Em meio à disputa para permanecer na agência, Cristiane Jourdan deve apresentar último relatório técnico sobre o assunto na próxima quarta (22)
A decisão sobre o futuro do cigarro eletrônico no Brasil está mais perto do que nunca. O relatório definitivo sobre os dispositivos eletrônicos de fumar está na pauta da próxima reunião da diretoria colegiada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), marcada para quarta-feira (22).
A apresentação do documento será feita por Cristiane Jourdan, responsável pela diretoria da agência que cuida da regulação da indústria do tabaco. Caberá a ela defender ou não a posição da área técnica sobre o assunto.
No relatório preliminar, divulgado em abril deste ano, os técnicos fundamentam ao longo de 265 páginas por que a Anvisa deveria manter a proibição desses produtos, imposta em 2009. Também recomendam que a agência melhore a regra aprovada 13 anos atrás.
Dentre as mudanças sugeridas, está a proibição da fabricação desses dispositivos no Brasil. Hoje, o embargo atinge comercialização, importação e propaganda dos produtos. Além disso, apontam a necessidade de campanhas para conscientizar a população e uma melhor articulação do governo federal para combater o contrabando dos dispositivos, vendidos nas ruas de várias cidades brasileiras como se fossem legais.
O relatório preliminar também concluiu que a liberação do cigarro eletrônico no Brasil seria “tecnicamente inviável e potencialmente lesiva à saúde pública” –, basicamente invalidando a alternativa regulatória defendida pelas empresas do setor.
Tudo leva a crer que o documento final não deve ser muito diferente do atual. Na última sexta-feira (10), a Anvisa encerrou a etapa em que fabricantes, pesquisadores, órgãos de governo e sociedade civil enviam subsídios adicionais sobre o assunto. O fato de ter pautado a discussão já para a próxima semana é um indicativo de que Jourdan deve se ater ao trabalho desenvolvido pela área técnica.
Mesmo que defenda a posição dos técnicos, Jourdan pode ser voto vencido. Isso porque os diretores da Anvisa não são obrigados a seguir nem a posição da relatora, nem o que está fundamentado no relatório final. Fontes da agência ouvidas pelo Joio comentam que “tudo pode acontecer”, mas acrescentam que seria um “escândalo” se a diretoria colegiada optasse pela liberação.
Poucas reuniões, muito convite para café
Em 2022, os outros quatro diretores da Anvisa – Antonio Barra Torres, Alex Machado, Meiruze Freitas e Rômison Mota – já se reuniram um total de sete vezes com a Philip Morris e a British American Tobacco (BAT).
Em seus relatórios anuais dirigidos aos acionistas, a BAT e a Philip Morris têm cravado projeções de crescimento do uso dos dispositivos eletrônicos e prometido que uma parcela cada vez maior dos rendimentos virá da venda desses produtos no mundo. Mas, para isso, esses dispositivos precisam ser vendidos legalmente. E a pedra no meio do caminho das gigantes do fumo são as regras que proíbem totalmente esse comércio – caso do Brasil.
Cristiane Jourdan, ao contrário, parou de receber as empresas em 2022. Segundo ela, essa decisão foi tomada justamente por conta do processo regulatório do cigarro eletrônico.
Mas a insistência é grande, já que o lobby para a liberação dos dispositivos no Brasil inclui até uma ex-diretora da Anvisa – Alessandra Bastos, que ficou no comando da Segunda Diretoria da agência por três anos e, em 2021, foi contratada pela BAT.
“Ela me liga. Deixa recado que quer falar comigo, que quer me chamar para tomar café. Eu falo: ‘Alessandra, preferível não’”, revela Jourdan, que teve Bastos como colega de diretoria brevemente, durante um mês.
Através da assessoria de imprensa da BAT, Alessandra Bastos afirmou em nota que sempre manteve bom relacionamento com Cristiane no campo profissional e pessoal. “Destaco que nunca interferi em sua atuação profissional ou vice-versa. Por isso, lamento que uma conversa de cunho estritamente pessoal tenha sido retirada de contexto e manifestada de forma enviesada, dando margem a interpretações que não correspondem à realidade.”
Na contramão do frenesi das fabricantes, Jourdan teme que a diretoria da Anvisa não discuta o assunto no dia 22. Isso porque pode nem haver reunião na data. Esse ano, três reuniões ordinárias do colegiado já foram canceladas.
O primeiro desses cancelamentos aconteceu em 13 de abril. Depois, duas reuniões consecutivas – que aconteceriam em 25 de maio e 8 de junho – também foram canceladas.
“Um diretor foi resolver uma questão familiar, outro alegou enxaqueca, outro estava pegando um avião e o diretor-presidente estava em uma agenda externa – na mesma hora da nossa reunião”, descreve Cristiane sobre a reunião do dia 25 de maio, que teria sido desmarcada em cima da hora.
Resultado: entre a última reunião ordinária e a próxima terão se passado quase seis semanas – período mais longo sem deliberação, conforme o Joio verificou através da consulta ao calendário do site da agência. A título de comparação, apenas duas reuniões foram canceladas ao longo de 2021 inteiro.
Os adiamentos significam menos espaço para a participação de Cristiane Jourdan, que está envolvida em uma controvérsia jurídica – e política – pela sua permanência na Anvisa. Nesse sentido, pautar a discussão do relatório final também é uma corrida contra o tempo da diretora, que pode deixar a agência no dia 24 de julho.
A chegada de Daniel Pereira
No dia 4 de abril, o presidente Jair Bolsonaro (PL) enviou ao Congresso Nacional 21 indicações para cargos de comando nas agências reguladoras e no Cade, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica. No meio dessa enxurrada estava o nome de Daniel Meirelles Fernandes Pereira, apontado para a vaga de Cristiane Jourdan na Anvisa.
Ele chegará ao cargo com uma bagagem que lembra aquele poema de Carlos Drummond de Andrade. Isso porque Daniel é irmão de Thiago, que era subordinado de Walter, que tem uma filha chamada Isabela, que, mesmo sem experiência, foi indicada por Daniel para um posto de trabalho que pagava R$ 13 mil.
Essa história aconteceu em julho de 2020, quando Daniel, que é servidor da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), exercia um cargo de terceiro escalão por lá. Na época, seu irmão – Thiago Meirelles Fernandes Pereira – era secretário-executivo adjunto da Casa Civil, comandada pelo general Walter Braga Netto. A filha do general só não foi contratada porque o caso foi denunciado pelo sindicato das agências reguladoras, ganhando a atenção da mídia nacional. Com a grita, ela desistiu.
Oito meses depois do escândalo, a carreira de Daniel deu uma guinada e tanto – para o alto e avante, como se diz nos desenhos em quadrinhos.
Com a chegada de Marcelo Queiroga à Esplanada, ele foi nomeado assessor especial do novo ministro da Saúde. Dali em diante, foi amealhando poder, primeiro no Departamento de Economia da Saúde, depois no gabinete do ministro.
E, então, chegou a primeira indicação: em 15 de dezembro de 2021, Daniel foi apontado por Bolsonaro para assumir uma das cinco diretorias da ANS. Seu nome, porém, encontrou resistência do diretor-presidente da agência, Paulo Rebello, segundo o site JOTA.
Mas Daniel continuou sua escalada e foi novamente lembrado pelo governo para ocupar um cargo de direção em agência reguladora, dessa vez na Anvisa.
Tudo aconteceu muito rápido: a indicação foi feita em 4 de abril, e o Senado deu sinal verde para Daniel Pereira sem lhe fazer uma única pergunta, em uma sabatina que aconteceu no dia 5. No fim do mês, já estava nomeado para um mandato de cinco anos – o que significa que só deixará a Anvisa em julho de 2027. Ou seja: ele vai sobreviver ao mandato do próximo presidente da República, seja quem for.
Mas nem por isso as portas pararam de se abrir para Daniel. Em 10 de maio, foi alçado também ao segundo posto mais importante do Ministério da Saúde, o de secretário-executivo. Cabe a ele, por exemplo, substituir Marcelo Queiroga quando o ministro viaja.
Daniel Pereira substituiu o ministro da Saúde em uma reunião com Paulo Rebello, diretor-presidente da ANS que teria barrado sua ida para a agência
Em 18 de maio – portanto, três semanas depois de ser nomeado para a diretoria da Anvisa que regula diretamente a indústria do tabaco e uma semana após assumir o novo posto no ministério –, Daniel Pereira se reuniu com o ex-senador tucano Cassio Cunha Lima, que vem a ser um dos principais lobistas da Philip Morris. A fabricante dos cigarros Marlboro e do dispositivo eletrônico de fumar IQOS é uma das maiores empresas de tabaco do mundo e a segunda maior operando no Brasil.
Cunha Lima é figurinha carimbada nas agendas de autoridades de primeiro e segundo escalão, sempre defendendo os interesses da gigante do tabaco, entre eles, a revogação da proibição dos dispositivos eletrônicos de fumar – decisão que pode cair no colo de Daniel Pereira no segundo semestre, caso não seja tomada antes. Procurado pela reportagem, o Ministério da Saúde não quis comentar essa agenda.
Mas ele também já recebeu representações pró-controle do tabaco. No último 10 de março, ainda como assessor especial de Queiroga, ele se reuniu com a ACT Promoção da Saúde e o Instituto Nacional do Câncer (Inca). Em 19 de julho de 2021, houve outra reunião registrada com a ACT. Em entrevista ao UOL, Daniel Pereira se definiu como “uma pessoa de composição”.
Diretora da Anvisa tenta prorrogar mandato
A chegada de Daniel Pereira na Anvisa, prevista para 25 de julho, é cercada de uma disputa que já ganhou o noticiário nacional. Atualmente, a vaga é ocupada por Cristiane Jourdan, que luta pela prorrogação do mandato.
Tudo começa com o contra-almirante Antonio Barra Torres, que graças à eleição de Jair Bolsonaro saiu de um centro médico da Marinha no Rio de Janeiro para a Anvisa em 24 de julho de 2019. Não demorou muito e, em janeiro de 2020, ele foi indicado ao cargo de diretor-presidente da agência.
Já ocupando essa posição, Barra Torres – que ainda não tinha desentendimentos públicos com Bolsonaro – foi indicado pelo presidente para outra vaga na Anvisa.
Dessa forma, ele garantiu um novo mandato, de cinco anos, conforme prevê a nova lei das agências reguladoras. Essa lei foi sancionada em 25 de junho de 2019. Mas só entrou em vigor 90 dias depois. O primeiro mandato de Barra Torres como diretor teve início entre uma coisa e outra e, por isso, sua nomeação seguia a regra antiga, que previa um mandato de três anos.
Acontece que Cristiane Jourdan entrou na primeira vaga ocupada pelo contra-almirante depois que a nova lei das agências já estava em vigor. Por isso, embora seu decreto de nomeação preveja que o cargo seria dela durante um ano e oito meses – tempo remanescente do mandato de Barra Torres –, ela luta por um mandato de cinco anos.
E acusa Barra Torres de quebrar uma promessa. “Quando recebi aquele prazo de mandato achei estranho, mas naquele momento o diretor-presidente Barra falou: ‘Cristiane, isso aí está errado, deixa passar um tempo que a gente vê na Casa Civil, eu vou com você’”, diz a diretora da Anvisa. E arremata: “Acabou que ele não viu nada. O tempo foi passando e, naquele momento da pandemia, todos os esforços da Anvisa foram voltados nesse sentido.”
Assim, em meados do ano passado, ela começou a articular seu pleito por conta própria. A primeira providência foi pedir que a Procuradoria Federal da Anvisa elaborasse um parecer, que concluiu que ela tinha razão. Com esse documento em mãos, em 20 de janeiro ela deu entrada na Casa Civil com o pedido de retificação da sua portaria de nomeação.
Nessa etapa, ela contou com a ajuda do general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), e conseguiu uma audiência com Bolsonaro.
“Ele [Bolsonaro] passou o problema para o Pedro Cesar [Sousa] e disse: ‘Olha recebe e vê o que é legal, o que é ilegal’. Mas pelo visto ele não honrou com a palavra dele – ou ele deixou que prevalecesse o que o Centrão definiu. É o que ocorre hoje lá no Planalto”, critica Cristiane.
Pedro Cesar Sousa é o subchefe para Assuntos Jurídicos da Secretaria da Presidência – e outro militar no governo: é major da reserva da Polícia Militar do Distrito Federal.
Os vínculos de Cristiane Jourdan com o governo também passam pelos militares. Ela é sobrinha do falecido general Zenildo Gonzaga Zoroastro de Lucena, que comandou o Ministério do Exército (equivalente ao atual Ministério da Defesa) nas gestões de Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, entre 1992 e 1998. Cristiane tem, ainda, mais um tio e um avô militares.
A diretora da Anvisa também chegou a participar informalmente da campanha de Bolsonaro ao Planalto em 2018. “Estive com ele [Bolsonaro]. Ele pediu que eu ajudasse na área da saúde e eu, claro, estive à disposição.” Mas ela nega ser amiga do presidente ou de seu filho, o senador Flávio (PL), apontado pela imprensa como responsável pela primeira nomeação de Cristiane Jourdan no governo Bolsonaro, para a direção do Hospital Geral de Bonsucesso no Rio de Janeiro.
Reunião com Daniel Pereira
O Planalto não “matou no peito” o processo administrativo de Cristiane Jourdan, que foi encaminhado para o Ministério da Saúde – fato que a diretora da Anvisa considera “irregular”. “Foi a primeira irregularidade, porque eu solicito à Casa Civil a retificação de um ato administrativo. É um ato do presidente. Então, cabe à Casa Civil analisar isso.”
Além disso, Cristiane diz que não teve acesso à tramitação do processo que, de acordo com ela, correu em segredo. “O que é uma outra aberração que vai contra um princípio basilar da administração pública, o da transparência.”
Nesse ínterim, ela teria sofrido duas frentes de ataque. Uma delas está documentada e partiu do senador Lucas Barreto (PSD-AP). O parlamentar encaminhou um ofício à Casa Civil e ao Ministério da Saúde pedindo que o pleito de Cristiane não fosse acatado.
No documento, obtido pelo Joio, Barreto argumenta que os senadores aprovaram Cristiane para um mandato de menos de dois anos – e, mesmo que ela tivesse direito a um mandato de cinco anos, seu nome teria de passar novamente pelo Senado, sob o risco de invasão de competências de um poder sobre outro.
A segunda frente de ataque não está documentada. Cristiane Jourdan afirma que os diretores da Anvisa se articularam para anular o parecer da Procuradoria Federal da agência, base do processo administrativo movido por ela. “O Barra chegou a me ligar. Eu respondi que se isso acontecesse iria ao Ministério Público no dia seguinte. Dez minutos depois ele ligou dizendo que não iriam mais fazer isso.” Procurada, a Anvisa não enviou comentário até o fechamento desta reportagem.
Por último, mas não menos importante, resta a história que envolve o Ministério da Saúde – e o próprio Daniel Pereira.
Cristiane conta que, através da Procuradoria da Anvisa, tentou marcar uma audiência com a Consultoria Jurídica (Conjur) do ministério. Segundo ela, a Conjur teria respondido informalmente que o ideal seria pedir uma audiência ao gabinete de Marcelo Queiroga, mais especificamente com o assessor do ministro que estava tratando do caso: Daniel Pereira.
A reunião aconteceu no dia 9 de março. “Chegando lá, ele não chamou o consultor jurídico do ministério. Ou seja: ele me enganou.” Ainda de acordo com ela, Daniel teria afirmado que o Ministério da Saúde estava elaborando um parecer jurídico próprio, e que esse documento definiria a posição final do governo sobre o assunto. Procurado, o Ministério da Saúde não quis comentar.
O parecer do Ministério da Saúde, obtido pelo Joio, ficou pronto no dia 22 de março, com posição contrária ao pleito de Cristiane Jourdan. Treze dias depois, a indicação de Daniel Pereira para a vaga dela saiu do Planalto para o Senado.
“É um aspecto, no mínimo, estranho que, no limite, pode caracterizar abuso de autoridade: o beneficiado foi quem tomou conta do processo”, aponta Cristiane.
Em meados de março, havia no Ministério da Saúde um ambiente de disputa da vaga, que chegou a ser noticiado no dia 16 por Lauro Jardim, no jornal O Globo. Segundo a coluna do jornalista, estavam no páreo Wanderson de Oliveira, ex-secretário nacional de vigilância em saúde na gestão de Luiz Henrique Mandetta, e Hélio Angotti, que ocupa secretarias no ministério desde a época do general Eduardo Pazuello e ficou conhecido por defender o uso de cloroquina no tratamento da covid-19.
Já de acordo com Cristiane Jourdan, o martelo sobre todas as indicações para agências e cargos no Cade foi batido no fim de março, em uma reunião entre o general Braga Netto, o ministro da Secretaria-Geral da Presidência, general Luiz Eduardo Ramos, o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, e o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL).
“Existe uma injunção política, sem dúvida. É um assunto de legalidade, mas existe uma injunção política enorme”, afirma ela sobre seu processo. Ao Joio, ela reforçou o que vinha dizendo a outros jornalistas desde o início de abril: pretende entrar na Justiça.
Do ponto de vista administrativo, a bola está com a Advocacia-Geral da União (AGU). O Joio perguntou à AGU em qual instância do órgão o processo se encontra, se haverá um terceiro parecer, já que os dois primeiros são divergentes, e se há prazo para uma decisão final, uma vez que o mandato de Cristiane Jourdan se encerra no dia 24 de julho. A AGU se limitou a responder que “qualquer manifestação será conhecida nos autos” e que “não antecipa sua estratégia de atuação”.
A reportagem foi atualizada às 12:02 do dia 17 de junho de 2022 para acrescentar trecho da nota enviada pela assessoria de imprensa da BAT.