Moradores do alto rio Acará estão organizados para a reocupação do território do qual foram expropriados nos anos 1980
Quilombolas da Vila Palmares, localizada no município de Acará (nordeste do Pará), relatam que seguranças terceirizados e funcionários da empresa produtora de óleo de dendê Agropalma S.A. estão armados, encapuzados e fazendo escavações para encurralá-los. Veja aqui e aqui os vídeos obtidos pelo Joio. A empresa Agropalma S.A. fornece óleo de palma para a Nestlé, conforme indicam documentos tornados públicos pela própria multinacional suíça.
Os quilombolas encontram-se desde ontem (domingo, 6/2) realizando uma retomada de seu território, do qual alegam terem sido expulsos na década de 1980 para dar espaço ao monocultivo de dendê da Agropalma. Eles reivindicam o território onde historicamente estavam localizadas as comunidades Nossa Senhora da Batalha e Santo Antônio. Os quilombolas alegam que, no local, hoje estão duas fazendas da empresa Agropalma: a fazenda Roda de Fogo e a fazenda Castanheira.
José Joaquim dos Santos Pimenta é presidente da Associação dos Remanescentes de Quilombos da Comunidade da Balsa, Turiaçu, Gonçalves e Vila Palmares do Vale do Acará e um dos moradores da Vila Palmares, que lidera a retomada do território. Ele relata que ontem mesmo, quando iniciaram a ocupação de seu território tradicional, “seguranças da SegurPro (terceirizada que faz serviço para Agropalma) foram na comunidade e fizeram uma conversa conosco, pacífica”. Hoje, ao retornarem para as atividades de retomada de onde era o quilombo, como informa Joaquim, “a empresa Agropalma mandou um chefe junto com os seguranças da SegurPro tirarem fotos e verificarem documentos e chassis da nossa moto e carros”.
Os quilombolas haviam atravessado para a margem direita do rio Acará, onde ficam as comunidades das quais foram expulsos e cujas posses reclamam. “Nós achávamos que era só aquilo”, relata Joaquim.
No final da manhã desta segunda, entretanto, o clima ficou mais tenso. Joaquim pediu para dois quilombolas voltarem para a Vila Palmares, para fazer compras, e descobriram o caminho impedido. “Aí nos deparamos com duas caminhonetes e um carro pequeno. As duas caminhonetes cheias de seguranças armados e um carro da Agropalma com funcionários da diretoria. Houve uma discussão tensa”, informa Joaquim, em entrevista concedida por telefone de sua casa, na Vila Palmares, para onde foi escoltado por outros quilombolas para garantirem sua segurança e realizar contato telefônico com a Defensoria Pública, com o Ministério Público do Estado do Pará (MPPA) e com o Joio.
“A gente precisa fazer o nosso trajeto, e a Agropalma plantou dendê dentro da estrada da nossa comunidade. E agora não quer que a gente transite”, disse Joaquim. “Nós não temos segurança, precisamos de segurança, porque nossa vida está em risco”, afirma, com voz preocupada.
Entenda o contexto
Joaquim alega, também, que a “Agropalma não respeita decisão de Justiça e não respeita o Ministério Público”. O líder quilombola se refere às decisões tomadas pelo Tribunal Justiça do Estado do Pará, que em 2018 bloqueou as matrículas das duas fazendas, Roda de Fogo e Castanheira, após o Ministério Público do Estado do Pará (MPPA) ajuizar Ação Civil Pública. Em nota publicada no momento da decisão, o MPPA afirmou que “as áreas das fazendas Roda de Fogo e Castanheira teriam sido alienadas com base em documentos falsos emitidos por cartório inexistente e por pessoas sem habilitação para tanto”.
Após a Agropalma recorrer, o Tribunal de Justiça do Estado do Pará, em decisão da desembargadora Célia Regina de Lima Pinheiro, manteve o cancelamento da matrícula das fazendas Roda de Fogo e Castanheira. As decisões judiciais indicam a existência de grilagem de terra, fraude cartorial e corrobora com a narrativa dos quilombolas desalojados. Entretanto, as duas fazendas seguem operando com a Agropalma, seja para fins de preservação ambiental da empresa, seja para produção de dendê.
“Nós soubemos, ontem pela manhã, que os quilombolas decidiram reocupar o território de onde foram expulsos desde os anos 1980”, afirma Elielson Pereira da Silva, doutor em Desenvolvimento Socioambiental no Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará (UFPA), que desde 2019 acompanha e pesquisa a situação dessas comunidades em meio ao monocultivo de dendê. “Identificamos uma série de violações que vem sendo praticada nessas três, quatro décadas”, desde os anos 1980, quando os quilombolas foram expulsos de seu território, explica Elielson.
“O território reivindicado por essas famílias está sobreposto a esses registros imobiliários fraudulentos”, disse o pesquisador.
De acordo com Elielson, foi por isso que “um grupo de aproximadamente 60 quilombolas atravessaram da Vila Palmares até a beira do rio Acará”. De lá seguiram para a margem direita do rio Acará, onde existia a comunidade Nossa Senhora da Batalha, que fica na margem direita do rio, desalojada pelos empreendimentos do dendê, explica o pesquisador. “Eles refizeram o antigo trajeto pelo ramal Nova União, aberto pela prefeitura local no início dos anos 1990, que ligava a Vila Palmares à beira do rio. Atualmente esse acesso encontra-se tomado por monocultivos de dendezeiros”, afirma Elielson.
“A empresa que presta serviço para a Agropalma, reforçou seu contingente de seguranças. Acompanhados por um funcionário da empresa que se recusou a se identificar, estão tentando, neste momento, encurralar as famílias que estão lá, no território (quilombola). Eles determinaram que um tipo de maquinário pesado fosse utilizado para fazer uma escavação, justamente no acesso à beira do rio. Abriram uma cratera para obstaculizar o ir e vir das pessoas, pois elas precisam passar por esse local para chegar a Vila Palmares, que fica a 9 quilômetros”, detalha Elielson.
O pesquisador ressalta que esse encurralamento vem, “inclusive, em desrespeito a uma recomendação do Ministério Público estadual, que orienta que a empresa se abstenha de impedir o livre acesso das pessoas até o cemitério, até a beira do rio”.
Por nota, o Ministério Público do Estado do Pará disse que “recomenda a Empresa AGROPALMA S/A., e seus prepostos, no que couber, a adoção de medidas que NÃO OBSTACULIZEM/IMPEÇAM/RESTRINJAM o tráfego de comunitários do Alto Rio Acará pela estrada que dá acesso ao cemitério da antiga Vila Nossa Senhora da Batalha, localizado às margens do Rio Acará, e ao rio Acará no Município do Acará-PA, com a finalidade de assegurar direitos de locomoção e liberdade religiosa, crença e consciência”. Veja aqui as recomendações do MPPA quanto à liberdade de circulação dos quilombolas pelos seus territórios.
Para Andreia Macedo Barreto, defensora pública do Estado do Pará, da Defensoria Agrária de Castanhal – que acompanha a demanda de titulação dos territórios quilombolas e as violações cometidas pela empresa Agropalma –, “os processos administrativos da empresa devem ser indeferidos, seja em razão da prática da grilagem, seja porque tramita processo da associação quilombola, que tem prioridade no processo de regularização fundiária. As terras deveriam ser retomadas pelo estado do Pará para destinação de povos e comunidades tradicionais que foram desterritorializados”.
Atualmente, os quilombolas demandam a titulação do território quilombola ao Instituto de Terras do Pará (Iterpa). A reportagem do Joio teve acesso ao processo.
A Defensoria Pública do Estado do Pará está acompanhando a situação de encurralamento dos quilombolas
“Neste momento, o clima é tenso, pois os quilombolas se recusam a sucumbir a esta tentativa de encurralamento”, afirma Elielson.
Por nota, a Agropalma afirma que: “a Agropalma não impede a circulação de comunidades locais pelas áreas de servidão que estão insertas em suas posses e propriedades. Infelizmente, um grupo de pessoas aproveitou-se disso para adentrar em uma área que não é de servidão e declarou estar fixando moradia no local reivindicando a propriedade da terra – muito embora não tenha apresentado nenhuma documentação, decisão judicial ou administrativa reconhecendo este pretenso direito.”
A nota segue, afirmando que “para evitar novas invasões e fazendo valer seu direito legal ao desforço imediato, a Agropalma adotou medidas que dificultam a perpetuação desta ação ilegal. A Agropalma esclarece que nunca impôs e nem imporá qualquer ação que implique em violência física. Os equipamentos utilizados pelos seguranças são compatíveis com a atividade de proteção dos colaboradores e do patrimônio da empresa e estão em conformidade com a legislação vigente”.
Por meio de sua assessoria, a empresa de segurança disse: “A SegurPro, empresa de segurança patrimonial do Grupo Prosegur, informa que presta serviço de segurança patrimonial à Agropalma em toda a sua extensão, operando sempre dentro da legislação que regulamenta o setor de segurança privada no Brasil. Os profissionais são devidamente capacitados para esse tipo de atuação, com certificado para exercício da função expedido pela Polícia Federal, órgão regulador do setor. Esclarecemos que os vigilantes fazem uso de balaclava como acessório de proteção em matas a fim de protegê-los contra insetos e eventuais cortes, comuns nesse tipo de ambiente.”
Esta matéria poderá ser atualizada conforme avançar a apuração.