O Joio e O Trigo

Philip Morris tenta adiar decisão sobre cigarro eletrônico. “Anvisa está madura para debater o assunto”, diz sociedade civil

Em ofício endereçado à agência, empresa de fumo tenta minar a credibilidade da área técnica e das instituições que estudam os efeitos dos seus produtos

Por mais contraintuitivo que possa parecer, a Philip Morris está tentando atrasar a discussão sobre o futuro dos dispositivos eletrônicos de fumar no Brasil. Em ofício obtido pelo Joio e enviado no dia 21 de junho ao presidente-diretor da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Antonio Barra Torres, a fabricante do IQOS e do Marlboro tenta minar a credibilidade do processo regulatório e dá a entender que pretende contestá-lo nos tribunais.

Mesmo assim, o assunto será discutido em uma reunião extraordinária da diretoria colegiada da Anvisa marcada para a próxima quarta-feira, 6 de julho. O pedido da reunião partiu da diretora Cristiane Jourdan e foi atendido ontem (29) por Barra Torres.  

A principal queixa da Philip Morris é a rapidez com que o assunto foi pautado após o término de uma das etapas do processo regulatório, a tomada pública de subsídios (TPS).

Entre 11 de abril e 10 de junho, a Anvisa recebeu contribuições a respeito do primeiro relatório técnico sobre o assunto, conhecido como relatório parcial – um documento de 265 páginas que recomenda que a agência mantenha a proibição dos produtos, imposta em 2009, com melhora de mecanismos, como a fiscalização do contrabando.

No dia 14 de junho, Jourdan incluiu a discussão sobre o relatório final na pauta de uma reunião da diretoria da Anvisa que aconteceria em 22 de junho. 

“Não é crível que em 48h a equipe técnica responsável pelo relatório parcial tenha analisado todas as contribuições recebidas – possivelmente milhares de laudas e incontáveis referências bibliográficas – e, com a criticidade e isenção necessárias, as tenha refletido no relatório final e na minuta de regulamentação, ou, ao menos, justificado com dados e tecnicidade o seu afastamento”, diz o ofício assinado pelo presidente da subsidiária brasileira da empresa, Manuel Chinchilla.

“Ilações”

Em nota enviada ontem (29), a área técnica diretamente responsável pelo assunto na Anvisa, conhecida pela sigla GGTAB, rebateu ponto por ponto o ofício da empresa. O documento, obtido pelo Joio, afirma que a Philip Morris fez “ilações” sobre a condução do processo regulatório, partindo da premissa de que os técnicos teriam começado a analisar o material recebido após o fim da tomada pública de subsídios – o que não teria “qualquer respaldo”, já que o trabalho teria ocorrido ao longo da etapa, que durou 60 dias. 

“A equipe técnica tem se dedicado de forma ininterrupta ao tema, de extrema importância para a sociedade, inclusive em dias não úteis para finalizar o relatório, a exemplo do que fez durante a pandemia”, sustenta a nota técnica. 

Contudo, a empresa estava desatualizada. Isso porque quando enviou o ofício a Barra Torres, no dia 21, o exame do relatório final sobre o cigarro eletrônico já havia sido retirado da pauta da reunião de 22 de junho – que, de qualquer forma, não aconteceu.  

Ao contrário da empresa, a sociedade civil argumenta que a Anvisa está madura para debater o assunto depois de seis anos de discussão. “Dizer que não houve possibilidade de reunir todas as evidências é uma falácia porque o processo tem sido democrático e transparente. Tivemos audiências públicas, consulta a especialistas, e também a tomada pública de subsídios – e todos puderam participar”, diz Monica Andreis, diretora-executiva da ACT Promoção da Saúde, ONG que atua há 16 anos no controle do tabaco no Brasil.  

A Philip Morris cita o Joio e o UOL para colocar em dúvida a atuação de Cristiane Jourdan. De acordo com a empresa, em entrevistas dadas aos veículos, a diretora da Anvisa teria incorrido em “uma aparente antecipação do voto”.  

“Tal vocalização de voto antes da referida reunião para votação do tema – e até mesmo antes da conclusão da etapa de TPS – pode acabar por influenciar na condução do processo como um todo e, como tal, prejudicar seu curso regular e isento”, alega o documento. Procurada pelo Joio, Jourdan preferiu não comentar.

Manobras da Philip Morris

No ofício enviado a Barra Torres, a terceira maior empresa de fumo do mundo acaba revelando algumas das táticas que estão sendo utilizadas neste momento no Brasil, já que os últimos sinais dados pela Anvisa apontam na direção de uma decisão contrária aos interesses da Big Tobacco.

Primeiro, as empresas tentaram ampliar o prazo da tomada pública de subsídios. Tiveram um pedido atendido, com a etapa que tinha previsão de acabar em maio sendo prorrogada até 10 de junho. Mas não conseguiram esticar mais. 

Com isso, é possível que as companhias do setor tenham tentado soterrar a área técnica com uma avalanche de documentos aos 45´ do segundo tempo. Pelo relato do presidente da Philip Morris Brasil, é o que fez a empresa: suas contribuições foram enviadas à Anvisa em 9 de junho – um dia antes do término da tomada pública de subsídios. 

Agora que uma decisão se aproxima, a companhia tenta minar a credibilidade dos agentes públicos envolvidos na sua regulação e dos cientistas que estudam os efeitos dos seus produtos.  

No documento endereçado ao diretor-presidente da Anvisa, a Philip Morris tenta colocar em xeque instituições como o Instituto Nacional do Câncer (Inca) e a Universidade de São Paulo (USP). De acordo com a empresa, os dados compartilhados por instituições que já haviam se manifestado a favor da manutenção da proibição dos dispositivos eletrônicos desde o início do processo regulatório seriam “parciais”. 

A mesma lógica poderia ser aplicada à indústria do tabaco, que desde o começo se posicionou pela liberação. Mas os dados que corroboram a visão das empresas são caracterizados pela Philip Morris como “um robusto corpo de evidências científicas independentes”.  

Na nota em que apresenta contrapontos à companhia, os técnicos da Anvisa afirmam que “pesquisa científica independente é aquela sem conflito de interesse com a indústria do tabaco”, mas citam que também levaram em consideração dez revisões sistemáticas da USP sobre toda a literatura existente sobre o tema que “não descartaram sequer os estudos com possíveis conflitos de interesse”. 

No ofício, o principal alvo da Philip Morris parece ser exatamente a área técnica da Anvisa. A empresa afirma que o relatório parcial estaria “eivado de vícios”. “Enquanto não forem sanados, tornam-no inapto a embasar processo decisório de tamanha relevância e complexidade.” 

A companhia também dá a entender que os supostos “vícios” não são obra do acaso. “Os vícios identificados no relatório levam a crer que, sob as vestes de um processo formal, o que se tem é uma conclusão apriorística, com uma posterior seleção de elementos para embasá-la e lhe conferir legitimidade aparente”.

Em resposta à empresa, a área técnica afirmou que o relatório seguiu todos os trâmites da agência reguladora. 

Para arrematar, a Philip Morris Brasil ataca um servidor da Anvisa pelo fato de ter escrito um artigo acadêmico junto com seu orientador de doutorado. 

“É digno de nota que a PMB levantou como ponto de preocupação em sua contribuição uma aparente suspeição na condução do processo de AIR [análise de impacto regulatório], uma vez que um dos colaboradores do corpo técnico da Anvisa responsável pelo relatório já publicou, previamente à condução do atual processo de revisão da norma, estudos se manifestando de forma contrária a qualquer forma de regulação dos DEF”, afirma o documento. 

Apesar de usar o plural, a empresa se refere ao artigo “A proibição dos cigarros eletrônicos no Brasil: sucesso ou fracasso?”, escrito em 2017 pelo servidor André Luiz Oliveira da Silva e pelo pesquisador da Fiocruz, Josino Costa. 

André Luiz assina junto com outras duas pessoas a revisão do relatório parcial sobre os dispositivos eletrônicos de fumar, elaborado pela servidora Glória Maria de Oliveira Latuf e aprovado pelo então gerente-geral do setor, Luiz Bernardo Marques Viamonte.

Tentativa recorrente   

O ataque ao servidor e às instituições de pesquisa não é novidade. Em dezembro de 2019, a Philip Morris solicitou uma reunião para basicamente detratar a área técnica para a chefia e outros setores da Anvisa.

Na ocasião, os lobistas da empresa tentaram afastar do processo regulatório o Inca, ligado ao Ministério da Saúde e coordenador da política de controle do tabaco no Brasil. Para isso, citam uma “nota técnica” do instituto que, na visão da Philip Morris, anteciparia um posicionamento desfavorável aos interesses da empresa. 

E tentaram fazer o mesmo com André Luiz Oliveira da Silva, então coordenador de Processos de Controle de Produtos Fumígenos da Anvisa. De novo, o tal artigo é a razão dada pela empresa – que cita a discussão da rotulagem de alimentos, em que a indústria atropelou a sociedade civil e fez a área técnica da agência mudar de posição, como um exemplo a ser adotado no processo regulatório dos dispositivos eletrônicos de fumar. 

Procurada para comentar esses pontos da reportagem através da sua assessoria, a companhia enviou a seguinte nota: “A Philip Morris Brasil tem mantido um diálogo frequente com as autoridades sobre a regulamentação do tabaco aquecido, produto que é diferente dos chamados cigarros eletrônicos. O produto de tabaco aquecido é feito de tabaco, tem gosto de tabaco, cheiro de tabaco, o que afasta a perspectiva de iniciação de jovens, como demonstrado em diversos estudos já apresentados. As contribuições da empresa e suas manifestações em relação ao processo regulatório foram encaminhadas oportunamente à Anvisa.” 

Porta giratória

Há um detalhe saboroso nessa história: um dos lobistas que representaram a Philip Morris nessa reunião de 2019 era Bento Aureliano Lacerda Corrêa, que coordenou o Núcleo de Inspeções Internacionais da Anvisa. Ele girou a porta da agência para a Haramefá, consultoria privada especializada em vigilância sanitária que se gaba de ter funcionários que vão à “caça de soluções”. 

Uma fonte da Anvisa que falou ao Joio em condição de anonimato lembra de um episódio de aproximadamente cinco anos atrás que ilustra bem isso. Se valendo da rede de contatos que havia construído dentro da agência, Bento Aureliano ligou tanto para a área do tabaco que os técnicos tiveram que tirar os telefones da sala por algumas semanas, de modo a centralizar o atendimento em um único funcionário administrativo. O motivo de tanta insistência? De acordo com a fonte, defender os interesses da Philip Morris.  

A contratação de ex-funcionários da Anvisa é uma prática comum dos setores regulados pela agência. Na discussão sobre o cigarro eletrônico, o caso que ganhou mais notoriedade é o de Alessandra Bastos, que, por três anos, ficou no comando da diretoria da Anvisa responsável pela regulação dos alimentos e medicamentos. Ela deixou o cargo em 19 de dezembro de 2020 e menos de um ano depois foi contratada pela British American Tobacco (BAT). Em nome da empresa, ela lida diretamente com os atuais diretores da Anvisa – alguns dos quais foram seus colegas durante meses. 

Procurada para comentar através do canal de mensagens disponível em seu site, a Hamerafá não enviou resposta até o fechamento da reportagem. O Joio também procurou a consultoria por telefone, mas não conseguiu contato. 

Histórico de interferência

As duas maiores fabricantes de cigarro que atuam no Brasil apostam tudo nos dispositivos eletrônicos. Em seus relatórios anuais dirigidos aos acionistas, a BAT e a Philip Morris têm cravado projeções de crescimento do uso e prometido que uma parcela cada vez maior dos rendimentos virá da venda desses produtos. 

Mas, para isso, esses dispositivos precisam ser vendidos legalmente. E a pedra no meio do caminho das gigantes do fumo são as regras que proíbem totalmente esse comércio – caso do Brasil. 

Por aqui, o próprio processo de revisão da norma que proíbe os dispositivos começou com uma canetada. 

A cada três anos, a Anvisa aprova sua agenda regulatória. Esse documento dá o norte do que a agência vai priorizar no período, seja para criar normas, seja para revisá-las. 

Fontes ouvidas pelo Joio garantem que a área técnica da Anvisa responsável pelo tabaco foi completamente escanteada da decisão de incluir o assunto na agenda regulatória.

O ano era 2016 e Renato Porto era o responsável pela Terceira Diretoria, que além do tabaco tinha sob seu guarda-chuva a gerência de regulamentação. Até então, essa gerência – responsável por coordenar a atualização da agenda regulatória – sempre tinha aberto diálogo com a área técnica. Mas Porto teria aproveitado o acúmulo de poder para incluir a revisão da norma do cigarro eletrônico, atendendo a um pedido da indústria do tabaco feito em uma reunião.

Segundo fontes da agência, a área técnica não foi sequer consultada a respeito – uma situação tão incomum que os interlocutores do Joio não se recordam de nada parecido. 

Os técnicos tinham muito a dizer sobre o assunto. Na época, a gerência de tabaco da Anvisa tinha acabado de publicar um livro que reunia a maior parte das evidências científicas sobre os dispositivos eletrônicos para fumar publicadas até aquele momento. 

A revisão concluía que ainda havia “pouquíssimos estudos” sobre o assunto e que os existentes tinham baixa consistência e erros metodológicos. Passados sete anos da proibição, ainda não havia nada que corroborasse as alegações feitas pelos fabricantes sobre as vantagens dos produtos, especialmente em relação ao tratamento da dependência de nicotina.

Procurado através da assessoria de imprensa da Associação Brasileira das Redes de Farmácias e Drogarias (Abrafarma), onde é diretor, Renato Porto não quis comentar, afirmando que caberia somente à Anvisa se pronunciar a respeito. Procurada, a agência também não comentou.

Judicialização no horizonte

O ofício da Philip Morris Brasil de 21 de junho termina com uma sinalização de que a empresa pretende judicializar o caso, contestando o processo regulatório nos tribunais. 

A empresa fala em “questões acerca da conformidade legal do processo de revisão da regulamentação” e em “clara violação” de normas infralegais caso a votação do relatório final ocorresse em 22 de junho. Como duas semanas separam essa data do dia 6 de julho, quando deve ocorrer a reunião extraordinária para debater o relatório, não é arriscado dizer que os argumentos da empresa devem se manter. Questionada sobre isso, a empresa não respondeu.

Procurada para comentar a provável contestação judicial do processo regulatório, a Anvisa respondeu que “a possibilidade de judicialização faz parte do Estado democrático de direito”.

Monica Andreis, da ACT, lembra que a judicialização é uma tática recorrente da indústria do tabaco. “Isso não seria novidade. A indústria judicializou a lei antifumo, as restrições à publicidade, as advertências sanitárias nas embalagens… E, no caso da decisão da Anvisa que proibiu aditivos de aromas e sabores em cigarros, a indústria judicializou e conseguiu o que queria: dez anos depois, a norma não foi implementada no Brasil”, nota.

Contudo, no caso do cigarro eletrônico e outros dispositivos semelhantes, a norma que proíbe comercialização, importação e propaganda está em vigor há 13 anos. Para Monica, a judicialização do processo regulatório em curso poderia servir para questionar a competência da Anvisa como órgão regulador. “Isso foi tentado no caso dos aditivos, mas o Supremo decidiu que a Anvisa tinha competência para regular tabaco”.

Nosso vizinho Uruguai acabou de passar por uma situação considerada estranha por especialistas. Por lá, um decreto presidencial de março de 2021 derrubou a proibição de dispositivos eletrônicos de fumar em vigor no país desde 2009 – mesmo ano em que o Brasil proibiu também. O governo de Luis Alberto Lacalle Pou liberou produtos de tabaco aquecido – como o IQOS da Philip Morris.

Por Maíra Mathias

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