na cesta básica. E também evitar a todo custo que entrasse qualquer coisa no seletivo”, explica Marcello Baird, coordenador de advocacy da ACT Promoção da Saúde.

Victor Bicca Neto, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Refrigerantes (Abir) e diretor de Relações Governamentais da Coca-Cola, em audiência pública realizada a poucos dias da votação do PL 68 na Câmara dos Deputados. Foto: Reprodução Linkedin ABIR

Parte deste esforço envolveu a contratação de uma pesquisa de opinião pela Abir, em que 73% dos entrevistados responderam “Não” à pergunta: “na sua opinião, é legítimo o governo aumentar impostos para encarecer produtos e, com isso, diminuir o consumo de determinado tipo de produto?”. 

Os resultados foram apresentados aos deputados, dias antes da votação do PL, nos últimos passos de uma campanha contrária ao imposto seletivo que, publicamente, incluiu conteúdo patrocinado em sites jornalísticos, artigos de opinião e campanhas em redes sociais. No Congresso, o lobby da indústria de ultraprocessados foi intenso, conforme revelou reportagem da Agência Pública.  

O PL 68 faz referência à taxação de “bebidas açucaradas”. Ainda não é possível saber se vai contemplar refrigerantes zero e outras bebidas que levam adoçantes. 

Também é difícil estimar o quanto será arrecadado com esse imposto, uma vez que a alíquota final sobre os refrigerantes, projetada em 33%, ainda depende das discussões sobre a tributação geral de todos os demais produtos. 

O que é praticamente certo é o avanço do lobby no Senado, que deverá votar o projeto de lei após as eleições municipais de outubro. 

“No final das contas, conseguimos a muito custo ficar só com refrigerante, o que já é uma vitória porque não tinha nada no Brasil para sinalizar a importância de tributar os ultraprocessados. Mas ainda é muito tímido perto dos impactos à saúde que são causados por esses produtos”, conclui Marcello Baird.

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