O Joio e O Trigo

Influenciadores se espalham pelas redes e promovem venda ilegal de ‘cigarro eletrônico’

Criadores de conteúdo divulgam discurso sobre redução de danos na contramão de pesquisadores da área da saúde nacional e internacional

Basta jogar poucas palavras em ferramentas de busca na internet para entrar em contato com o inusitado mundo dos vapers. São centenas de publicações, fóruns, blogs, grupos e vídeos em que os usuários e defensores do cigarro eletrônico falam abertamente sobre uma infinidade de aparelhos, marcas e saborizantes. Tudo, por meio de uma linguagem própria, com termos tão específicos que tornam o conteúdo até mesmo inacessível para quem lê pela primeira vez ou nunca ouviu falar sobre o vape.

A “comunidade online” do vapor é tão pulverizada que nem parece tratar do uso de um produto cuja comercialização, importação e propaganda são proibidas no Brasil. O consumo, por outro lado, é permitido.

De maneira geral, os usuários abordam três tópicos nas publicações: a troca e a venda (ilegal) dos vapes, o compartilhamento de dúvidas e opiniões sobre centenas de modelos. Para completar, fazem depoimentos e comentários que exaltam os novos dispositivos como “alternativa ao cigarro tradicional”, o principal argumento dos fabricantes dos equipamentos em nível global.

Entre eles, as grandes corporações do setor de tabaco, como Philip Morris Internacional e a British American Tobacco (antiga Souza Cruz, no Brasil), que afirmam que os Dispositivos Eletrônicos para Fumar (Defs) são menos prejudiciais à saúde do que o cigarro comburente, aquele que essas empresas vendem há décadas e que continuam sendo a sua fonte principal de lucro.

Outras dezenas de marcas fabricantes do vape também anunciam que o produto pode auxiliar fumantes a parar de fumar, reduzindo danos, opinião que ecoa fervorosamente entre os usuários.

A frase “O cigarro eletrônico causa 95% menos danos do que o cigarro tradicional” se tornou um jargão entre os vapers. Apesar de muitas vezes ser usada sem o devido crédito, a afirmação  refere-se a estudos da Public Health England (PHE), departamento de Saúde da Inglaterra, que há anos defende o posicionamento de forma isolada na comunidade científica internacional.

O vapor dos produtos recarregáveis com refis líquidos ou juices que, na maioria, contém nicotina e saborizantes, seria menos nocivo por não causar a combustão que ocorre durante a queima do cigarro tradicional, processo responsável pela produção dos altos níveis de substâncias químicas que fazem mal a saúde.

O argumento de que o dano é menor também é usado para defender o tabaco aquecido, dispositivo que, a partir de uma lâmina eletrônica, aquece uma vareta de tabaco e libera um vapor com sabor.

Na contramão do que dizem os vapers e a indústria, estão  instituições de saúde brasileiras e internacionais que exigem cautela e avaliam que ainda não há estudos contundentes para sustentar o argumento, como mostra reportagem publicada pelo Joio. Esse mesmo entendimento fundamenta a proibição determinada pela Anvisa há mais de uma década (Resolução DC nº 46, de 28 de agosto de 2009):

Art. 1º Fica proibida a comercialização, a importação e a propaganda de quaisquer dispositivos eletrônicos para fumar, conhecidos como cigarros eletrônicos, e-cigaretes, e-ciggy, ecigar, entre outros, especialmente os que aleguem substituição de cigarro, cigarrilha, charuto, cachimbo e similares no hábito de fumar ou objetivem alternativa no tratamento do tabagismo.

Parágrafo único. Estão incluídos na proibição que trata o caput deste artigo quaisquer acessórios e refis destinados ao uso em qualquer dispositivo eletrônico para fumar.

Em março deste ano, por exemplo, o Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos (United States Department of Health and Human Services, em inglês) publicou um relatório no qual endossou que “atualmente há evidências inadequadas para concluir que os cigarros eletrônicos, em geral, aumentam a cessação do tabagismo”.

No Brasil, no entanto, há uma ameaça, já que, após forte pressão da indústria, a questão foi incluída na Agenda Regulatória 2017-2020 da Anvisa. Em 2019, foram realizadas duas audiências públicas sobre o tema, em que foram entregues documentos classificados como evidências técnico-científicas por setores contrários e favoráveis à proibição. O material será analisado por um grupo de pesquisadores externos e resultará na elaboração de um relatório de Análise do Impacto Regulatório.

A decisão foi prorrogada para o segundo trimestre em razão da pandemia do coronavírus, mas, após trocas na diretoria da Agência, a agenda 2021-2023 ainda está sendo redefinida.

A Anvisa, no início do ano, abriu uma consulta pública para selecionar os temas que serão abordados no período e, com prontidão, os vapers se organizaram para tentar garantir que o debate acerca dos cigarros eletrônicos não ficasse de fora.

O site Vapor Aqui, por exemplo, criado por Alexandre Hazard, convocou os usuários via blog e em  redes sociais para participar, com direito ao passo a passo de como acessar o link exato no site da Anvisa.

Presente em todas as redes sociais, o Vapor Aqui é uma das principais referências no mundo vape no Brasil e Hazard é considerado um especialista no tema. Ele é frequentemente convidado para participar de lives, debates e eventos, até mesmo fora do país.

O jornalista afirma ter parado de fumar em 2015 graças ao vaping e se apresenta como especialista em “redução de danos” do tabaco. Seu canal no Youtube possui pouco mais de 500 mil visualizações e cerca de 130 vídeos, entre eles, análises de juices e equipamentos, tutoriais como “as diferentes formas de tragar o seu vape”, qual tipo de nicotina e quantidade a ser usada, assim como registros de participações em palestras sobre redução de danos.

Por meio da Twitch, uma plataforma online para transmissões ao vivo e interação com o público ao mesmo tempo, realiza o “Boteco Vape”, todas as sextas. O podcast “Vá Por Aqui” é a aposta mais recente do influenciador e conta com chamadas para acesso ao Prime Gaming, da Amazon, e ao Twitch, serviço de jogos onde os episódios são gravados.

O discurso pró-vape se equilibra em uma linha tênue. Apesar de Hazard endossar em alguns vídeos e comentários que nenhum produto é 100% seguro e a melhor opção é sempre parar de fumar, aparece frequentemente usando diferentes dispositivos nos vídeos e exaltando-os como alternativa ao cigarro tradicional.

Ainda assim, o Vapor Aqui alega não contrariar o artigo 1º da RDC 46 – no qual é prevista a proibição e promoção de qualquer dispositivo eletrônico para fumar, “especialmente os que aleguem substituição de cigarro ou objetivem alternativa no tratamento​​ do tabagismo” –  por se considerar um projeto jornalístico e informativo.

Em vídeo publicado no Instagram em 9 de fevereiro, após a conta do Vapor Aqui ter sido bloqueada pela rede social devido a denúncias de conteúdo inapropriado, Hazard afirmou que, em contato com o suporte técnico, justificou que não teria quebrado nenhuma diretriz sob o mesmo argumento.

“Citei a RDC 46/2009 que diz que é proibida a propaganda e importação, mas não falar sobre, ter ou usar o cigarro eletrônico. Isso não é proibido. E a nossa página faz isso: informa as pessoas a respeito do vape”, disse, acrescentando que a conta voltou ao ar menos de 24 horas depois, o que seria um sinal verde para o projeto.

Adriana Carvalho, advogada da organização ACT Promoção da Saúde, aponta a fragilidade do argumento do vaper, uma crítica que também se estende aos demais perfis. 

“Se apresenta como site que traz informações sobre o produto, mas se você entrar lá, identifica de pronto que é um site promocional com vários anúncios de publicidades dos produtos, com exaltação ao consumo ao alegar que é um produto menos nocivo do que o cigarro convencional. Os eventos online são uma verdadeira promoção desses produtos eletrônicos, inclusive com distribuição de brindes. Ele, obviamente, está fazendo publicidade dos DEFs, o que é vedado pela lei”, avalia.

O jornalista chegou a ser autuado pela Anvisa, de acordo com despacho publicado no Diário Oficial da União em 6 de março de 2019, com penalidade de multa no valor de R$5 mil.

Nas redes do Vapor aqui não há venda direta de cigarros eletrônicos, mas há anúncios de juices da marca Firefly e uma área específica de contato para empresas que também queiram fazer isso no site.

Em 31 de maio, Dia Mundial de Combate ao Fumo, Hazard publicou um vídeo em seu Instagram no qual aparece dançando e criticando diretamente as organizações de saúde, afirmando que elas não se preocupam com os fumantes, promovem fake news e desinformação.

A reportagem de O Joio e O Trigo tentou contato com Hazard, mas não obteve retorno até a publicação desta matéria.

Influencers para todos os gostos

A maioria dos perfis, principalmente dos vapers que possuem canais no Youtube, seguem o mesmo padrão de produção de conteúdo do Vapor Aqui. Não vendem diretamente os aparelhos, mas fazem análises com longos vídeos vaporando, mostrando os produtos, e parcerias de divulgação das contas de lojas que vendem os dispositivos ou os e-liquids.

São perfis que não quebram a lei vendendo os produtos, mas os promovem indiretamente e dão o caminho das pedras para os interessados, que apenas deverão clicar na opção “maior de 18 anos” para acessar o catálogo dos sites parceiros.

O @VapersBrazil, perfil do vaper Luiz Otávio, possui mais de 26 mil seguidores somente no Instagram. No Youtube, possui mais de 52 mil inscritos, 433 vídeos enviados, incluindo tutoriais para iniciantes.

Apesar de deixar evidente na bio da rede social que não comercializa cigarro eletrônico, o vaper cita a loja White Cloud Brasil, que explicitamente vende os DEFs com direito a mensagem “parcelamos em até 6x SEM JUROS”, em caixa alta. Nesse perfil, com pouco mais de 22 mil seguidores, há um espaço dedicado a parcerias com perfis de influenciadores de alcance muito maior, com públicos que não são exclusivamente voltados para o cigarro eletrônico.

Modelos chamativos e vendidos pela loja foram entregues, por exemplo, para o MC Menor e o MC Jottapê, que possuem, respectivamente, 4,9 milhões e 6,5 milhões de seguidores. Por meio dos stories, elogiando e mostrando os produtos recebidos, a divulgação é bem mais ampla.

Os sorteios de equipamentos e de juices dos mais diversos sabores também são rotineiros entre os criadores de conteúdo do mundo do vapor, assim como a oferta de cupons de desconto em lojas.

Uma característica que chama atenção é que os perfis e canais no Youtube são muitos, mas o alcance de cada conta é diferenciado. Alguns não chegam a 10 mil inscritos. Entre eles, o Vapor e Ciência, patrocinado pela loja Vape Zone BR, o perfil Mariano Vaper e o Vaporacast, primeiro podcast brasileiro exclusivamente sobre cigarro eletrônico, apresentado por Miguel Okumura.

Há canais populares como O Poderoso Vapor, comandado por Filipe Collioni, com pouco mais de cem mil inscritos no Youtube. Já o Zona do Vapor, que conta com 191 mil inscritos no canal e 58,9 mil seguidores no Instagram, de Marcelo Fraresso, acumula mais de 17 milhões de visualizações desde que foi criado, em 2017.

O SmokeVapor, comandado pelo vaper que se apresenta como Sardinha, possui 188 mil inscritos no Youtube e acumula mais de 12,8 milhões de visualizações desde 2015. Já no Instagram, em abril deste ano, eram 37,9 mil seguidores.

De maneira discreta, e diferente de outros vapers que na bio já anunciam que não comercializam produtos, o perfil apresentava feedbacks de clientes e preços dos equipamentos nos destaques sem qualquer cerimônia.

Os fóruns de discussão também são um espaço de articulação dos vapers, entre eles o VapeOn, criado pelo Vapor Aqui, que, além disso, nomeia grupos no Facebook como o Vapor Aqui – Negócios e Vapor Aqui – Ajuda para o vaper.

Segundo analisa Thaysa Nascimento, pesquisadora do Centro de Estudos do Consumo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppead/UFRJ), o discurso comparativo com o cigarro tradicional e o apelo tecnológico do produto podem influenciar, inevitavelmente, outros indivíduos a desenvolverem esse tipo de consumo.

“A estratégia é extremamente visual, com a fotografia sendo pensada para atrair”, comenta Nascimento. Ela destaca que o fato de os perfis serem de micro (até 10 mil seguidores) ou nano influenciadores (até 100 mil seguidores) também é uma forma de chamar a atenção dentro das redes, focando em um nicho específico.

Por trás dos “publiposts”

Em uma simples busca no Instagram é possível encontrar milhares de fotos com hashtags relacionadas ao vape. A tag #vapebrasil, por exemplo, tem mais de 80 mil menções feitas, principalmente em contas de lojas em fotos dos produtos e de modelos que relacionam o vapor a um modelo de vida descolado, jovem e agradável.

A própria lógica da rede, que estimula o compartilhamento a todo custo, pode incentivar que pessoas que não são influenciadoras façam a promoção dos vapes em redes particulares, normalizando o uso dos dispositivos.

“Essa propaganda gratuita surge muito da necessidade de compartilhar o próprio consumo e, de certa forma, transgredir as regras. Há certo fascínio em torno do cigarro e isso por si só parece fazer com que indivíduos queiram alcançar outros indivíduos para esse consumo”, afirma Thaysa Nascimento.

A pesquisadora do Coppead explica ainda que, em teoria, um post de divulgação deveria ser sinalizado de alguma forma por meio da #publi, #ad ou até mesmo do aviso “contém publicidade paga”, o que não é usual quando se trata da indústria do tabaco ou do vapor, já que a comercialização dos produtos e qualquer forma de propaganda é proibida por lei.

Adriana Carvalho, da ACT Promoção da Saúde, frisa que esse é um grande desafio do ponto de vista de órgãos como Anvisa, Ministério Público e das próprias plataformas.

“A pessoa pode tirar despretensiosamente uma foto com o cigarro eletrônico, assim como tirar essa foto recebendo do fabricante para estar ali. Mas essa transparência nem sempre acontece. É um grande desafio para o público e para as autoridades sanitárias identificarem se aquela postagem é ou não uma atividade promocional ou espontânea”, problematiza a advogada.

Covid-19

Como se não bastasse a promoção recorrente do vape em publicações normais, um artigo publicado na Revista Brasileira de Cancerologia, em agosto do ano passado, mostrou que vapers aproveitaram a pandemia para fazer propaganda.

Em maio, a plataforma criou o adesivo “Apoie as pequenas empresas”, como forma de estimular usuários a adquirirem produtos e serviços de fornecedores locais mais impactados economicamente pelo lockdown. Uma oportunidade prontamente utilizada pelos vapers para divulgar juices e equipamentos. Dezenas de posts foram feitos com o selo marcando diretamente os fornecedores, possibilitando a eles o compartilhamento e a ampliação do alcance da publicação.

As pesquisadoras envolvidas na investigação tentaram denunciar a propaganda, mas receberam  mensagens  automáticas  da  plataforma  informando  que  não  seria  possível  analisar a denúncia em razão da sobrecarga imposta pelo coronavírus.

A reportagem procurou as redes sociais para um posicionamento sobre a existência das contas, que flagrantemente promovem os vapes e contrariam a RDC. As assessorias de comunicação do Facebook e Instagram pediram à nossa reportagem indicação de exemplos de algum desses perfis. No dia seguinte, a resposta:

“Removemos as publicações indicadas pela reportagem que feriam as nossas Políticas Comerciais, que não permitem anúncios ou a compra, venda ou troca de produtos à base  de tabaco entre pessoas. As atividades comerciais de lojas devem cumprir a legislação local e respeitar os Padrões da Comunidade do Facebook. Combinamos tecnologia de inteligência artificial e revisão humana para identificar conteúdos que possam violar as regras da plataforma, assim como estamos disponíveis para colaborar com as autoridades nos termos da lei”, diz o posicionamento conjunto das empresas.

O grupo Vapor Aqui Negócios, no qual era possível comprar os DEFs e acessórios foi tirado do ar – e assim permanece até o momento. No Instagram, o perfil @smokevapor_ também foi derrubado no dia 16 de abril.

Em vídeo publicado pelo próprio canal, o vaper Sardinha afirma que estava ciente de que isso poderia ocorrer, porque “provavelmente fazemos parcerias, indicamos lojas que vendam, umas coisinhas assim”.

https://www.youtube.com/watch?v=XmXp-b6IhOU&t=1s

Menos de um mês depois, em 7 de maio, a volta da página foi comemorada pelos seguidores e as vendas seguiram. No entanto, a alegria durou pouco, e atualmente a página segue fora do ar.

Uma nova conta oficial foi criada, @smokervaporoficial, mas, agora, sem os destaques de vendas, sem os preços dos DEFs. Além disso, é privada, ou seja, é preciso uma autorização para acessar o conteúdo Até o momento, o alcance é bem menor em comparação ao perfil anterior.

Há um detalhe, no mínimo, suspeito. Essa nova conta cita outro usuário em sua biografia, o @chamavapes_, no qual há o direcionamento para um site de vendas dos dispositivos. Uma associação óbvia, a começar pela URL, que apresenta a frase jargão de Sardinha.

O Youtube, por sua vez, não respondeu ao questionamento da reportagem.

Estratégia importada

Enquanto no Brasil a promoção dos DEFs nas redes sociais se fortalece, ainda sem a exposição evidente dos atores que financiam esse movimento, a indústria do cigarro avança no exterior com o objetivo de consolidar uma nova geração que troca a nicotina do cigarro tradicional pela entregue no vapor.

É o que explica Debra Rosen, supervisora de estratégias e campanhas da organização internacional Tobacco Free Kids (Campanha para Crianças Livres de Tabaco). Após dois anos de investigação da campanha “Where There’s Smoke”, iniciada em 2015, a TFK documentou mais de 100 campanhas de mídia social usando influenciadores para promover marcas de cigarros da British American Tobacco, Imperial Brands, Japan Tobacco e Philip Morris International.

As propagandas foram registradas em mais de 40 países onde as empresas de tabaco atuaram secretamente – e em alguns casos, ilegalmente. Somente no Twitter, essas campanhas foram vistas mais de 25 bilhões de vezes durante o período.

Além dos influenciadores, que produzem fotos sem a identificação de que a imagem se trata de publicidade, foram localizados patrocínios de festas, eventos de marcas e distribuição de brindes, tal qual feito por vapers no Brasil.

“Este tipo de marketing é especialmente perigoso, porque é amplamente visto pelo público jovem e é difícil para os governos rastrearem e regular. O perfil padrão do influenciador parece ser de pessoas jovens e atraentes com segmentos significativos nas mídias sociais. Os posts são projetados para parecerem autênticos, mas, na verdade, muitos desses influenciadores recebem compensação das agências que os contrataram em nome das empresas tabacaleiras”, detalha Rosen.

A coordenadora da TFK afirma que, em termos gerais, as agências governamentais têm muita dificuldade para rastrear, entender e regular esse tipo de marketing sorrateiro, principalmente sem recursos dedicados exclusivamente a isso. “Philip Morris International, British American Tobacco, Japan Tobacco International e Imperial Brands estão subvertendo as leis de publicidade do tabaco, voando sob o radar dos reguladores governamentais e abusando das políticas das plataformas de mídia social para comercializar produtos para a juventude. Tudo isso, faz parte de uma estratégia enganosa para viciar a próxima geração”, analisa, relembrando o surto de Evali, sigla para “E-cigarette or Vaping product use Associated Lung Injury” (lesão pulmonar associada ao uso de produtos de cigarro eletrônico ou vaping, em tradução livre) nos Estados Unidos.

Até fevereiro de 2020, o país havia registrado 2.807 internações e 68 mortes causadas pelo vape, principalmente da marca Jull. A maioria dos casos ocorreu em decorrência do uso de líquidos contendo tetrahidrocanabinol (THC) e o acetato de vitamina E.

Ainda assim, o Centers for Disease Control and Prevention (CDC) afirma que as evidências não são suficientes para descartar a contribuição de outros produtos químicos presentes nos e-cigarettes para o desenvolvimento das lesões.

Segundo a Tobacco Free Kids, a British American Tobacco fez duas ações com influencers no Brasil para divulgar produtos. Em uma delas, a #AheadBR teve mais de 9 milhões de pontos de visualização e incluiu 280 influenciadores.

Já a #Tastethecity (saboreie a cidade, em tradução livre), contou com fotos e posts feitos por influenciadores em festas e eventos culturais, pessoas ligadas ao cigarro da marca Dunhill. No Brasil, a prática foi identificada pelos pesquisadores no festival Meca Inhotim, de 2016 e de 2017.

Teia de interesses

Desde 2018, a Philip Morris International (PMI), dona das marcas Marlboro e L & M, deu início à campanha institucional “Futuro Sem Fumaça”, que objetiva divulgar o IQOS, seu dispositivo de tabaco aquecido.

Junto com a mudança institucional, a Philip Morris criou a Foundation for a Smoke Free World (Fundação Futuro Sem Fumaça, em tradução livre), com sede em Nova York, uma organização “independente” e sem fins lucrativos que visa a desenvolver pesquisas e fortalecer ações globais contra os impactos à saúde causados pelo tabagismo.

O investimento na fundação é de 80 milhões de dólares anuais pelos próximos 12 anos, cujo financiamento é exclusivamente da própria Philip Morris, como mostrou um artigo publicado na revista The Lancet

Conforme monitoramento feito pela ACT Promoção da Saúde, a Fundação Futuro Sem Fumaça já financiou 130 projetos em 19 países. Algumas das organizações internacionais beneficiadas com a verba possuem braços brasileiros, como a International Network of Nicotine Consumer Organisations (INNCO).

Segundo a Tobacco Tatics, entre 2018 e 2020 a organização recebeu US$ 210 mil para desenvolver uma estrutura organizacional e planos sólidos de negócios com outras entidades. E, óbvio, o Brasil não ficou de fora do planejamento. No site oficial, a INNCO apresenta a Tobacco Harm Reduction Brasil como um dos membros afiliados

A THR Brasil se declara como uma “ONG dedicada à defesa dos direitos dos vapers e à promoção da redução de danos do tabagismo como um direito humano”, de acordo com descrição do perfil no Instagram, que conta apenas com cerca de 200 seguidores. “Faça parte da resistência!”, convoca.

Também trabalhando com “conteúdo informativo”, a organização chegou a produzir uma proposta regulatória, defendendo o cigarro eletrônico como política efetiva de redução de danos entre tabagistas e fez diversas publicações sobre o processo regulatório da Anvisa.

Uma análise cuidadosa desses atores evidencia como eles atuam em rede e possuem ligação com a indústria do cigarro. Evidência disso, é que, entre as parceiras da THR Brasil, está a Filter Magazine, uma revista que também ganhou patrocínio da Fundação Futuro Sem Fumaça. Foram US$ 190 mil para desenvolver uma revista “com estrutura organizacional e capacidade de contar histórias que apresentem fatos sobre a redução de danos”.

Outra organização que recebeu financiamento da PMI é a Vida News, que atua globalmente e promete falar sobre “verdade, ciência e vida” como um “projeto jornalístico”. Entre 2019 e 2021, o portal recebeu mais de US$ 989 mil para promover as “alternativas ao tabaco”.

As semelhanças com o discurso do Vapor Aqui são tantas que Alexandre Hazard participou, inclusive, de um painel no canal Vida News, no qual afirmou que no Brasil há muita desinformação sobre a redução de danos com o vape e que os estudos divulgados a favor da proibição têm “metodologias questionáveis”.

Hazard também participou de eventos com apoio direto daPhilip Morris Internacional, como o II Seminário Internacional de Redução de Danos sobre Tabagismo e garantiu presença em lives com pesquisadores da Souza Cruz.

Fiscalização e política preventiva

Instituições como a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a Associação Médica Brasileira (AMB) e o Instituto Nacional do Câncer (Inca) estão entre os principais órgãos que defendem que o princípio da precaução continue guiando a saúde pública diante da  onda de promoção dos DEFs.

Outro fator preocupante é que os saborizantes presentes nos cigarros eletrônicos podem atrair crianças e adolescentes, com alta probabilidade de desenvolvimento do vício em nicotina sem nunca fumar o cigarro comum.

Stella Martins, médica especialista em dependência química com certificação em Controle do Tabagismo pela Universidade Johns Hopkins, ressalta que, mesmo se existissem estudos de longo prazo com vários perfis de população que mostrassem que os DEFs ajudam na cessação do tabagismo, “não teriam que ser colocados como produtos de risco reduzido, mas como produtos para o tratamento do tabagismo, como uma medicação, e não como um produto que ficará disponível para qualquer um, inclusive para quem não fuma. Não seria analisado pela gerência de produtos derivados do tabaco, mas pela Anvisa medicamentos”.

Stella, autora do livro Cigarro eletrônico: o que sabemos?, publicação que revisou estudos sobre os DEFs,  enxerga a mudança de discurso da indústria do cigarro como uma estratégia para alavancar as vendas e como uma reação à queda do número de fumantes no mercado global, fruto da Convenção-Quadro da Organização Mundial da Saúde (OMS) para Controle do Tabaco (CQCT/OMS), que entrou em vigor em 2005.

Considerando a ampla oferta e a promoção de vape na internet, Adriana Carvalho destaca a necessidade de ações mais intensas por parte dos órgãos fiscalizadores que fortaleçam o monitoramento da Anvisa, que atua com uma equipe enxuta. 

“É muito pulverizado. Autua-se hoje uma empresa e amanhã aparece outra. Muitas não têm telefone celular, não têm estabelecimento comercial com endereço. Não estamos falando de um produto qualquer, estamos falando de saúde pública. É um produto de forte apelo ao público jovem, vedado por uma norma sanitária, e deveria ter uma atuação mais enérgica do Ministério Público Federal e estaduais”, defende a advogada.

De acordo com a Anvisa, entre 2018 e 2019 foram publicadas 76 decisões em primeira instância relacionadas a autos de infração envolvendo a propaganda e exposição à venda de dispositivos eletrônicos para fumar.

Detalhes sobre os Processos Administrativos Sanitários podem ser acessados somente após o trânsito em julgado.

O levantamento mais recente em relação ao monitoramento de vendas online, fruto de uma uma cooperação estabelecida à época entre a Anvisa e uma plataforma de vendas virtual, aponta que 727 anúncios do produto foram retirados do ar entre 2017 e 2018.

A Receita Federal, por sua vez, informou à reportagem que, entre 2017 e 2020, apreendeu mais de 83 mil unidades de cigarros eletrônicos nas cinco regiões do país.

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