Indústria do tabaco pesa a mão nas investidas de marketing sorrateiro para promover novos e velhos produtos
Do rebelde sem causa James Dean à bonequinha de luxo Audrey Hepburn, passando por muitos outros títulos e atores consagrados de Hollywood, o cigarro marca presença na História do cinema. Não é segredo para ninguém: cenas icônicas, sempre associando o fumo ao glamour e a um estilo de vida invejável, são parte de uma grande estratégia de marketing para incentivar o uso do tabaco.
Na chamada Era de Ouro da sétima arte, final da década de 1920 até meados dos anos 1950, atores e atrizes receberam quantias milionárias das empresas de tabaco para fumar nos filmes. Documentos internos da indústria, analisados por pesquisadores do Centro de Pesquisa e de Educação sobre o Controle do Tabagismo da Universidade da Califórnia (EUA), comprovaram a existência de campanhas publicitárias para a Lucky Strike, da American Tobacco, e para a Chesterfield, da Liggett & Myers.
Como a ciência forneceu provas dos inúmeros malefícios do cigarro para a saúde, principalmente a partir da incidência do câncer de pulmão, a implementação de duras restrições à publicidade do produto tornaram-se um consenso internacional. Isso não significa que a representação dos cigarros nas telas foi extinta, muito menos que a indústria esmoreceu na propaganda. Diante do avanço das políticas antitabagistas das últimas décadas, a resposta das empresas tem sido investir em estratégias de marketing ainda mais sofisticadas.
Agora, além dos cinemas, a promoção do cigarro também ocupa espaços em diferentes tipos de telas, acessíveis para pessoas de qualquer idade e a apenas alguns likes e compartilhamentos de distância.
Assim, as redes sociais se concretizaram como um terreno fértil para as fabricantes de cigarro, que continuam apostando na associação do fumo ao “estilo de vida” por meio de publicações que circulam em centenas de feeds por aí.
É o que mostra o monitoramento realizado desde 2015 pelo projeto Onde há fumaça (Where There’s Smoke, em inglês), da Campanha Tobacco Free Kids (TFK). Somente nos dois primeiros anos da iniciativa, foram documentadas mais de cem ações coordenadas nas redes sociais que promoveram cigarros das marcas Philip Morris International, British American Tobacco (ex Souza Cruz, no Brasil), Japan Tobacco International e Imperial Brands.
Por meio de ferramentas de escuta social, a TFK identificou as ações publicitárias em mais de 40 países, espalhadas em redes como Instagram, Facebook e Twitter. Segundo estima a organização, as publicações foram vistas mais de 25 bilhões de vezes globalmente e 8,8 bilhões somente nos Estados Unidos.
Mas faz isso se a propaganda dos produtos de tabaco é banida ou ao menos restrita em boa parte do mundo e as próprias plataformas não permitem que as fabricantes patrocinem publicações que vendam diretamente cigarros? Simples: pagando influenciadores e promovendo hashtags. Uma estratégia muito usada na internet e que, de forma um tanto quanto despercebida, também tem sido aplicada para propagandear um produto que causa a morte de 8 milhões de pessoas anualmente.
O projeto Where There’s Smoke identificou o passo a passo da estratégia para que o conteúdo seja entregue aos usuários. Em primeiro lugar, as empresas não dizem aos influenciadores para sinalizarem que o post é patrocinado, o que facilita a passagem da publicação nas peneiras de anúncios permitidos nas redes sociais.
“O perfil padrão dos influenciadores é de pessoas jovens, atraentes e com seguimentos significativos nas mídias sociais. Os posts são desenvolvidos para que pareçam autênticos, mas, na verdade, muitos desses influenciadores foram contratados por agências em nome das empresas tabaqueiras”, explica Debra Rosen, supervisora de estratégias e campanhas da Tobacco Free Kids.
Eles recebem até mesmo dicas e orientações sobre como agir, de acordo com entrevistas anônimas feitas pela organização internacional.
“Tudo era sobre as fotos nas redes sociais: compartilhamentos e likes. Nós tivemos uma sessão de treinamento com a pessoa encarregada do marketing da Marlboro, ela nos falou sobre como era difícil para eles fazer propaganda devido a todas as leis em vigor. Também nos contou sobre a marca em geral, qual era o público-alvo e até sobre a caixa e o design. E, depois disso, como fazer você ligar a marca a certas cores ou situações”, disse um dos influenciadores pagos pela Philip Morris.
Os posts geralmente incluem fotos com maços de cigarro expostos de maneira “natural”, dificultando a percepção de que é uma propaganda. “As fotos não devem ser muito óbvias ou exageradas, você precisa usar a criatividade para que elas sejam mais sutis. Não poderíamos ser muito explícitos sobre o que estávamos postando. Por exemplo, colocar os cigarros no bolso e tirar uma selfie para que possam ver na foto a marca IceBall”, afirma um influenciador do Uruguai.
Debra Rosen ressalta que esse tipo de marketing é especialmente perigoso, porque é amplamente visto pelo público jovem e de difícil rastreamento. “Usando influenciadores das mídias sociais, festas e eventos de marca, com brindes patrocinados, a Philip Morris International, British American Tobacco, Japan Tobacco International e Imperial Brands estão subvertendo as leis de publicidade do tabaco, voando sob o radar dos órgãos reguladores dos governos e abusando das políticas das plataformas de mídia social para comercializar produtos para a juventude. Tudo isso faz parte de uma estratégia enganosa para viciar a próxima geração”, alerta.
“Tudo era sobre as fotos nas redes sociais: compartilhamentos e likes. Nós tivemos uma sessão de treinamento com a pessoa encarregada do marketing da Marlboro, ela nos falou sobre como era difícil para eles fazer propaganda devido a todas as leis em vigor. Também nos contou sobre a marca em geral, qual era o público-alvo e até sobre a caixa e o design. E, depois disso, como fazer você ligar a marca a certas cores ou situações”
“As fotos não devem ser muito óbvias ou exageradas, você precisa usar a criatividade para que elas sejam mais sutis. Não poderíamos ser muito explícitos sobre o que estávamos postando. Por exemplo, colocar os cigarros no bolso e tirar uma selfie para que possam ver na foto a marca IceBall”
A especialista acrescenta que, após os primeiros anos do monitoramento, foi notável uma transição da promoção dos cigarros para os cigarros eletrônicos, os produtos de tabaco aquecido e para os chamados nicotine pouches, as bolsas de nicotina, como as da marca Zyn. Um movimento que o O Joio e O Trigo também já registrou e denunciou em reportagens publicadas recentemente sobre o assunto.
Outro aspecto relevante desse tipo de ação são as hashtags escolhidas, geralmente com palavras sutis e aleatórias. A Tobacco Free Kids identificou dezenas de ações impulsionadas pela Philip Morris International nas redes. Os números de apenas algumas delas dão a dimensão do sucesso da estratégia
A #nighthunters, por exemplo, apesar de sediada no Uruguai, alcançou outros 32 países com mais de 2 mil posts feito por 400 influenciadores. O total de visualizações chegou a 34 milhões. A outra campanha #IDecideTo (Eu decido, em português), iniciada na Indonésia, alcançou 47 milhões de pessoas em outros 19 países. Duas campanhas da Japan Tobacco Internacional, #forthehunters e #staytruestayfree, acumularam 36 milhões de visualizações.
No Brasil, onde a publicidade de cigarro e derivados do tabaco em qualquer meio de comunicação é proibida desde os anos 2000 pela Lei federal nº 10.167, a promoção nas mídias sociais ficou a cargo de duas hashtags relacionadas às marcas Lucky Strike, Kent e Dunhill, da subsidiária da British American Tobacco no país: #AheadBR e #TasteTheCity.
A primeira, divulgada há alguns anos, contou com 280 influenciadores e alcançou mais de 9 milhões de pessoas. Segundo reportagem publicada pela Exame sobre o assunto, a empresa teria contratado a agência Hood para executar a ação.
É válido ressaltar que o Código de Defesa do Consumidor (CDC) brasileiro prevê que qualquer tipo de anúncio seja distinguido de forma evidente, independente da plataforma de comunicação. No Instagram, por exemplo, os chamados “publiposts” devem vir sinalizados no alto da própria imagem, como uma das primeiras informações a ser vista por quem recebe o conteúdo.
Maribel Suarez, coordenadora do Centro de Estudos do Consumo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppead/UFRJ), especialista em consumo e comportamento, afirma que a indústria do tabaco historicamente se apropria do chamado “marketing sorrateiro”, que induz os receptores da mensagem a não terem consciência que o intuito é convencê-los a comprar o produto.
Associada à criação de hahtags e publiposts com influenciadores digitais, as empresas também têm marcado presença em festas, eventos e festivais de música, conectando o cigarro, mais uma vez, à agitação social. Não como patrocinadoras oficiais, como no passado, mas por meio de postos de venda e quiosques.
É o caso da #TasteTheCity (saboreie a cidade, em tradução livre), amplamente utilizada no festival Meca Inhotim de 2016 e de 2017. No evento, havia um camping para influenciadores convidados, que frequentemente postavam fotos com maços Dunhill acompanhados pela hashtag. Três anos depois, ainda é possível encontrar conteúdos sobre o slogan no site da instituição.
“O público que vai à festa sabe que aquela hashtag está ligada ao cigarro, mas o público que não vai à festa não consegue perceber isso. Com esse recurso da internet, das mídias sociais e do conteúdo que circula a partir das festas, a indústria também tem conseguido criar essa aura glamourosa, descolada, de gente antenada que participa desses eventos”, enfatiza Maribel.
Organizações brasileiras, como a ACT Promoção da Saúde, alertaram que kits com um maço do cigarro da marca foram distribuídos pela organização do Meca Inhotim. Práticas semelhantes foram registradas no Rock in Rio. A Souza Cruz afirmou, à época, que a participação nos eventos se deu exclusivamente em regime de comercialização de produtos e que a empresa não utiliza mídias sociais em atividades de marketing, direta ou indiretamente.
No entanto, para a pesquisadora, não há dúvidas de que as redes e influenciadores digitais se tornaram uma “ferramenta inovadora” de promoção do cigarro. Beneficiam-se, inclusive, da forma como os algoritmos funcionam, criando bolhas de conteúdo e direcionando as informações exclusivamente para o público-alvo.
“Essa promoção que acontece na internet acaba não sendo percebida pelo resto da sociedade. Porque, se você pensar, os gestores de políticas públicas, os professores, os pais, eles não necessariamente ver o mesmo conteúdo que os filhos”, diz Maribel.
“O risco é criar justamente esse elo com um grupo jovem, a partir de um estilo de vida descolado, que se pauta muito na figura desses influenciadores digitais, que já são figuras de aspiração dos jovens. Nesse sentido, trabalham o mesmo mecanismo de marketing do passado, ou seja, ‘é alguém que eu admiro e que eu gosto, e que eu termino tentando imitar os comportamentos’”.
A pesquisadora também alerta para um comportamento nas redes sociais que cada vez mais estimula e relaciona publiposts com sucesso, ou seja, o patrocínio de uma marca torna-se uma evidência do “poder do influenciador”.
Tragédia vista como oportunidade
Nem mesmo a pandemia impediu fabricantes de produtos de tabaco de anunciarem “novidades” online, principalmente os Dispositivos Eletrônicos Para Fumar (Defs). Elas se apropriaram, inclusive, da #FiqueEmCasa, criada para incentivar o isolamento social na pandemia. Sempre com hashtags mencionando o contexto pandêmico, como a #FrenaLaCurva (Freia a curva), usada pela British American Tobacco na Espanha, e a #DistantiMaVicini (#DistanteMasPerto), impulsionada pela Philip Morris para anunciar lançamentos de tabaco aquecido na Itália.
Nos Estados Unidos, as lojas de vapes realizaram promoções com entregas de máscaras gratuita e cupons de desconto usando o código “covid-19”. Enquanto as ofertas pipocam pelos feeds, a ciência denuncia uma interação perigosa.
Um estudo conduzido por cientistas da Universidade Stanford, publicado em agosto do ano passado, apontou que jovens que utilizam o dispositivo eletrônico ou outros tipos de vaporizadores têm de cinco a sete vezes mais probabilidade de serem infectados na pandemia do que aqueles que não usam.
Para combater a atuação, as organizações da área da saúde reivindicam que os governos investiguem as empresas e avancem nas leis atuais, para que as restrições às redes sociais sejam mais rigorosas.
Debra Rose, da Tobacco Free Kids, argumenta que, sem recursos dedicados a explorar o marketing sorrateiro e especialistas que realmente entendam como funcionam os canais de mídia social, as agências governamentais continuarão encontrando muita dificuldade para rastrear, entender e regular esse tipo de marketing.
As plataformas não saem ilesas. Mesmo que, em fevereiro de 2020, Facebook, Snapchat e Instagram tenham proibido as promoções de produtos por parte de influenciadores, ainda há lacunas significativas.
Um dos principais obstáculos é que essa política é majoritariamente reativa, o que significa que os usuários precisam denunciar a violação de conteúdo para iniciar um processo de revisão para que a publicação seja removida.
O cigarro nunca sai de cena
A reinvenção das formas de comunicação da indústria do cigarro é ativa e constante. A presença nas “novas mídias” avança, mas continua firme e forte nas telas de cinema e na televisão, garantindo que o conteúdo chegue para um número massivo de pessoas, naturalizando o ato de fumar como um hábito inofensivo.
Embora não haja indícios de patrocínio como no passado, a representação de pessoas fumando nos filmes dos Estados Unidos voltou a crescer consideravelmente nos últimos anos e assusta autoridades de saúde pública do país.
Dados do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês), apontam que, de 2010 a 2019, houve um aumento de 66% dos chamados “incidentes com tabaco” em filmes PG-13 (Parents Strongly Cautioned), classificação que indica que o conteúdo pode ser inapropriado para crianças abaixo de 13 anos.
A Motion Picture Association (MPA), responsável pela atribuição das classificações, fornece uma “etiqueta de fumo” juntamente com a classificação regular. Entretanto, 87% dos filmes permitidos para jovens não possuem esse alerta.
O CDC estima que uma classificação R (Restrita) para filmes com consumo de tabaco, na qual menores de idades só podem assistir ao filme com a presença de um adulto responsável, pode potencialmente reduzir o número de fumantes adolescentes em 18%. Se as taxas continuarem a crescer, por outro lado, a projeção é que 5,6 milhões de jovens vivos hoje poderão morrer com o desenvolvimento de doenças relacionadas ao tabaco.
Rosa Rulff Vargas, doutora em psicossociologia pela UFRJ e pesquisadora do tema, afirma que fumantes em grande escala em mídias podem comunicar uma falsa noção de que o uso de cigarros é mais frequente do que ocorre na realidade, promovendo a percepção de que fumar é um comportamento padrão e “colaborando para construir um olhar trivial sobre o tabagismo”.
“Quanto maior a quantidade de imagens de produtos de tabaco incluídas na programação televisiva e exibidas nos cinemas, maior a preocupação quando a interferência na construção de pensamentos e intenções sobre fumar, e possibilidades de criar expectativas positivas, além de atitudes favoráveis sobre o tabagismo, sobretudo entre jovens e crianças”, alerta Rosa.
É preciso um olhar atento para identificar quais mensagens estão sendo transmitidas, por exemplo, com a exposição massiva de participantes do Big Brother Brasil fumando em festas e na varanda na TV aberta, assim como nas famosas séries das plataformas de streaming.
Um estudo da Truth Initiative publicado em 2019 apresentou uma forte crítica à Netflix, já que muitos dos conteúdos contêm uma quantidade preocupante de cigarros em cena nas séries mais populares entre os jovens de 15 a 24 anos.
Stranger Things, por exemplo, retratou pessoas fumando pelo menos uma vez em todos os episódios da primeira e da segunda temporadas. Outras séries citadas são Orange is the New Black, Unbreakable Kimmy Schmidt e House of Cards. A organização também registrou um crescimento do uso do cigarro na TV a cabo, ainda que menor do que as ocorrências registradas pela plataforma de streaming. Após a publicação dos dados, a Netflix se comprometeu publicamente a reduzir as cenas com cigarros nas produções.