Exigência de nota eletrônica a produtores em situação de vulnerabilidade estava inviabilizando a execução de R$ 4,5 milhões do governo federal destinados à erradicação da fome
A produtora da agricultura familiar, Mercedes Machado, 50 anos, que vive na comunidade quilombola do Morro do Fortunato, em Garopaba, litoral de Santa Catarina, vai poder retomar a produção de geleia de fruta já prevista no edital do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Ela recebeu R$ 1,9 mil pela primeira entrega, mas se viu obrigada a desistir do programa depois que lhe foi exigida uma nota eletrônica, pois tem dificuldade em lidar com a tecnologia.
A solução para o problema que estava inviabilizando a execução de R$ 4,5 milhões destinados pelo governo federal ao programa de erradicação da fome ocorreu uma semana após reportagem sobre o caso publicada em O Joio e o Trigo. Até então, apenas 20% do valor havia sido executado e o prazo para usar esse recurso terminava em junho.
O PAA é um programa que atende dois problemas de uma vez só: compra comida do pequeno produtor e entrega para famílias em situação de vulnerabilidade cadastradas em programas assistenciais dos municípios que estão no mapa da insegurança alimentar e nutricional. Só que, se o produtor não consegue emitir a nota, ele consegue vender o produto e o alimento não chega à mesa de quem precisa.
“Com a graça de Deus, vencemos, conseguimos! A assistente social do município de Imbituba [onde Mercedes entrega seus produtos] já entrou em contato comigo e, provavelmente, até sexta-feira [30], eles vão fazer um cronograma para que a gente possa começar a entregar a partir da semana que vem”, contou animada.
Com a possibilidade de usar a nota física, pelo talão do produtor, Mercedes deve receber mais R$ 4,5 mil pelas duas remessas de geleia que ainda faltam ser entregues. O valor máximo pago pelo programa a cada um dos produtores é de R$ 6,5 mil. A produtora ainda vai dividir esse valor com as famílias da irmã e da prima que também produzem a geleia com ela.
Governo abre exceção após pressão
A Nota Fiscal do Produtor, que é emitida pelo talão, em papel, foi aceita em regime especial apenas no caso dos produtores que já foram cadastrados no programa que prevê o recurso de R$ 4,5 milhões do governo federal. Mesmo que eles já tenham sido selecionados por chamamento público, terão que fazer novo credenciamento para garantir uma espécie de “identidade” que os reconheça como beneficiários dessa exceção aberta pelo estado.
A dispensa da nota eletrônica, que passou a ser exigida pela Secretaria de Estado da Fazenda, ocorreu após a publicação da reportagem e pressão por parte dos órgãos fiscalizadores. O anúncio foi feito na tarde de terça-feira (27) durante reunião extraordinária do Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea/SC) — que é ligado à Secretaria de Estado do Desenvolvimento Social e tem função fiscalizadora das políticas públicas. O secretário do Desenvolvimento Social, Claudinei Marques, esteve presente na reunião online para fazer o anúncio da liberação, mas logo saiu para atender um deputado. A secretaria dele é a responsável por executar o programa no estado.
“Conseguimos junto a Secretaria de Estado da Fazenda autorização para aceitação da nota fiscal manual em blocos, exclusiva para o PAA. Será feito o cadastro dos produtores que participam do programa e somente esses poderão emitir a nota fiscal em bloco”, disse.
Em seguida, quem fez uma breve participação na reunião foi a deputada Luciane Carminatti (PT/SC), que também articulou junto ao gabinete da governadora após ter sido convocada para uma reunião com o Consea e o Fórum Catarinense de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. O apoio político foi solicitado pelo grupo, uma vez que a deputada vem atuando na construção de um PAA estadual.
Após a resolução da situação, a reportagem recebeu resposta aos questionamentos que já haviam sido feitos por e-mail à Secretaria do Desenvolvimento Social e conseguimos conversar com a coordenadora estadual do programa, Gabriela Dantas. Ela disse por telefone que a nota em papel está garantida apenas para o programa dos R$ 4,5 milhões. A coordenadora espera que a nota também seja aceita no segundo chamamento de produtores da agricultura familiar que prevê mais R$ 1,5 milhões para o mesmo programa, mas que ainda não foi executado.
“Para participar do PAA, o município já encaminhou cópia da documentação dando conta de que os produtores fazem parte deste programa. Agora, só precisa que o município nos informe quem são os produtores que vão precisar continuar com a nota pelo bloco. A partir da reunião de ontem [terça-feira], já pode ser efetuada a compra com a nota de bloco”, afirmou Dantas.
A coordenadora prometeu ainda que será feito um plano de qualificação para dar suporte técnico aos agricultores que não sabem usar a nota eletrônica.
O Ministério da Cidadania também garantiu que o prazo para executar o recurso, que terminava em junho, será estendido até 30 de novembro. A mesma informação nos foi repassada pelo órgão federal por e-mail.
A reportagem, no entanto, apurou que toda a documentação (nota, alvará e selos de inspeção) é registrada pelos municípios direto no sistema do Ministério da Cidadania. Eles informam o número da nota, a quantidade do produto comprado e o valor a ser pago (direto na conta do produtor). Uma cópia dessa documentação é encaminhada de forma física ao governo do estado que confere e aprova. A própria nota eletrônica é impressa e anexada à documentação física, que fica disponível às autoridades para eventual auditoria.
O Ministério, segundo a nossa apuração, não recebe nenhum desses documentos, a menos que solicite. A nota eletrônica foi criada para modernizar o sistema e facilitar o trabalho da Secretaria de Estado da Fazenda. Só que, a partir do momento que o produtor migrar para o modelo eletrônico, ele não pode mais voltar a usar a nota física, em blocos de papel.
A reportagem questionou a coordenadora do programa sobre a prestação de contas ao Ministério da Cidadania. Ela confirmou que o órgão federal recebe apenas o número da nota, independente de ela ser física ou eletrônica. “O fato gerador da existência da nota é a venda do produto, a nota acompanha o produto. Como se comprova essa venda? Com a nota fiscal. [Para o Ministério] vai o número da nota”, disse Dantas.
O dilema da nota eletrônica
Os agricultores haviam sido surpreendidos pela exigência da nota eletrônica em fevereiro, quando o analista da Secretaria de Estado da Fazenda, Edu Oscar Santos Filho, passou a fazer contato com os servidores responsáveis pelo programa nos municípios. O argumento dele foi com base no Decreto Estadual nº 779/2016 que exige o formato eletrônico para notas que são emitidas em operações interestaduais. O burocrata falou ainda que os produtores pagariam uma multa de 300% sobre o valor da nota, caso fizessem a venda com o talão em papel, o que assustou ainda mais os agricultores.
Só que a tal cobrança não é citada no decreto em questão e nem foi comprovada pelos órgãos estaduais quando procurados por nós. No entendimento do servidor da Fazenda, a cobrança caberia no programa porque o dinheiro vem do Ministério da Cidadania, em Brasília.
Mas há quem defenda que a operação é intermunicipal, já que o produto é vendido de um município para o outro e não chega a sair do estado. Essa interpretação foi defendida em um parecer jurídico feito pela Secretaria do Desenvolvimento Social após ter sido provocada pelo Consea. O ofício enviado à Secretaria de Estado da Fazenda destaca ainda que os participantes do programa são isentos de recolher ICMS, o que tornaria ainda mais dispensáveis tais exigências.
O próprio Consea enviou manifesto às secretarias responsáveis e à governadora em exercício Daniela Reinehr pedindo a revogação da exigência da nota eletrônica. O documento que foi tornado público pelas redes sociais apontou falta de vontade política para resolver a situação.
Na ocasião, a reportagem havia solicitado um posicionamento à governadora Reinehr e às secretarias da Fazenda (que fez a exigência da nota), e do Desenvolvimento Social (que é responsável por tocar o programa). Naquele momento, apenas a Fazenda respondeu e reafirmou que a nota NFP-e era indispensável.
Os membros do Consea defendem que os agricultores atendidos pelo programa são mais vulneráveis e precisam de treinamento digital presencial. Ainda assim, muitos não conseguiriam se adaptar em função das limitações impostas pelas localidades remotas em que vivem, com problemas de oscilação da rede de energia elétrica e sem acesso à internet.
Das 134 cidades catarinenses com registro de famílias necessitadas, o Consea elencou 96 e priorizou as famílias vulneráveis das comunidades indígenas, quilombolas e também as com maiores registros de pessoas em situação de rua.
Já o cadastramento dos agricultores foi feito por chamamento público divulgado em 5 de outubro de 2020. O edital priorizou mulheres, agricultores inscritos no Cadastramento Único para Programas Sociais do Governo Federal, assentados, indígenas, quilombolas e povos e comunidades tradicionais.
Quando publicamos a primeira reportagem sobre o assunto, falamos por telefone com o servidor da fazenda Edu Oscar Santos Filho. Ele nos confirmou que fez orientações às prefeituras informando que os produtores só seriam remunerados no programa com emissão da nota eletrônica. “Se alguém acha que a lei não está adequada, que deveria ser mais justa, deveria ser de outra forma, deve buscar os meios legais que podem fazer alteração na lei”.
Por meio da assessoria de imprensa, na ocasião, a Secretaria de Estado da Fazenda se limitou a dizer que a nota fiscal eletrônica é de uso facultativo no estado e que é obrigatória apenas para operações interestaduais. Mas não deixou claro qual seria a exigência para o programa em questão.
Procurada novamente, a assessoria da Fazenda informou que “a nota manual dentro do estado segue sendo aceita e, neste caso, será feito um cadastro com os produtores que participam do PAA”.