Mercado aproveitou vulnerabilidade do grupo de maior risco da Covid-19 e aumentou vendas de produtos que oferecem prevenção de doenças
Dentro de casa. Sozinhos. Por dias. Semanas. Meses. Sem poder receber visitas. O risco de contato com outras pessoas, até da família, é enorme. E pode ser fatal. Para se alimentar, é preciso ir ao supermercado comprar comida. E essa simples saída de casa também pode ser perigosa. Ou corre-se o risco, ou é preciso pedir que alguém ajude com as compras.
Essa é a situação à qual estiveram submetidos os brasileiros de mais de 60 anos desde o início da pandemia do Covid-19. Vulneráveis, por serem o grupo de maior risco de morte, e frágeis emocionalmente, pelo receio de contaminação, os idosos viraram alvo também da indústria de suplementos alimentares.
Na TV e nas redes sociais, como Facebook, Instagram e YouTube, há uma intensificação da publicidade de suplementos nutricionais para essa faixa etária, tanto por meio de propagandas das próprias marcas como através de recomendações de nutricionistas, em lives e perfis. O discurso utilizado é o da promessa de imunidade, de força, de qualidade de vida. “Nutren Senior tem uma combinação única de nutrientes que ajudam na manutenção de ossos e músculos. É um repertório completo de benefícios para você envelhecer bem e em harmonia com sua nova rotina”, diz um post na página de Facebook do suplemento da Nestlé.
No site do produto, ele é apresentado da seguinte forma: “Nutren Senior, desenvolvido especialmente para pessoas acima de 50 anos de idade, contribui com nutrientes que podem ajudar a reforçar o sistema imune”.
Mais lucros
A estratégia iniciada no ano passado mostra resultados, e as investidas que têm os idosos como público preferencial deram retorno financeiro para os fabricantes. Em 2020, a marca Nutren Senior, exclusiva para os maiores de 50 anos, teve um aumento de 43,4% nas vendas, de acordo com a Nestlé.
“Percebemos que os idosos utilizam o Nutren para prevenir uma doença ou inibir os efeitos negativos dela. Em ambos casos, eles já pedem por produtos que possam ser consumidos em diferentes momentos”, disse a diretora da Nestlé Health Science para a América Latina, Monica Meale, em entrevista à imprensa.
Neste período, a multinacional também investiu na compra de mais suprimentos para aumentar a produção e, em 2020, adiantou o lançamento de produtos da marca, como uma linha com sabores feijão com carne e frango com aveia.
“Imagine a situação de um idoso dentro de casa, sem conseguir ver ninguém, fechado? A indústria arrumou um prato cheio”, comenta Aline Alves, professora de Nutrição do Instituto Josué de Castro da Universidade Federal do Rio de Janeiro (INJC/UFRJ). Alves observa um aumento “notório” da publicidade de tais produtos desde a eclosão do novo coronavírus no Brasil.
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Faça parteFalta de consenso científico
Embora sejam vendidos como “milagrosos”, não há comprovação científica de que os suplementos possam substituir uma alimentação equilibrada, explicam os professores e pesquisadores em nutrição ouvidos por O Joio e o O Trigo.
De acordo com Paula Horta, professora do departamento de Nutrição da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a indústria dos suplementos trabalha com a lógica de que a necessidade nutricional do idoso é muito grande e que é difícil adequá-la via alimentação. “Dizem que o suplemento vai resolver essa questão. Na publicidade, o discurso da indústria é muito esse, em cima das particularidades nutricionais do idoso. O que ela não conta é que é possível adequar essa demanda nutricional com alimentos, desde que seja feita uma boa orientação nutricional. Isso não aparece, é como se ele [suplemento] fosse a única forma.”
Horta explica que se o idoso não tiver alguma demanda metabólica específica, alguma doença, “se ele for saudável, tiver uma alimentação saudável, conforme orienta nosso guia alimentar, ela vai atender suas necessidades nutricionais”. A professora recomenda ainda que se deve “ privilegiar primeiro o alimento saudável ao invés de suplementos, e isso é possível de ser atendido”.
A prescrição de tais suplementos, explicam os especialistas, só pode ser feita após uma consulta nutricional. “A indicação deve ser individualizada. E pode ser que mesmo um idoso que tenha uma patologia nem precise de suplementação. Por isso que teria que haver um acompanhamento”, afirma Aline Alves.
Riscos à saúde
Outro risco é que, sem uma indicação adequada e individualizada, tais suplementos podem trazer riscos à saúde, como hipertensão, obesidade, sobrecarga renal. “Eles foram criados para pessoas que não conseguem fazer um consumo calórico adequado. Então, sim, há um risco de ganho de peso, se ele for inserido numa dieta que não foi balanceada antes”, explica Ligiana Corona, professora do curso de Nutrição da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Ela pondera também que o consumo indevido dos suplementos pode levar a riscos de sobrecarga renal, caso a pessoa já tenha um consumo alto de proteínas ou se for diabética e já tiver mais tendência a ter problemas renais. “O básico é pensar que está se adicionando calorias numa pessoa que não necessariamente vai precisar.”
A indicação, afirma a nutricionista, é para casos como de pessoas com câncer, em tratamento de quimioterapia e que estão com alimentação muito comprometida. Ou, por exemplo, uma pessoa com massa magra exacerbada por algum motivo. “Seja por falta de apetite, envelhecimento, doenças associadas, depressão. Mas a gente não vai corrigir isso só com suplemento, por isso que é importante o cuidado multiprofissional. E por raras vezes é por muito tempo”, diz Corona.
No início da pandemia, o Ministério da Saúde publicou o documento “Os 10 passos para uma alimentação saudável do idoso na pandemia”. “Lá não se fala em nenhuma forma de suplementação para o idoso saudável, fala-se em cuidados, como a frequência de idas ao supermercado”, aponta Paula Horta.
Influenciadores idosos
Outra estratégia utilizada pela Nestlé para atingir os idosos é a contratação de influenciadores de mais de 50 anos, como o ator Ary Fontoura e o empreendedor Geraldo Rufino. A partir dessas ações, a marca Nutren Senior teve alcance 30% maior em 2020, e crescimento de 58% em citação espontânea, como informa a gerente de marketing da empresa. A Nestlé, com a Nutren Senior, também criou um bot via WhatsApp para ensinar idosos a lidar com ferramentas digitais.
Ainda para tentar atestar a qualidade do produto, a indústria de suplementos se utilizou de perfis de profissionais de nutrição, que fazem propagandas dos suplementos “para tentar vender essa falsa imagem, de ‘poxa, se tem um profissional de saúde atestando aquele produto, é porque ele é bom mesmo’”, comenta Paulo Cesar de Castro, professor de nutrição da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “É uma estratégia mercadológica da indústria para tentar associar seu produto a um profissional de saúde e dar chancela a eles.”
Mas há um claro conflito de interesses quando profissionais de saúde fazem propaganda desse tipo, além da indicação de que ferem o código de ética da profissão. “Nós, que somos nutricionistas, temos um código de ética para seguir. E esse código proíbe o nutricionista de fazer propaganda de alimentos industrializados, ultraprocessados ou qualquer tipo de alimento. Não podemos fazer nenhum tipo de propaganda ou vincular nossa imagem de nutricionista com alimentos”, afirma o pesquisador.
“Para prescrever um suplemento, é preciso conhecer a história clínica do paciente, de saúde, muitas vezes fazer um exame bioquímico”, alerta Paula Horta. “Então é bastante complexo que um profissional faça a indicação de suplementação assim abertamente a qualquer pessoa sem ter essa avaliação prévia. Do ponto de vista ético, eu considero bastante grave.”
Governo de SP oferece suplementos
Ignorando a orientação de que a indicação de suplemento para idosos precisa ser feita por meio de atendimento individualizado, o governo do estado de São Paulo incluiu no programa Vivaleite – de distribuição gratuita de leite pasteurizado – a oferta de suplementação alimentar proteica para idosos, além da dispensação de leite.
Em abril de 2020, o governador João Doria anunciou a ampliação do programa “para reforçar a nutrição de mais de 21 mil idosos residentes em abrigos e residenciais socioassistenciais”. A suplementação proteica visava “fortalecer essa população em reforço ao combate à Covid-19”, segundo Doria. “Para essa ação, o governo do estado recebe a doação de 77 mil latas de suplementação alimentar da Nestlé [Nutren], em um valor de aproximadamente R$ 4,6 milhões. Cada idoso vai receber quatro latas de suplemento por mês.”
Na avaliação da professora de nutrição Ligiana Corona, a iniciativa seria boa se estivesse restrita à oferta de leite. “Tem uma série de idosos que ficaram completamente abandonados durante a pandemia, sem ajuda financeira e sem mobilidade. Então, a iniciativa seria boa, seria uma alternativa importante para garantir consumo de proteína dessas pessoas. Mas quando falaram que junto haveria o suplemento, me questionei, porque não se pode sair dando suplemento de proteína pra todo mundo.”
Para Paulo Cesar de Castro, professor da UFRJ, o “Estado tem que fomentar aquilo que se sabe enquanto alimentação saudável e adequada, e não propagandear esse tipo de alimentação dos idosos”. O pesquisador diz não ser contra a suplementação, mas reforça que ela deve atender necessidades específicas com critérios claros. “Não sou contra a suplementação, sou a favor dela no seu aspecto necessário e dentro daquilo que ela foi criada para ser realizada, em casos específicos. Não dá para naturalizar uma suplementação para qualquer idoso, um idoso saudável que não necessita disso vendendo a falsa ideia de que estará saudável por meio dessa alimentação suplementada.”
A reportagem procurou a Secretaria de Desenvolvimento Social do Estado de São Paulo e questionou qual era o suplemento oferecido, quantos idosos foram atendidos, por quanto tempo foi feita a dispensação e questionou se antes da indicação foi feita alguma avaliação da condição de saúde dos idosos atendidos.
Em nota, a Secretaria de Desenvolvimento Social do Estado informou que com o início da pandemia foi feito um plano de emergência para instituições de longa permanência para idosos. “Entre as ações já adotadas, está a implementação de um projeto de reforço alimentar para os mais de 21 mil idosos acolhidos nos 590 equipamentos em todo o Estado, ampliando a entrega de leite pasteurizado do programa Vivaleite e com a doação de 77 mil latas de suplementação proteica realizada pela Nestlé.”