Não foi um ano fácil. Para passar pelos assuntos desagradáveis e ir logo para aquilo que importa em dezembro, comecemos pelo começo. Quem esperava o melhor de 2019, se decepcionou. E quem esperava o pior, se decepcionou também, porque nem as sinapses férteis de Gabriel García Márquez dariam conta de imaginar o que se passou no mundo este ano.
Se fosse só no Brasil, estava bom. Mas a grama queimada e cheia de balas de borracha dos nossos vizinhos revela veias latino-americanas tão abertas quanto sempre. Foi um ano duro. Ainda assim, cá estamos, eu e você, em dezembro de 2019, de pé como bons latino-americanos, para quem desistir é um luxo.
“O passado é mudo? Ou continuamos sendo surdos?”, perguntou Eduardo Galeano em As Veias Abertas da América Latina (1971), que narrou a tragédia de nossa região quando abaixávamos a cabeça para ditadores confessos. “O livro compreende muitos temas, mas talvez nenhum deles tenha tanta atualidade como essa obstinada rotina da desgraça: a monocultura é uma prisão. A diversidade, ao contrário, liberta.”
Num ano em que o ultra-nacionalismo se entranhou no discurso político, assim como a monocultura na Amazônia, é agridoce ler palavras escritas quase 50 anos atrás e ser obrigado a confessar a surdez: “A independência se restringe ao hino e à bandeira se não se fundamenta na soberania alimentar. Tão só a diversidade produtiva pode nos defender dos mortíferos golpes da cotação internacional, que oferece o pão para hoje e a fome para amanhã. A autodeterminação começa pela boca.”
Acabamos o ano com menos carne no prato. Não porque, finalmente, compreendemos o impacto ambiental que a monocultura e a pecuária têm no planeta. Mas, sim, porque num país de salários baixos e desemprego alto, não cabe no bolso o preço salgado pelos chineses. Sem carne de porco lá, por conta de um vírus altamente contagioso, foi-se embora o nosso porco. Sem porco aqui, partimos pro boi.
E a lei do capitalismo, mesmo nessa economia tradicionalmente bagunçada, não falha. Demanda maior, preço maior. Não foi autodeterminação. Foi lei de mercado. Não foi decisão. Foi imposição. Algo que nós, latino-americanos, conhecemos bem.
Mas não é o fim do mundo. Outra coisa que nós temos é jogo de cintura. Jeitinho. Manha. Malandragem. Resiliência, para pegar aquilo que está no dicionário. Nós aprendemos a dar um jeito nas coisas. A encontrar uma saída para tudo, porque, mais uma vez, desistir é um luxo.
Por que não, então, acabar o ano celebrando aquilo que é, no fundo, nossa maior tradição? A bagunça que só a gente entende. Nosso Natal, não pode representar nossa desgraça. A ceia não pode ser a materialização da monocultura. Deve ser a representação daquilo que nos liberta.
Adianto que não sou religiosa. Quem crê, confia. E como toda boa mulher — e jornalista ainda por cima — sou desconfiada. É até um pouco irônico que meu nome seja Natália, então. O significado, segundo um site qualquer, é “nascida no dia de Natal”. Não divido o aniversário com Jesus Cristo, não. Por outra ironia do destino, eu nasci no dia da mentira. Mas sou devota das narrativas que nos trouxeram até aqui. Respeito a história da sagrada família e volto aos ensinamentos de amor, solidariedade e esperança — representados por Maria, José e Jesus — sempre que perco o rumo.
Na adversidade, creio que devemos procurar a resposta nas nossas raízes, nossa ancestralidade, nas histórias daqueles que vieram antes de nós — para reinventar acertos e não repetir erros. Esse Natal, celebrado na adversidade para quem não têm dinheiro para a fartura, precisa ser mais brasileiro.
A ceia deve começar pela farofa, a comida da bagunça. Cabe tudo o que não estragar a crocância da farinha bem torrada. O arroz — sem passas, pelo amor de quem não gosta de passas, ora — só pode entrar na mesa com um “algo a mais”. Em dia de festa, não cabe o dia-a-dia. Tudo tem que celebrar a diferença, a quebra da rotina. O arroz e feijão ficam pra outra hora. E a monocultura também.
Não sei, confesso, como é que o peru — uma comida tradicional do dia de ação de graças dos Estados Unidos — foi parar na nossa mesa. Desconfio que a publicidade conseguiu nos convencer que era isso que deveríamos servir para um Natal digno de novela. E aqui, até eu, uma vegetariana, preciso fazer um apelo: deem valor ao nosso frango caipira. À nossa leitoa à pururuca. Ao nosso pernil, se os chineses deixarem, com um molho de laranja-pêra, fruta cuja sazonalidade coincide com o Natal por sabedoria da natureza.
Aos que não comem proteína animal, não faltam opções de vegetais que podem ser valorizados por aquilo que une todas as tribos dietéticas em dia de festa: o forno. Não foi atoa que Claude Lévi-Strauss, um dos maiores pensadores do século 20, estreou sua coleção sobre mitos de povos indígenas americanos com o volume “O cru e o cozido”.
A reflexão de Lévi-Strauss sobre as narrativas que conectam povos do norte ao sul das Américas passa pela comida. A passagem do cru ao cozido representa nossa evolução. E o forno, no meio disso, é o símbolo dos dias de festa e fartura porque é o preparo feito a partir do desperdício dos sucos dos alimentos.
Em tempos de escassez, a mesa é ocupada por cozidos e sopas, que cultivam tudo aquilo que um ingrediente pode oferecer num caldo.Nada se perde. No forno, a história é outra. A evaporação é a mudança de fase do luxo. Não há celebração sem uma travessa saindo de um forno elétrico, à gás, à lenha… Que seja. Não é o combustível a questão. É a narrativa. É um ritual que vem das nossas raízes, muitas vezes negligenciadas, mas que se manifestam de maneira quase inconsciente quando damos espaço.
Se o Natal é um grande ritual, então que ele faça sentido para quem o celebra. Que a surdez latino-americana não nos faça repetir um cardápio colonizado e vazio de sentido. E de lógica. O peru é comido no frio dos Estados Unidos, não no calor insuportável desse Brasil de meu deus. Nossas frutas sazonais de dezembro são cítricas, refrescantes, cheias de água — melão, melancia, maracujá, laranja, manga, limão — pela sabedoria da Terra.
Por que negar, então, esse presente? Que o Natal seja outro por autodeterminação. Por escolha. Por comunhão com aquilo que a terra nos dá e que nós, com a nossa própria sabedoria — nosso sagrado jeitinho — preparamos com tanto carinho. Por acreditar que aquilo que está na mesa pode representar nossa intenção para a chegada de liberdade com amor, solidariedade e esperança. Por um Natal mais diverso. Mais livre. Mais bagunçado. E, já que dizem que Deus é destas bandas, mais brasileiro.