Nabhan Garcia, Secretário de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, é idealizador do programa Titula Brasil. Imagem: O Joio e O Trigo

Sob discurso da “modernização”, programa Titula Brasil esconde conflitos de interesse, grilagem e violência contra povos do campo

Levantamento inédito mostra incidência de conflitos, desmatamento e prefeitos latifundiários nos municípios que aderiram ao novo programa de regularização fundiária

Desde seu lançamento, em fevereiro de 2021, o programa Titula Brasil foi divulgado pelo governo de Jair Bolsonaro como o “grande salto de modernização” no processo de titulação de terras públicas. 

A política permite que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) repasse aos municípios signatários a obrigação de coletar documentos, realizar vistorias e o georreferenciamento de lotes em assentamentos de reforma agrária ou em terras sob domínio da União. Todo o processo ocorre dentro de um aplicativo, que transmite os dados ao Incra para a análise documental e decisão final sobre a titulação. 

Pouco mais de um ano do seu lançamento, o programa teve aderência massiva entre prefeitos e políticos locais. Desde que foi criado, 1.198 municípios solicitaram adesão ao programa – cerca de 21% de todos os municípios do país. Desse total, 636 prefeituras já assinaram o Acordo de Cooperação Técnica (ACT), primeira etapa para implementação dos Núcleos Municipais de Regularização Fundiária (NMRFs). Cada núcleo tem seus integrantes indicados pela prefeitura, recebendo capacitação técnica do Incra antes de dar início às vistorias. 

Apesar de englobar o país todo, o Titula Brasil foi desenhado especificamente com o propósito de agilizar o processo de regularização de imóveis na Amazônia Legal, foco principal da política fundiária expansiva defendida por Jair Bolsonaro e pelo secretário de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, Luiz Antônio Nabhan Garcia. 

Segundo dados do Incra, os nove estados que integram a região concentram 160 mil ocupações rurais em glebas federais sem georreferenciamento e outros 109 mil imóveis rurais georreferenciados que aguardam a conclusão dos seus processos de regularização. Isso representa uma área de 56 milhões de hectares, equivalente ao território da França. E é justamente nessas áreas que se concentram os maiores índices de desmatamento no bioma: cerca de 20% de toda a destruição registrada na Amazônia entre agosto de 2019 e julho de 2020, de acordo com o Instituto de Pesquisas Ambientais da Amazônia (Ipam).

É também na Amazônia Legal onde se encontram 39% dos municípios que aderiram ao programa. A partir de dados obtidos via Lei de Acesso à Informação e de bases de dados públicas, a equipe de O Joio e O Trigo e do observatório De Olho nos Ruralistas cruzou as informações de 365 municípios signatários do Titula Brasil com ACTs publicados pelo Incra até setembro de 2021 e identificou 56 conflitos fundiários ativos. Destes, 33 na Amazônia Legal. 

O levantamento também mostra que 70 municípios contemplados pelo programa estão no chamado Arco do Desmatamento, faixa que vai do oeste do Maranhão até o Acre e concentra a maior incidência de supressão vegetal da Amazônia. 

Entre as histórias de violência, grilagem de terras e conflitos de interesses, selecionamos 12 casos que exemplificam os problemas do modelo de regularização fundiária às pressas adotado pelo governo no Titula Brasil e seu impacto sobre os povos do campo.

Mapa desenvolvido por Renata Hirota


Assentados estarão expostos a pressões e interesses locais

O levantamento conduzido pela equipe identificou que, dentre as prefeituras signatárias do Titula Brasil, 44% são lideradas por prefeitos ou prefeitas que declararam bens rurais à Justiça Eleitoral em 2020. Além de fazendas, foram contabilizados rebanhos bovinos, maquinários agrícolas, participação em empresas agropecuárias e benfeitorias em imóveis rurais.   

Os dados corroboram uma das principais críticas de movimentos sociais contrários ao programa, de que o Titula Brasil deixará os pequenos agricultores e assentados mais expostos a pressões e interesses locais. “As prefeituras não possuem expertise e técnicos treinados para realização de um serviço tão complexo e importante como a regularização fundiária”, opina Ana Moraes, membro da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). “A fiscalização ambiental, trabalhista e sobre o domínio e a produtividade diminuirá”.

 Alair Luiz dos Santos, secretário de Política Agrária da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), vai na mesma linha. De acordo com ele, transferir a responsabilidade de fazer todo o caminho da titulação para as prefeituras, que não têm esse know-how, é um caminho perigoso. “Fazem um termo de cooperação técnica com os municípios e as prefeituras que fazem as devidas vistorias, porque o Incra não tem técnicos”, conta.

Ele também prevê conflitos de interesse. “A prefeitura pode perseguir alguém, fazer um laudo dizendo que alguém não tem o direito de ser assentado, e o Incra acaba acatando”, exemplifica. “Nas eleições municipais é muito mais fácil um agricultor que está no assentamento se posicionar a favor ou contra determinado candidato e aquele que ganha pode fazer perseguição”.

Pedro Martins, da Terra de Direitos, lembra que um dos principais discursos de Jair Bolsonaro antes de ser eleito era justamente tornar os prefeitos mais próximos do governo federal. “É uma estratégia política”, comenta. O problema, segundo ele, é que, embora o Incra tenha superintendências espalhadas pelo país, não se capilarizou o suficiente. Isso sem contar a precarização, fruto sobretudo da redução do orçamento do órgão. 

 Para as grandes corporações, explica Martins, o interessante é que as terras sejam disponibilizadas ao agronegócio, que vai ser executado por grandes proprietários. “Quem serão esses grandes proprietários? As grandes empresas não precisam se preocupar. Elas já dominam a cadeia produtiva e só precisam se preocupar que as terras estejam disponíveis para a produção de soja, milho, carne… E onde essa disputa ocorre? Em nível municipal.”

Programa é alvo de recomendação pelo MPF em 7 estados

A preocupação dos movimentos sociais é apoiada pelo Ministério Público Federal (MPF). Desde a criação do Titula Brasil, foram expedidas recomendações para 8 superintendências do Incra em 7 estados: Acre, Amazonas, Minas Gerais, Pará (Oeste e Sul), Paraná, Rondônia e Tocantins. Foram acionadas também as prefeituras de 42 municípios que aderiram ao programa. 

As recomendações caminham no sentido de garantir maior transparência ao processo, realizar vistorias técnicas in loco em todas as áreas submetidas a processo de regularização fundiária no âmbito dos Núcleos Municipais de Regularização Fundiária (NMRF) e a consulta a outros órgãos federais visando evitar a sobreposição com terras indígenas, unidades de conservação, Cadastros Ambientais Rurais, reservas extrativistas, territórios quilombolas, registros de conflitos nas Câmaras de Conciliação Agrária, entre outros. 

Em meio às controvérsias que cercam o Titula Brasil, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), através do Grupo de Trabalho (GT) de Reforma Agrária e Conflitos Fundiários, lançou em junho de 2021 uma ação coordenada visando “fomentar a adoção de medidas que garantam a observância dos princípios da administração pública, o reconhecimento de territórios tradicionais e o respeito à destinação constitucional das terras públicas federais”.

Segundo o coordenador do GT, Julio José Araujo Junior, as recomendações têm caráter preventivo, não constituindo em obrigação direta ao Incra. O esforço já rendeu um fruto inicial, a partir da adoção de compromisso pela sede do Incra no Pará em não avançar em processos de titulação enquanto não houver resposta expressa da Secretaria de Coordenação e Governança do Patrimônio da União (SPU), do Serviço Florestal Brasileiro (SFB), da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). 

Ofensiva de Nabhan Garcia contra movimentos do campo

Com terras ricas e férteis, o extremo sul da Bahia sempre foi alvo da especulação de oligarquias locais e do capital financeiro internacional. Por essa razão, a região é uma das que mais deve sofrer as consequências do Titula Brasil fora da Amazônia Legal. 

Em abril de 2020, por exemplo, a Força Nacional de Segurança Pública foi designada para atuar durante trinta dias em áreas ocupadas pelo MST nos municípios de Prado e Mucuri, o que causou temor entre famílias camponesas. 

O pedido partiu do secretário Especial dos Assuntos Fundiários, Luiz Antônio Nabhan Garcia, idealizador do programa. O extremo sul da Bahia é considerado simbólico e importante nacionalmente, porque foi onde o MST começou a atuar. “O Nabhan colocou – articulado certamente com as oligarquias regionais – uma ofensiva programada, de basicamente tomar o controle do movimento social sobre os assentamentos”, afirma o advogado Maurício Correia, membro da coordenação da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais (AATR). “Aquilo ali se relaciona diretamente com o Titula Brasil”.

Implementação do programa em larga escala deve acirrar conflitos em assentamentos. Foto: Assessoria de Comunicação Social do Incra

Um mês antes, no dia 9 de março, o líder ruralista participou de uma audiência pública sobre regularização fundiária na Câmara Municipal de Eunápolis. “Estamos aqui para ouvir aquele cidadão, aquela cidadã que precisa de seu título de propriedade”, discursou. “Vamos acabar com a questão das invasões”. 

Na época, ele excursionava pelo país defendendo a aprovação da MP da Grilagem, depois transformada em projeto de lei. “O Nabhan colocou isso como uma das questões principais”, destaca o representante da AATR. “Eles escolhem alguns lugares para aplicar e é isso o que estão fazendo lá, chamando de emancipação dos assentamentos”.

Na mesma linha, o geógrafo Paulo Alentejano acredita que, caso o Titula Brasil seja implementado em larga escala, deve haver um acirramento dos conflitos nos assentamentos entre segmentos vinculados mais diretamente aos movimentos sociais, que são contra essa política, e setores internos. “Diante da fragilidade no apoio a esses assentamentos, a expectativa é de que muitos aceitem a titulação e entrem em rota de colisão com os demais. Como a ideologia da propriedade privada é dominante na sociedade, eles acabam achando que essa é uma garantia de segurança”, afirma. “Mas é uma ilusão de segurança, fruto da fragilização”. 

Para o professor, este cenário é intensificado ainda pelo processo de reconcentração fundiária e pelo conflito violento, uma vez que interessados em se apropriar dessas terras – fazendeiros, latifundiários e grileiros – fazem pressão e até ameaças contra as famílias, obrigando-as a vender por valores irrisórios. 

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