O Joio e O Trigo

Alimentação escolar em risco na caótica volta às aulas nas escolas públicas brasileiras

Descaso com recursos do Pnae foram comuns durante meses de escolas fechadas; agora, alimento escolar serve até como chantagem para atrair estudantes  


Em junho deste ano, Vânia dos Santos, trabalhadora doméstica e moradora da comunidade da Pedreira, em São Paulo, recebeu uma ligação da escola onde o filho de 9 anos estuda, o Centro de Educação Unificado Alvarenga. A escola sondava se ela tinha interesse em mandar o menino para assistir aulas presenciais, que eram retomadas em formato híbrido – quando a turma é dividida em grupos menores, onde em uma semana um grupo tem aulas na escola e, na outra, em casa. Vânia tinha interesse. O celular dela é o único aparelho eletrônico com acesso a internet em casa e nem sempre consegue carregar as plataformas digitais em que o filho deveria se conectar com os professores. “O meu celular é velhinho. Não consigo baixar mais nenhum aplicativo e a bateria não dura nada. Ele não estava conseguindo acompanhar as aulas”, conta. 

Na semana em que Vânia atendeu a essa ligação, houve uma explosão de casos de covid-19 em pessoas ligadas à comunidade escolar do bairro, o Jardim Apurá. Segundo a dona de casa – que também é diarista, mas que está desde o começo da pandemia sem poder trabalhar fora para ficar com os filhos, houve casos de crianças contaminadas que chegaram a ser hospitalizadas. Um professor que faleceu em decorrência do novo coronavírus. E uma voluntária, muito próxima de Vânia, que ajudava no retorno às aulas presenciais, também adoeceu. “Falei que não ía mandar meu menino. Eles disseram que não era obrigatório e  fiquei com muito medo. Não ia arriscar meu filho por causa de vaga”, explica.

Algumas semanas depois dessa primeira ligação, a escola tornou a telefonar. Dessa vez, para perguntar da filha mais velha, de 11 anos, que estuda na mesma unidade. “Como os casos tinham baixado, a gente já não estava ouvindo falar mais [de histórias de pessoas contaminadas], e a minha menina é muito estudiosa e pediu muito pra voltar, resolvi mandar [a filha de volta para a escola]. Vi que com esse esquema de menos alunos e com os voluntários, que ajudam a garantir que os meninos fiquem longe um dos outros, usem a máscara certinho, limpem as mãos, me senti mais segura”, explica a diarista, que tem 33 anos e mais dois filhos gêmeos, de 4 anos. 

No município de São Paulo, o retorno às aulas presenciais em formato híbrido não era obrigatório. No início do ano, quando as escolas podiam receber até 35% dos alunos matriculados, a média de comparecimento, segundo o Conselho de Alimentação Escolar (CAE), era de apenas 18%. 

Inicialmente, a baixa adesão das famílias ao retorno no formato híbrido revela a desordem e a transferência de responsabilidades dos programas educacionais nos diferentes momentos da pandemia. Segundo Thalita Pires, conselheira do CAE em São Paulo, os alunos que retornaram às escolas eram os que menos precisavam, ou seja, crianças e adolescentes que estavam acompanhando as aulas online porque tinham celular e computadores com conexão à internet, espaço e tempo adequado de estudo, apoio em casa e se alimentavam bem. 

Uma das hipóteses levantadas pela conselheira, com base no que ela acompanhou junto com as famílias, é a de que  “levar e deixar uma criança na escola é algo que exige organização familiar. É preciso alguém que leve e busque em determinados horários. As famílias mais vulneráveis não têm emprego fixo, não tem horários regulares, muitas vezes, não tem uma avó ou uma vizinha com quem contar. Essa volta em que o aluno vai para a escola e fica duas horas não funciona. Para a mulher, que no final é quem tem que resolver esse pepino, é melhor o esquema que ela já montou com a criança em casa do que ter que abrir mão de uma diária de trabalho, ou cortar o dia dela ao meio, e levar a criança um dia sim, no outro não, e por poucas horas”, explica a conselheira. 

O marido de Vânia é pedreiro e tem trabalhado no último ano em “bicos”, sem contrato fixo. Desde de abril/maio de 2020, a família recebia um cartão merenda de R$ 55 por filho matriculados no CEU, e mais R$ 100 pelos gêmeos, que estão na Educação Infantil. Somados, então, eram R$ 310 para alimentar os quatro com refeições que antes eles faziam exclusivamente na escola. Quem faz “mercado” sabe que R$ 310 não não dá nem para uma semana de almoços e lanches para quatro crianças, sem colocar nessa conta a janta, que na creche as crianças também recebem. 

Volta às escolas  

Neste segundo semestre, o Brasil começou a receber alunos nas escolas na maior parte do país. Em setembro, todos os 27 estados já deveriam ter retomado o ensino em formato híbrido. 

Foram 57 semanas de escolas fechadas, aumento significativo na evasão escolar, defasagem de aprendizagens dos estudantes que retornam e protocolos ainda insuficientes para evitar o aumento de casos e mortes em meio à nova variante delta, que já circula no país. 

Em relação às redes municipais, que são responsáveis pelos anos iniciais do Ensino Fundamental, uma pesquisa da Confederação Nacional de Municípios (CNM), de julho, mostrou que apenas uma parcela muito pequena (17,7%) ainda não tinha previsão de retorno às aulas. Quase um terço das prefeituras (29,5%) tinham reaberto as escolas ainda no primeiro semestre e 38,5% planejavam o mesmo em agosto.

São Paulo, Espírito Santo e Rio Janeiro, estados que já foram o epicentro da contaminação por covid-19 no Brasil, liberaram para as escolas retomarem as atividades presenciais com todos os alunos matriculados, sem esquema de rodízio. Porém, a responsabilidade por tomar essa decisão era do diretor da unidade escolar, não da secretaria de Educação. Decisão que depende, como sabemos, das condições que cada um tem para garantir a segurança dos escolares. Se houver um surto de contaminação, quem será cobrado? Os governos  não respondem. 

A União dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) afirma, a partir de uma pesquisa feita em julho, que 40,4% dos municípios não tinham protocolos de segurança sanitária para o retorno. Que dirá meios para garantir a aplicação de medidas eficientes de combate a contaminação por covid-19. 

É possível, mas veja bem 

Com base em dados de dezembro de 2020 dos Estados Unidos e da Europa, a Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) afirma que as escolas não são locais de maior contágio do que outros ambientes que as crianças e adolescentes frequentam, desde que todas as medidas para evitar a contaminação sejam garantidas. 

O retorno às escolas é possível, afirma o médico pediatra e sanitarista Daniel Becker, que é consultor de fundações e governos. Ele diz que a nova variante delta ainda não é um impeditivo para a retomada.

“Deveria haver um imperativo moral no investimento na educação. Os recursos deveriam ir em massa para adequações das escolas com pequenas reformas e compra de máscaras PFF2 para os trabalhadores e também alunos. Os estudantes ficaram largados à própria sorte enquanto a população toca a vida como se nada estivesse acontencendo”, ressalta. 

De refeição ao kit e a caridade: o que virou a alimentação escolar 

Além dos cartões alimentação, ou cartões de merenda, cujos recursos vêm exclusivamente do caixa próprio de estados e municípios – como os que Vânia recebeu – há ainda as cestas entregues às famílias com recursos do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). Todo mês, o Fundo Nacional de Desenvolvimento Escolar (FNDE), uma autarquia do Ministério da Educação, deposita na conta dos entes federados uma parcela referente ao número de alunos matriculados na rede. Esse valor per capita varia conforme o ciclo de ensino. 

O dinheiro serve como complementação de recursos e não pode ser convertido em voucher, como é o caso dos cartões de merenda. Ao menos 30% dos recursos devem ser usados com alimentos da agricultura familiar, com preferência para agricultores que pertençam à própria comunidade onde está localizada a escola. Essa é uma forma de dinamizar a economia local; quilombolas e indígenas também têm a prioridade de venda. 

Com a pandemia, as escolas fechadas e a obrigação expressa na lei de continuar oferecendo a alimentação escolar para os estudantes, a reação de boa parte dos gestores não foi a de buscar soluções de garantia do direito constitucional à alimentação adequada e da compra da agricultura familiar, mas a da política pública mais simplista: o cartão.

“Que é também a política pública mais cara. Uma coisa é a prefeitura comprar uma tonelada de arroz de um produtor. Ela vai pagar bem mais barato no quilo do arroz que a gente paga no supermercado. O CAE foi contra essa política, porque alimenta muito menos gente com muito menos comida. E se é possível mandar comida para escola preparar a merenda, é possível mandar o  alimento para formar cestas e serem distribuídas na mesma escola. Não consigo entender esse argumento de que a é uma logística impraticável a de distribuição de cestas”, afirma Thalita Pires. 

A coordenadora-geral do Pnae no FNDE, Karine dos Santos, conta que, no início, lá nos meses de abril e maio de 2020, a pressão dos representantes das secretarias de Educação estaduais era para que a legislação do Pnae fosse modificada, e o recurso pudesse ser repassado diretamente às famílias nos cartões e aplicativos de pagamento. 

“A pressão foi enorme, mas nós fizemos muitas conversas internas e com organismos internacionais também, como OPAS e FAO, e entendemos que não era uma política adequada”, afirma. 

Com isso, cada secretaria de Educação se organizou de uma forma. No Piauí, os kits alimentação foram entregues a cada 30 ou 60 dias para os alunos do ensino integral e o que ía nos pacotes a secretaria não informa. O governo do Amapá afirma que os kits foram distribuídos mensalmente, com arroz, feijão, óleo de soja, açúcar, macarrão, leite em pó, bolacha salgada, biscoito doce, flocos de milho, sardinha enlatada e farinha de tapioca.

No Distrito Federal, os kits foram entregues em dois momentos apenas para alunos de zonas rurais inscritos em programas sociais. No Pará e em Pernambuco, não houve entrega de alimentos em nenhum momento. No Paraná, alunos em comprovada situação de vulnerabilidade social receberam os alimentos apenas em dois momentos ao longo de todo o ano. 

Na cidade de São Paulo, a política do cartão só foi universalizada para todos os alunos da rede em meados de outubro de 2020 – próximo às eleições municipais. Antes disso, apenas alunos cadastrados em programas sociais garantiram o direito. A entrega de cestas não foi uma política permanente. 

O segurança escolar Marcos dos Santos é pai de dois alunos da rede paulistana, uma menina de 10 anos e um menino que possui perda intelectual, de 9 anos. Em 2020, ele esperou por seis meses até que os recursos do cartão merenda, prometido pela prefeitura, estivesse com saldo. Cestas, não recebeu nenhuma em 2020. Passou a receber em junho e julho deste ano: um mês uma cesta de produtos não perecíveis, com arroz, feijão, óleo, açúcar, sal, pão e leite em pó, e no outro mês uma “sacola verde”, com frutas e legumes. 

Marcos fez questão de não chamar o pacote com os alimentos de cesta, mas de sacola, “porque a quantidade de alimento que tem ali é como se fossemos dar um pulo no mercado para comprar alguma coisinha que falta. Não supre a quantidade de  alimentos que eles [os filhos] comiam na escola e agora comem em casa. Nossa despesa aumentou muito na pandemia. A única renda da casa é a minha, porque minha esposa não tem condições de trabalhar fora tendo um filho especial para cuidar”, conta o segurança. 

Keyla Santos da Graça, mãe solteira de três crianças, desempregada, e moradora da comunidade do Cigano, na cidade de Santo André, em São Paulo, recebeu o cartão com saldo de apenas um dos filhos, o mais velho, e só durante o ano passado. Em janeiro deste ano, o cartão deixou de ser carregado. Ela não foi informada pela escola sobre o que ocorreu. “Acho que eles não deram mais conta de pagar, né? Aconteceu isso com as cestas dos mais novos também.” Keyla nos disse que não sabia que é um direito dos filhos receberem a alimentação escolar ainda que eles estejam estudando remotamente e que o cartão era uma ajuda.  

Mais pobreza e menos alimento na mesa 

Com o decreto que fixou o estado de calamidade pública, publicado pelo governo federal em 2020, as regras para o uso dos recursos do Pnae foram flexibilizadas pelo FNDE  “para não prejudicar os órgãos executores da política e salvaguardar os recursos públicos, uma vez que havia uma série de condições e dilemas novos trazidos pela pandemia”, destaca a coordenadora-geral do Pnae no FNDE, Karine dos Santos. 

Com isso, as secretarias de Educação dos estados e municípios ficaram desobrigadas a usar os recursos do Pnae em 2020, podendo reprogramar o dinheiro para este ano. E foi isso mesmo que aconteceu em diversos lugares. 

No Amapá, os recursos referentes às parcelas de 2020 e 2021 ainda não foram usados e o estado não informou como pretende gerenciar o recurso. No Pará, o dinheiro do programa também não foi usado em 2020 e começou a ser gasto agora, para encher as despensas das escolas no momento de retorno dos estudantes. Em Pernambuco, a mesma situação: o dinheiro do Pnae foi usado apenas no curto período de aulas anteriores à pandemia. A partir de meados de março e início de abril foram para o caixa do governo. 

“A alimentação escolar”, lembra Vanessa Schottz, nutricionista, professora adjunta do Curso de Nutrição da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e integrante da Articulação Nacional de Agroecologia, “é uma das principais estratégias de combate à fome num momento como esse, em que o Inquérito Nacional de Segurança Alimentar [desenvolvido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar] mostra que há uma parcela significativa da população brasileira em algum grau de insegurança alimentar e nutricional, e no grau mais grave, onde já há situações concretas de fome.”

Insegurança alimentar é quando alguém não tem acesso pleno e permanente a alimentos. Hoje, em meio à pandemia, mais da metade da população brasileira está nessa situação, nos mais variados níveis: leve, moderado ou grave. E a insegurança alimentar grave afeta 9% da população – ou seja, 19 milhões de brasileiros estão passando fome.

“Com pouquíssimas políticas no âmbito federal de combate à fome, a alimentação escolar é um programa de grande relevância do ponto de vista nutricional. É fundamental que os alunos recebam a merenda, seja quem tá em casa assistindo aula no modelo remoto seja quem tá assistindo aula presencialmente na escola”, completa a professora e nutricionista. 

Alimentação escolar é uma obrigação, mas cumpre quem quer 

Embora muito municípios e estados não tenham provido alimentação escolar para todos os alunos da rede, adotando critérios de vulnerabilidade social como inscrição no Bolsa Família e no CadÚnico, ou tenham cortado as cestas e cartões no ensino híbrido, deixando de fornecer o alimento nos dias que o aluno não vai à escola, essa decisão não é amparada por nenhuma lei. 

A lei 13.987 prevê que a alimentação seja fornecida todos os dias a todos os alunos que estão em aulas. “Ou seja, se o aluno está em casa ou na escola, ele tem direito aquele alimento, e a escola, com seu grupo de nutricionistas e quadro técnico, tem que pensar a melhor forma de fornecer esses alimentos nessa realidade”, enfatiza Karine.

O repasse, reforça a coordenadora do Pnae, é feito em parcelas pelo FNDE. Portanto, todo mês cai na conta dos municípios e estados. Se os gestores estão usando ou não, ou cumprindo com os critérios do programa, o governo federal saberá um ano depois, na prestação de contas. Os órgãos executores do programa, que são as prefeituras e o governo estadual, trabalham sem serem fiscalizados. A forma que a sociedade tem hoje de cobrar a execução do programa, aponta Karine, é a denúncia ao Ministério Público. 

Chantagem  

O desejo expresso das secretarias de Educação de que os alunos voltem a fazer o caminho para a escola foi condensado no pronunciamento do Ministro da Educação, Milton Ribeiro, ao dizer que “a volta às aulas não poderia estar condicionada à vacinação completa de toda a comunidade escolar.” 

Ao que tudo indica, esse também é o desejo dos pais e dos próprios estudantes. O ônus da pandemia para a Educação “é imenso. Há evasão para o mercado de trabalho, perdas de habilidades, proficiência, rede de proteção e alimentação”, reforça o pediatra Daniel Becker.  A discordância é sobre em que condições voltar. E nesse desacordo, a alimentação escolar, justamente por ser tão fundamental às famílias, têm sido usada como peça de barganha e constrangimento. 

Por meio de nota, Rondônia e Sergipe indicam que o dinheiro dos cartões e as cestas não serão cortadas para os alunos que não voltarem para o formato híbrido. Há ainda aqueles que estão, por ora, mantendo esses repasses diretamente para as famílias com a retomada das aulas na escola, levando em conta que há dias em que os alunos estão em casa e nesses dias eles também precisam comer, como informaram a secretarias da Bahia, de Minas Gerais e do Piauí.

Mas a tendência tem sido a de condicionar a alimentação escolar à presença dos alunos na unidade. Ou seja, o estudante que estiver tendo aulas remotas, seja porque o ensino está em formato híbrido, seja porque a família optou por não mandá-lo presencialmente em nenhum dia, deve ir até a escola para poder se alimentar e os cartões são  imediatamente cancelados. 

É o caso das escolas do estado de São Paulo, do Amapá, Distrito Federal, Maranhão, Pará, Paraná, Pernambuco, do município de Boiçucanga, no litoral paulista, e da cidade do Rio de Janeiro. 

No Rio, a prefeitura firmou um acordo judicial em 2020 – após se negar a fornecer alimentação em qualquer formato e depois a fornecer cestas alvo de denúncias dos movimentos de mães de que os alimentos chegavam estragados – a fornecer um cartão no valor de R$ 55. Esse acordo foi intermediado pela Defensoria Pública e a Coordenadoria da Infância. Na época, o valor foi avaliado como insuficiente, conta Guilherme Pimentel, ouvidor-geral da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro,  mas, “diante de decisões anteriores do Supremo Tribunal Federal, como a dada pelo ministro [José Dias] Toffoli de que o judiciário não tem competência para decidir sobre alimentação escolar, e dos relatos das mães de que elas estavam fazendo caldinho-quente, que é uma mistura de fubá, água e sal, para as crianças irem dormir com a barriga quente, optou-se por aceitar o valor e continuar lutando por reajuste com o cartão na mão”, conta o ouvidor. 

Em 2021, com a retomada das aulas, a prefeitura pediu a revisão do acordo, propondo servir a alimentação exclusivamente nas escolas. As mães e os movimentos sociais articulados em torno da alimentação escolar passaram, então, a avaliar as condições de um possível novo acordo. E as dificuldades são diversas. Refeitórios pequenos para um universo muito grande de alunos matriculados, o que inviabiliza o distanciamento social necessário e problemas com o transporte – no Rio, houve corte de linhas, por exemplo, e há, é claro, a preocupação em andar em ônibus superlotados. 

Enquanto a revisão do acordo era avaliada, toda a comunidade escolar foi pega de surpresa com publicações da prefeitura nas redes sociais informando que os cartões estavam suspensos e que a alimentação dos estudantes seria feita na escola. “Ou seja, descumprindo de forma unilateral um acordo judicial ainda em vigência. Por outro lado, estamos recebendo relatos de forma anônima de diretores de escolas em bairros mais remotos de que os alimentos não estão chegando. A falta e a insuficiência de alimentos nas escolas está acontecendo no Rio de Janeiro”, garante o ouvidor. 

Para receber as denúncias, a ouvidoria criou grupos de WhatsApp, por onde esses relatos “chegam no volume de centenas, viram relatórios e com esses relatórios criamos contraprovas às alegações das secretarias de que as cestas estão sendo entregues, os cartões carregados certinho, e por aí vai”, explica Guilherme. 

Mães, alunos, políticos, movimentos sociais e o próprio Judiciário têm se organizado nas redes sociais com a hashtag #AlunoCariocaComFome. São relatos e fotos do que (não) tem sido servido nas escolas e a reivindicação de que a aglomeração nas escolas não pode ser uma opção, muito menos a única, para os estudantes se alimentarem. 

O médico Daniel Becker é a favor do retorno às aulas presenciais e fez recomendações para a prefeitura do Rio, como a compra de máscaras PFF2 para todos os trabalhadores; ajudou a montar ainda um documento com os parâmetros necessários para que esse retorno seja seguro, o que inclui pequenas reformas das unidades escolares. No entanto, é contra a medida da prefeitura de condicionar a alimentação à presença. 

“As famílias têm o direito de escolher o que é o melhor para elas, ainda mais num mundo pandêmico. Usar o alimento como coerção é absurdo. Há situações específicas em cada casa, com presença de idosos, pessoas com comorbidades. Elas têm de ter essa opção”, reconhece o médico. 

E quem se contaminar com a covid-19? 

Adicionado ao drama das famílias que têm de escolher entre se sentirem seguras ou alimentarem os filhos, está uma pergunta que nenhuma secretaria de Educação sabe responder: se o aluno estiver com suspeita de covid-19 ou com a confirmação da contaminação e for afastado da escola por 14 dias, ele receberá cestas de alimentos ou ficará privado da alimentação escolar? 

Não encontramos em nenhuma das cartilhas pensadas para o retorno às aulas, inclusive às elaboradas especialmente para as questões nutricionais e de manipulação dos alimentos, entre elas a do FNDE, do governo federal, protocolos específicos para esta situação, que deve se tornar cada vez mais comum. 

Há o risco, como aponta a nutricionista Vanessa Schottz e o ouvidor Guilherme Pimentel, que estão em contato mais próximo das famílias, do aluno ir à escola mesmo contaminado porque precisa se alimentar, o que coloca em risco toda a comunidade escolar. 

Bahia 

No estado da Bahia a alimentação também é usada como umas das estratégias para trazer os alunos de volta para as escolas, mas pela suplementação e não subtração de oferta, ainda que essa suplementação esteja baseada no vazio de compras do Pnae em 2020. 

Vamos lá: para os alunos da rede estadual, o estado oferece um cartão no valor de R$ 55 por aluno. Todos recebem. Não há critério de vulnerabilidade. O dinheiro do Pnae não foi usado em 2020, mas reprogramado para ser gasto agora, quando as cozinhas das escolas voltaram a funcionar.  Portanto, não houve entrega de cestas e kits com alimentos para as famílias no ano passado e nem neste.  

O superintendente de planejamento operacional da rede escolar, Manoel Calazans, afirma que o estado faz uma ampla campanha para que os alunos retornem à escola. “Nós estamos perdendo alunos para o mercado de trabalho. Não dá pra ficar mais seis meses sem escola, o prejuízo vai ser enorme. Estamos perdendo alunos para outros arranjos e a escola fica em segundo plano.” alega. 

A busca ativa dos alunos inclui duas refeições servidas na escola – almoço e janta ou café da manhã e almoço (antes da pandemia era apenas uma) e os estudantes que comprovarem frequência nas aulas recebem um cartão chamado de Bolsa Presença, no valor de R$ 150. É importante reforçar: a inclusão de mais uma refeição na programação foi feita à custa dos recursos do Pnae não usados em 2020. 

Como falamos, a reprogramação dos recursos do programa de um ano para o outro é possível, mas só até 30% da verba. Em 2020, com o decreto de calamidade pública, os gestores tiveram a opção de reprogramar todo o recurso para 2021, o que não poderá se repetir em 2022. Isso significa a possibilidade de uma explosão de compras neste final de ano, de alimentos da agricultura familiar com a reabertura total das escolas. Mas as vendas  só serão possíveis para os agricultores e famílias de estudantes que, de alguma forma, conseguiram se virar em 2020. 

As merendeiras, responsáveis por colocar a mão na massa e transformar esses programas em refeição para a molecada, sabem bem a diferença entre uma comida no prato e a promessa de um kit alimentação que pode chegar ou não. Maria Santana é merendeira na Escola Municipal Rui Barbosa Veredas, em Tabocas do Brejo Velho, sul da Bahia. Em 2020, ela afirma que os alunos receberam apenas um kit de alimentos e boa parte dos era de produtos processados ou ultraprocessados, como atum enlatado, macarrão, bolacha e achocolatado. 

“Eu conheço os meninos [da escola], sei que nem todos têm condições de comer bem em casa como eles comiam na escola. E na cidade tem muitos agricultores, então, era só comprar da gente da cidade. Mas nem sempre é assim que funciona. Tem muita burocracia”, conta a merendeira. 

Para Maria, cuja vida há mais de trinta anos é dedicada a cozinhar para que os estudantes possam ter boas refeições, a pandemia – e a desorganização na distribuição dos alimentos escolares – foi uma angústia enorme, que ela espera, agora, chegue ao fim. 

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