Por trás de imagens de galinhas passeando no campo, uma história de condições duvidosas de bem-estar animal e violações trabalhistas em série
Joana Ayres, de 30 anos, é uma psicóloga preocupada com a questão do bem-estar animal. Moradora de Santo André, no ABC paulista, sempre que vai às compras faz a opção pelos ovos de galinhas “livres de gaiola”.
Essa modalidade apareceu nas gôndolas do mercado há alguns anos, e acaba servindo como meio-termo entre os ovos convencionais, muito baratos, e os orgânicos, geralmente mais caros. No Pão de Açúcar, por exemplo, uma cartela com doze ovos orgânicos Fazenda da Toca custa R$ 15. No mesmo supermercado, dez ovos “livres de gaiola” da Qualitá saem por R$ 9,90.
Apesar de ter de pagar um pouco a mais do que nos ovos comuns, Joana acredita que o bem-estar animal deve entrar na conta. Como não vê muita diferença entre as nomenclaturas dos ovos alternativos – livre de gaiolas, caipira e orgânico – acaba optando pela versão mais barata.
Outro fator que pesa na escolha é a embalagem. A cartela dos ovos “livres de gaiola” exibe uma galinha ciscando solta sobre a areia e um selo de certificação de bem-estar animal. Então, o produto que ela acaba de escolher parece tão bom quanto os demais.
Na outra ponta dessa cadeia está a Fernanda*. É ela quem cuida das galinhas “livres de gaiola”, as mesmas que produziram os ovos que Joana acaba de comprar no supermercado.
O que Fernanda tem para contar a Joana talvez a faça repensar suas escolhas como consumidora. E esse é só o começo da história.
Sozinha, Fernanda é responsável por um galpão com 11 a 12 mil aves. Suas tarefas? Coletar os ovos, que são cerca de 10 mil por dia, administrar água e ração, enterrar as galinhas mortas e limpar os banheiros. Tudo isso em apenas oito horas.
A funcionária da granja sabe que ali as galinhas não são exatamente felizes. São submetidas a choques elétricos, só têm acesso à área externa do galpão muito esporadicamente, e passam por debicagem, ou seja, pela amputação de uma parte dos bicos.
Fernanda recebe pouco mais que um salário mínimo e sofre com uma série de violações trabalhistas: acúmulo de funções, assédio moral e corte ilegal de benefícios, para citar alguns.
O dono da granja onde ela trabalha mantém milhões de galinhas presas em gaiolas, mas destina uma fração de sua produção à criação “consciente”, já que esse é um nicho de mercado que vem crescendo nos últimos anos.
Além disso, uma série de importantes compradores desse empresário – como as redes Carrefour e Pão de Açúcar – fizeram compromissos públicos relacionados ao fim da venda de ovos produzidos no sistema convencional.
No caso do Carrefour, o compromisso é de abolir totalmente a venda de ovos comuns até 2028, enquanto o Pão de Açúcar define que a partir de 2025 venderá exclusivamente ovos caipiras, orgânicos e livres de gaiola em suas marcas próprias, Qualitá e Taeq.
O dono da granja onde trabalha Fernanda, e os demais envolvidos nesse negócio, têm um grande aliado: o vácuo regulatório do setor. No Brasil, a legislação não reconhece diferenças entre os tipos de criação convencional, livre de gaiola e caipira. Por isso, basta atender aos critérios sanitários do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) para rotular o produto com o nome que mais lhe convenha do ponto de vista publicitário.
Por fim, no meio dessa confusão toda estão as certificadoras de bem-estar animal, criadas com o intuito de dar algum grau de confiabilidade ao produto que chega nas prateleiras. Para isso, instituem parâmetros de criação aos quais os donos da granja teriam de se sujeitar. Mas veremos que burlar as regras dessas entidades não é exatamente difícil.
Promessas
Começamos a olhar para os fornecedores de ovos dos grandes supermercados depois de uma visita a uma unidade da rede Pão de Açúcar na cidade de São Paulo. Havia uma profusão de embalagens que chegava a tornar confuso, se não impossível, escolher o ovo certo.
Entre mais de uma dezena de fornecedores e várias modalidades de criação, decidimos que era preciso investigar se tudo o que se promete na embalagem é de fato cumprido. O que revelamos vai além de galinhas e trabalhadores infelizes. É um episódio emblemático dos limites de se tentar construir um sistema alimentar saudável e justo se valendo de grandes empresas.
A própria Qualitá, marca do Grupo Pão de Açúcar, sugere que se escolha de acordo com três graus diferentes de bem-estar na criação das galinhas. No nível mais alto – e mais caro – estão aves alimentadas com ração orgânica, direito a passeio no campo e livres de gaiolas. Depois, a escala vai descendo até as galinhas que não vivem enjauladas, mas também não são alimentadas com ração orgânica e tampouco têm direito a um rolê do lado de fora do galpão. Abaixo disso, fora da tabela, vêm os ovos comuns, produzidos por galinhas que vivem dentro de gaiolas.
O plano geral
Segundo dados da Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA), em 2019 o consumo de ovos per capita no Brasil atingiu a marca recorde de 230 unidades, 65% a mais do que no ano de 2010, quando consumíamos “apenas” 148 ovos. Se uma década atrás o Brasil produziu 28 bilhões de ovos, agora esse número chega ao patamar de 49 bilhões.
Entre 2002-03 e 2017-18, a participação relativa dos ovos na dieta dos brasileiros, em termos calóricos, triplicou. Os dados são da Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE.
Para dar conta de todo esse consumo, o país ostenta um verdadeiro exército de galinhas poedeiras: são 118 milhões de aves espalhadas pelo território nacional, 95% delas criadas em modalidade de confinamento intensivo, isto é, dentro de gaiolas. Desde 2012 o manejo em gaiolas é proibido em toda a União Europeia, mas por aqui segue sendo um negócio legal e muito lucrativo.
Em galpões que chegam a abrigar cem mil galinhas, essas aves se amontoam em números de oito, dez, às vezes doze animais por gaiola. “Pra você ter uma ideia, a ave tem o espaço de meia folha A4 pra viver. É fácil entender o prejuízo em termos de bem-estar”, explica a zootecnista Paola Rueda, especialista em bem-estar animal da ONG World Animal Protection (WAP).
Ali dentro das gaiolas essas galinhas são impedidas de desenvolver os comportamentos naturais mais básicos, como abrir as asas, ciscar, caminhar, brincar na terra e se empoleirar. Com o tempo, o grau de estresse é tanto que as aves passam a desenvolver comportamento canibal: bicam e muitas vezes ferem de morte as “companheiras de cela” – daí a debicagem, que serve para impedir que esses animais causem ferimentos uns aos outros. O problema é que esse manejo causa dor crônica e dificuldade para as aves na hora de se alimentarem.
Também é comum ver essas galinhas desenvolverem deformações de perna e de pata, já que passam a vida toda se equilibrando em cima do metal vazado das gaiolas.
Mas não para por aí. Outras técnicas de manejo que causam alto grau de sofrimento também são comuns nas granjas onde o confinamento é intensivo.
Na “muda forçada”, por exemplo, as granjas induzem e aceleram o período de descanso reprodutivo da galinha, que deveria ocorrer naturalmente. O objetivo, claro, é fazer com que a ave produza mais e por mais tempo: “Na muda forçada, você deixa a galinha sem comer por alguns dias, e em outros dias sem água”, explica Rueda. “Com isso todas as penas caem, o trato reprodutivo involui [e] ela consegue produzir [ovos] por mais tempo. Essa técnica é inaceitável em termos de bem-estar.”
Fornecedora do Pão de Açúcar, a Naturovos se apresenta como maior produtora de ovos do Sul do país e a maior exportadora de ovos do Brasil. A página da empresa declara compromisso com qualidade, inovação e meio ambiente, cumprindo “os mais rígidos padrões” nacionais e internacionais.
Ouvido pela reportagem, um ex-funcionário pinta um cenário diferente: “Ali era feia as bichinha. Elas eram muito secas. No galpão elas ficam muito secas, nem comiam direito. Era muita galinha. Viviam em gaiola, uma em cima da outra. Dá pra dizer que era maus-tratos, né? Se você visse elas, bastante galinha, secas, um cheiro forte.”
Magras, estressadas, constantemente com calor – por conta da “superpopulação” nas granjas – essas aves passam por um processo gradual de depressão imunológica, o que as torna muito suscetíveis a organismos invasores.
Como forma de evitar o adoecimento do plantel, os produtores fazem a administração preventiva de antibióticos na ração todos os dias. Se, por um lado, esses antibióticos evitam que doenças se alastrem como pólvora entre as galinhas amontoadas, de outro acabam por promover uma seleção nada natural de patógenos super resistentes, o que aumenta o risco de aparecimento de doenças altamente nocivas ao humano. A gripe aviária é um exemplo desse processo.
Como risco adicional, parte dessas substâncias ingeridas pelas aves acaba no ovo do consumidor, o que pode aumentar a resistência de vírus e bactérias também no organismo humano. A origem do novo coronavírus ainda não é clara, mas a doença levantou novamente a discussão sobre os métodos de criação de animais e o risco de surgimento de epidemias e pandemias.
Os tais métodos alternativos
Tanto produtores quanto ONGs de proteção animal são unânimes em dizer que nos últimos anos houve crescimento da demanda dos consumidores por ovos produzidos em sistemas alternativos, o que incentivou a indústria a apresentar produtos que correspondessem a essa vontade.
Foi no bojo desse movimento que surgiu a modalidade “livre de gaiola” (cage free), uma espécie de “modelo de transição” entre a criação intensiva e os manejos caipira e orgânico. Enquanto os dois últimos se parecem mais com o modo tradicional de criação de galinhas poedeiras, típico de pequenas propriedades, o “livre de gaiolas” é um filho legítimo da avicultura industrial de larga escala.
A presidente da Associação Brasileira de Avicultura Alternativa (AVAL), Miwa Yamamoto Miragliotta, explica que o “livre de gaiola” é uma espécie de criação que começou de “trás para frente”: “De um lado, tradicionalmente, sempre tivemos a produção caipira e orgânica com as galinhas soltas no piso e com acesso ao campo. De outro, mais recentemente, a avicultura industrial, que iniciou a retirada da galinha da gaiola.”
A Granja Mantiqueira, maior produtora de ovos da América do Sul, é um bom exemplo desse processo. Só em sua unidade de Primavera do Leste, no Mato Grosso, são seis milhões de aves presas em gaiolas. Na cidade mineira de Itanhandu, onde a empresa nasceu, outras cinco milhões de galinhas, todas criadas em modo de confinamento intensivo. Sobra uma pequena unidade recém-construída, em Paraíba do Sul, no Rio de Janeiro, com 500 mil poedeiras vivendo “soltas” em galpões.
A Granja Faria, de propriedade do megaempresário catarinense Ricardo Faria, também se encaixa nessa categoria. Das seis milhões de galinhas poedeiras pertencentes ao grupo, apenas 192 mil aves são criadas de maneira não convencional, em uma unidade de Palhoça, em Santa Catarina.
O vácuo
“Dentro dos alternativos a gente pode englobar o ‘livre de gaiola’, o ‘caipira’ e o orgânico. Desses todos, o único que tem uma regulamentação governamental é o orgânico. E você sabe que o que não tem regulamentação não tem fiscalização. Por isso me intriga que as granjas que produzem milhões de ovos [convencionais] também vendam ovos com selo de caipira”, diz o produtor de ovos orgânicos Romeu Leite, da granja Vila Yamaguishi, que fica em Jaguariúna, no interior paulista.
Ele conta que já tentou visitar granjas como a Mantiqueira e a Ito, duas gigantes do setor que estão presentes nas prateleiras do Extra e do Pão de Açúcar, mas teve o acesso negado: “Eles responderam ‘não recebemos visitas’. É uma coisa meio secreta. Eu não tô dizendo que eles não deixam a galinha solta, até porque eu não pude conhecer. Mas, mesmo supondo que essa galinha fica solta, a gente não sabe quantos metros quadrados tem por ave e [como é] a alimentação.”
Pelas instruções normativas 46, de 2011, e 17, de 2014, do Ministério da Agricultura, as galinhas poedeiras criadas no sistema orgânico não podem ser debicadas ou mutiladas de qualquer forma, ao passo que sua ração deve ser livre de transgênicos e antibióticos, e composta por ao menos 80% de alimentos orgânicos.
Além disso, essas aves devem ter acesso ao piquete (área externa) por pelo menos seis horas todos os dias, e a lotação máxima do galpão, onde retornam no fim da tarde para dormir e se proteger de predadores, não pode passar de seis aves por metro quadrado.
Para garantir que as normas sejam cumpridas, uma empresa certificadora credenciada e auditada pelo MAPA realiza visitas aos produtores avícolas duas vezes ao ano.
No campo regulatório, a rigidez dessa legislação contrasta brutalmente com o vácuo deixado pelo poder público no que diz respeito às outras formas de criação. Nessas modalidades, basta aos produtores se encaixarem na legislação sanitária, já que não há norma que regulamente questões de bem-estar animal e tampouco fiscalização ativa do Ministério da Agricultura.
“O Brasil é um país que tem legislações muito falhas em termos de bem-estar”, argumenta Paola Rueda. “A gente não tem legislações específicas para as espécies em granja. Tem apenas uma normativa geral que fala que você tem que garantir que os animais sejam ‘bem-cuidados’. Mas aí pode variar a minha interpretação e a sua, né?”
De fato, a Instrução Normativa nº 56, de 2008, a qual Paola se refere, é bem genérica. A norma cobre a criação de todos os animais de produção com interesse econômico (aves, bovinos, suínos, ovinos etc) e define que esses animais devem ser submetidos a “manejo cuidadoso”, “dieta satisfatória” e que as instalações onde vivem devem “ser projetadas de forma a garantir proteção, possibilidade de descanso e bem-estar animal”.
Em julho do ano passado o Serviço de Inspeção de Produtos de Origem Animal (SIPOA), do MAPA, chegou a proibir o uso dos dizeres “galinhas livres de gaiola” nas cartelas de ovos produzidos dentro de sua 5º região administrativa, que abrange municípios dos estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais.
A medida foi tomada depois que o órgão constatou a existência de fraudes no sistema de produção, mas logo revogada por pressão de ONGs de defesa animal, que argumentaram que a proibição prejudicaria os produtores que estavam criando de maneira honesta e precisavam do rótulo para se diferenciar.
A embalagem, não confie nela
Já mencionada na reportagem, a unidade de Palhoça do conglomerado Granja Faria é um exemplo do que o furo na legislação pode permitir. Ali a empresa produz ovos “livres de gaiola” para a marca Qualitá, do Pão de Açúcar, e uma linha própria de ovos “caipiras”, a Ares do Campo, vendidos em diversas redes de supermercado pelo Brasil, entre elas o Carrefour.
Ambas as modalidades produzidas na Granja Faria ostentam o selo Certified Humane, da Humane Farm Animal Care (HFAC), entidade internacional de certificação de bem-estar animal que exige alguns parâmetros na criação de galinhas cage-free e caipiras.
Segundo o relato de funcionários ouvidos pela reportagem, no entanto, o manejo das aves na granja viola os parâmetros da HFAC para ambas as modalidades.
Entre as quebras narradas pelos empregados está a aplicação de eletrochoque como forma de desencorajar as galinhas poedeiras a colocar ovos na “cama” (chão) do galpão. Esse método de “reforço negativo” compreende a instalação de um fio na amurada do barracão que castiga as aves sempre que encostam naquela superfície.
“Do ponto de vista do bem-estar animal, o choque elétrico não é recomendado. A gente sabe que é possível, com um bom manejo, fazer com que [a galinha] comece a botar o ovo no ninho”, explica Maria Fernanda Martin, zootecnista e especialista em bem-estar animal da ONG Humane Society International (HSI).
O procedimento de choque é proibido pelas diretrizes da HFAC em galinhas com mais de 25 semanas de vida, que é o caso das aves da Granja Faria.
Para burlar o controle da certificadora, a administração da granja faz uma maquiagem das condições reais de operação antes das auditorias anuais, que são marcadas com antecedência: “Um pouco antes da auditoria eles fazem a limpeza, arrumam tudo, tiram o choque. Depois que passou, volta ao normal”, diz um trabalhador ouvido pela reportagem.
O mesmo funcionário deu um exemplo concreto. Havia uma auditoria agendada para os dias 27 e 28 de maio. Então, a administração da granja mais uma vez fez os procedimentos necessários, como desligar os fios elétricos do galpão em que ele trabalha.
Responsável pelo manejo de aves caipiras, um outro empregado explicou que as galinhas não são soltas nas áreas externas todos os dias, como determina a certificadora, mas duas ou três vezes por semana: “Não é frequente. [É] quando dá. Quando o clima está bom e quando nós temos tempo”, disse ele à reportagem.
A privação ao passeio no campo no caso das aves caipiras também é uma violação das normas da HFAC. Nesse caso, a entidade segue diretrizes elaboradas pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) em 2016, que exigem que “as galinhas caipiras devem ter acesso às áreas externas, denominadas piquetes, devendo ser soltas no período da manhã e recolhidas no final da tarde, exceto quando as condições climáticas não permitirem”.
Em seu manual de diretrizes, a HFAC afirma que “pode realizar inspeções sem aviso prévio” como forma de garantir o cumprimento de suas normas, e que essas visitas “são conduzidas usando-se os mesmos procedimentos de inspeções de rotina”. Mas o conceito de “sem aviso prévio” não é exatamente o que o nome diz: “o inspetor entra em contato com o produtor para programar a inspeção no máximo 24 horas antes de chegar ao local”.
Logo adiante, no mesmo documento, a entidade explica que inspeções sem qualquer tipo de aviso prévio podem ocorrer, mas alega que “a falta de planejamento para a inspeção pode fazer com que a chegada do inspetor ao local da atividade ocorra em um momento em que a equipe que precisa participar esteja ausente”.
Em seu vídeo institucional, a Granja Faria garante que as aves da unidade de Palhoça “vivem em liberdade”, são criadas de forma “100% natural” e submetidas a um manejo “único no país”. A embalagem de ovos caipiras da linha Ares do Campo, por sua vez, ostenta os dizeres “galinhas criadas soltas”.
Violações Trabalhistas
A cadeia de produção dos “ovos felizes” tampouco poupa trabalhadores.
Na Granja Ovo Novo, de São Manuel, no interior paulista, são embalados ovos caipiras para as marca Qualitá, do grupo GPA, e Ito Country, vendida no Pão de Açúcar. Ali a jornada de trabalho excessiva é algo absolutamente natural: “Nós não temos horário pra entrar e nem pra sair, já teve dias em que a gente entrou às 6h30 e saímos 0h40”, contou uma funcionária ao Joio, relatando que a empresa paga apenas R$ 3,25 pela hora extra trabalhada.
A Granja Mantiqueira, outra gigante do setor e fornecedora do grupo GPA, é mais um exemplo. Em agosto de 2019 a empresa foi condenada pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST) a pagar R$ 300 mil em indenizações por danos morais à filha de um motorista da empresa, o caminhoneiro Ney Ferreira Prates.
Em junho de 2015 Prates fazia o trajeto de 1.800 km entre Primavera do Leste e Itanhandu quando sua carreta tombou na pista. Ele morreu na hora. No momento exato do acidente, Ney estava na estrada havia 36 horas, tendo parado para descansar por apenas sete. As informações foram fornecidas pelo controle por satélite do caminhão e apresentadas no julgamento do caso.
Ao proferir a sentença, o ministro relator do processo, Maurício Godinho Delgado, concluiu que a Mantiqueira exigiu “jornada excessiva do motorista e prazos exíguos para a conclusão do transporte de carga perecível, expondo o trabalhador vitimado a risco acentuado e à fadiga”. Godinho entendeu também que a empresa “foi negligente ao permitir que o empregado adentrasse a noite na direção do veículo, realizando descanso entrejornadas de poucas horas e reassumindo a direção ainda em plena madrugada, visando a conclusão de uma viagem de 1.800 km, de carreta, em apenas dois dias”.
Apenas dois meses antes de morrer, logo depois de completar uma viagem até Belo Horizonte, o trabalhador postou uma mensagem em rede social que dizia: “[De] 30 horas dirigindo, só dormi duas. Dentro do horário mas fora do limite humano.”
Na Granja Faria, já mencionada na reportagem, as violações também são corriqueiras: “Quando tem reunião a gente não pode argumentar, dizer o que pode melhorar pros funcionários. A prioridade são as galinhas. É o que tá produzindo, dando dinheiro. Os funcionários não importam. [Eles] não tão preocupados com a nossa saúde. Se quer trabalhar, trabalha, se não quer, vai embora”, conta um encarregado do local.
Com cada trabalhador cuidando de um galpão com 11 a 12 mil galinhas, a sobrecarga é imensa. Ali os encarregados são responsáveis pela coleta de ovos e por fornecer água e ração às aves sob seus cuidados. Além disso, têm de enterrar, na composteira, ovos e galinhas mortas, e ainda limpar os banheiros dos barracões.
“Eles não pagam o PIS/PASEP e também não dão 100% de adicional ou folga compensatória pelo trabalho no domingo”, explica uma das fontes ouvida pelo Joio. “Dão um vale-alimentação de 240 reais, mas, se o funcionário faltar um dia, já perde aquele vale. Teve gente que trabalhou aqui por 4, 5 meses, e nunca recebeu.”
O alternativo raiz
Enquanto tudo isso acontece, o Seu Luís*, da cidade gaúcha de Salvador do Sul, cuida de seu pequeno plantel: são 180 galinhas caipiras que vivem soltas no campo e são livres para ciscar, bater asas, correr e brincar na terra. Isso todos os dias, exceto quando o clima não permite.
Ao contrário de alguns granjeiros vizinhos, Seu Luís não vende sua produção para a Naturovos, que paga 26 centavos pela dúzia de ovos comprada dos produtores integrados. Por sinal, é devido à presença ostensiva da empresa avícola na região que ele prefere não ser identificado.
Seu Luis não é um produtor “integrado” da Naturovos. Ele comercializa para amigos, conhecidos e moradores da cidade interiorana que se sentem mais confortáveis ao comprar de um produtor que está próximo. Um que eles podem ver com os próprios olhos e cuja granja podem até visitar, caso queiram.
Dessa maneira, Seu Luis integra o que chamamos de circuito curto de consumo, em que produtores e consumidores estão mais próximos e conectados. Nessas cadeias curtas, não é necessário o meio-de-campo feito por atravessadores, distribuidoras e grandes redes de supermercado, cuja atuação acaba aumentando o preço dos produtos, diminuindo a remuneração dos produtores e os pressionando a atingir um alto grau de produtividade.
Os circuitos curtos muitas vezes não são uma opção viável para moradores de metrópoles, como a Joana Ayres. Cada vez mais distantes do processo de produção, esses consumidores são obrigados a confiar nas embalagens e nos selos de certificação, que nem sempre traduzem a realidade das condições de trabalho e bem-estar animal nos estabelecimentos que produziram as mercadorias que agora aparecem ali, diante deles, nas prateleiras do supermercado.
O que dizem as empresas
A Granja Faria foi procurada pela reportagem através do endereço de e-mail e do telefone disponíveis em seu site, mas ambos estão inoperantes.
Também procurada pelo Joio, a Granja Ovo Novo não respondeu aos questionamentos feitos por e-mail até o fechamento da reportagem.
A Humane Farm Animal Care (HFAC) recebeu as denúncias a respeito da Granja Faria e disse ter instaurado um processo de investigação, o que culminou em nova auditoria, ocorrida na sexta-feira (12.6). Nesta última inspeção, a entidade afirma ter constatado que os fios elétricos nos galpões da granja estavam desligados. Segundo a própria HFAC, a Granja Faria foi avisada sobre a nova visita no final da tarde do dia anterior.
O Grupo Pão de Açúcar respondeu que a Granja Ovo Novo “passou por todos os processos e auditorias exigidos pelo Programa Evolutivo de Qualidade (PEQ) que abrange tanto as leis trabalhistas, como as normas internacionais do trabalho nos quesitos de horas trabalhadas, saúde, segurança, salários e benefícios, além da ausência de trabalho escravo/infantil”. Na mesma resposta, o GPA afirma que a Granja Faria, por sua vez, “é um fornecedor indireto e também foi auditada seguindo as exigências quanto a obrigatoriedade do respeito a critérios de bem-estar animal”.
O Carrefour respondeu: “Assim que recebemos a denúncia referente à Granja Faria, realizamos uma apuração interna e verificamos que o Grupo Carrefour Brasil já realizou compras pontuais desse fornecedor. Assim, prontamente lhe enviamos uma carta de notificação, solicitando esclarecimentos sobre os fatos relatados, sob pena de interrupção do contrato.”
* Os nomes foram alterados a pedido das fontes