“Bandeirinhas” da Ciclofaixa trabalham nove horas, ganham R$ 100 por dia e não têm pausa para refeição

Responsável pela operação do circuito, Uber nega qualquer relação com os controladores de tráfego, contratados como “voluntários”

Os controladores de tráfego da Ciclofaixa de Lazer de São Paulo, que ocorre aos domingos e feriados, são considerados “voluntários”, recebem R$ 100 por dia trabalhado e têm direito a dois lanches, compostos por um pão com presunto e queijo, uma banana, uma maçã e uma garrafa de água de 510 ml. 

Não há pausa para refeição, então os alimentos são consumidos pouco a pouco, durante o horário de trabalho, que vai das 7h às 16h. Ao longo dessas nove horas eles têm três pausas para o banheiro, que ocorrem em horários determinados, quando são rendidos por uma biker que percorre o trecho no qual estão instalados.

Os “bandeiras” são orientados a chegar a seus postos às 6h45, e a condução fica por conta própria. Quando se atrasam ou faltam, entram na lista de colaboradores que trabalham meio período e ganham R$ 50, até que um novo ponto, de período integral, seja encontrado para eles. A espera pode demorar algumas semanas. 

Em nota, a Uber, patrocinadora oficial da Ciclofaixa desde junho de 2020, afirmou ao Joio que a entidade responsável por “operar” e contratar os controladores de tráfego da Ciclofaixa de Lazer é a Associação Brasileira de Ciclomobilidade. 

A entidade foi procurada, mas não respondeu a questionamentos por e-mail ou pelo número de telefone disponível em seu site. Pelo que foi possível apurar, a associação não tem endereço físico.

De acordo com o convênio firmado no ano passado com a Prefeitura Municipal de São Paulo, cabe à Uber “contratar e utilizar fiscais e agentes como monitores de travessia, devidamente uniformizados e treinados pela CET, para orientação sobre as faixas de travessia dos ciclistas, desvios, cruzamentos e semáforos”.

Também conforme o documento, a Uber estima gastar 11,5 milhões de reais anualmente com a operação do circuito.

Controladora de tráfego da Ciclofaixa na região do Parque do Povo, Zona Oeste da Capital (Foto: Lucas Guarnieri Marteli)

Quem são os “bandeirinhas” da Uber?

Conversamos com Cláudia* nas proximidades do Parque do Povo, zona oeste da capital paulista. Por cuidar de um irmão, ela não conseguiria trabalhar durante a semana, então sobrevive com a remuneração da ciclofaixa, de cerca de R$ 400 mensais, e através da ajuda de familiares.

“Trabalho na Ciclofaixa há nove anos”, conta ela, relembrando a época em que o Bradesco Seguros ainda era o patrocinador do circuito. “Naquele tempo o valor era o mesmo, 100 reais, mas não tinha nem guarda-sol, nem cadeira, era muito ruim.”

Moradora do Jardim Ângela, Maria* (50) acorda às 3h50 para conseguir chegar em seu ponto, na Avenida Brasil, no horário combinado. “Não gosto do lanche, que vem frio e não dá pra esquentar”, diz ela numa conversa breve com a reportagem. 

O marido é aposentado e uma das filhas está na faculdade. Além do trabalho na ciclofaixa, ela faz alguns bicos durante a semana para complementar a renda dentro de casa. Tinha uma doceria, que fechou durante a pandemia.

“No começo eu achei totalmente inadequado não ter horário de almoço”, conta Tiago* (39), que atua na Av. Paulista, “mas depois entendi que é correria mesmo, não tem jeito”. 

Ele diz que alguns colegas levam sanduíches e sucos para complementar a alimentação durante o trabalho, mas não é o caso dele: “Eu tô acostumado a ficar sem almoçar. Então, só vou comer os lanches quando chego em casa de noite. Aí junto tudo e sento a madeira”.

Tiago mora na região da Mooca, de onde leva cerca de 30 minutos para chegar na Ciclofaixa. Também faz bicos como servente de pedreiro. No mês passado, conseguiu juntar R$ 700. 

Para Henrique* (41), o lanche fornecido durante o trabalho é suficiente, mas ele explica que toma um café da manhã reforçado antes de sair de casa, às 5h30, no Tucuruvi: “Vitamina de amendoim e pão, Sucrilhos com iogurte ou leite com Nescau e pão”, diz. 

Henrique explica que o deslocamento até o local de trabalho não é custeado, o que foi confirmado pelas outras fontes ouvidas pela reportagem. 

Ele diz também que assinou um papel formalizando o trabalho na Ciclofaixa, mas que não recebeu uma cópia do documento: “O papel dizia que o trabalho seria um voluntariado remunerado, sem nenhum vínculo empregatício”, explica ele. 

“Bandeiras” recebem dois pacotes com banana, maçã, água e lanche de presunto e queijo para nove horas de trabalho (Foto: Lucas Guarnieri Marteli)

Irregularidades

Para a nutricionista Angélica Freitas, presidente da Associação Paulista de Nutrição, o alimento fornecido aos trabalhadores da ciclofaixa é inadequado se considerada a extensão do período de trabalho.

“É bem precário, tanto em volume quanto em composição”, argumenta ela. “O ideal seria ter uma grande refeição durante esse período, como preconiza o Programa de Alimentação do Trabalhador, o PAT.” 

“Se considerarmos os hábitos alimentares do estado de São Paulo, essa refeição seria composta por arroz, feijão, legumes e uma mistura”, explica a nutricionista. “E também é nocivo que eles não tenham uma pausa para se concentrar na refeição.”

A especialista em Direito e Processo do Trabalho Andressa Conejo Ruiz lembra que o fornecimento da alimentação não é exigido por Lei, mas o empregador é obrigado a garantir 15 minutos para refeição e descanso aos empregados que trabalham mais que quatro horas e uma hora para aqueles que trabalham seis horas ou mais.

“Verificamos, diante do contexto inicialmente apresentado, que há inobservância às Leis trabalhistas, circunstância que pode culminar, se houver reconhecimento de vínculo de emprego entre as partes, no pagamento de horas extraordinárias, além de responsabilização pela infringência de norma atinente à saúde do trabalhador”, diz um parecer elaborado pela advogada a pedido do Joio.

Andressa observa também que o regime dos bandeiras da Ciclofaixa não se encaixa nas regras estipuladas pela Lei do Serviço Voluntário (nº 9.608/1998), que define trabalho voluntário como a atividade não remunerada, prestada por pessoa física a entidade pública ou instituição privada de fins não lucrativos.

“A empresa Uber definitivamente não se enquadra no conceito de ‘entidade pública’ ou de ‘instituição sem fins lucrativos’”, diz o parecer já mencionado. “E ainda que verificada a existência de Associação para contratação dos ‘bandeiras’, o quadro fático como um todo afasta o enquadramento na Lei do Serviço Voluntário.” 

Controlador de Tráfego da Ciclovia na região do Parque do Povo (Foto: Lucas Guarnieri Marteli)

Quem é responsável? 

Além dos questionamentos remetidos à Uber e à Associação Brasileira de Ciclismo, o Joio também contatou a Prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria de Mobilidade e Trânsito (SMT), fazendo questionamentos relativos à fiscalização da Ciclofaixa e às condições de trabalho dos controladores de tráfego, mas não obteve resposta.

Ouvido pela reportagem, um ex-funcionário da Prefeitura que teve papel importante na implementação da Ciclofaixa de Lazer, em 2009, se surpreendeu ao ouvir o nome da Associação Brasileira de Ciclomobilidade. 

“Nunca ouvi falar, e olha que estou há quinze anos trabalhando com isso”, diz. “Devem ter criado com o propósito de operar a ciclofaixa.” Ele ressaltou que o site da entidade não lista diretores, presidente ou a existência de um conselho gestor.

O ex-funcionário, que continua atuando no segmento, lembra que, no período em que a patrocinadora da Ciclofaixa era a Bradesco Seguros, já havia a terceirização da operação direta do circuito, dessa vez pela Federação Paulista de Ciclismo.

“A Patrocinadora não tem capacidade de fazer a execução operacional, nem é a missão dela”, argumenta ele. “Então, ela contrata uma empresa que tenha expertise nessa área.” 

Em conversa com a reportagem, um conhecido cicloativista da cidade de São Paulo confirmou que a mesma configuração de terceirização se manteve, mesmo após a Bradesco Seguros desistir de patrocinar o evento.

“A Prefeitura tentou fazer a contratação direta da empresa que fazia a operação da Ciclofaixa, mas identificou muitas inconsistências”, conta ele. “Então preferiu manter o mesmo esquema, sabendo que a Uber também iria terceirizar o serviço, possivelmente para a mesma empresa.”

A reportagem perguntou à Federação Paulista de Ciclismo se a entidade ainda tem relação com a Ciclofaixa de Lazer da Cidade de São Paulo, mas não obteve resposta.

*Os nomes foram trocados a pedido das fontes.

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