Diretoria da agência endossa área técnica. Indústria toma rumo da judicialização
A diretoria da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou ontem (6) o relatório sobre o futuro dos dispositivos eletrônicos de fumar no Brasil. Os quatro diretores presentes na reunião endossaram o documento escrito pela área técnica da agência, que concluiu que a melhor alternativa regulatória para o país continua sendo a proibição desses produtos, imposta em 2009.
O texto também recomenda que a agência melhore a regra aprovada 13 anos atrás. Dentre as mudanças sugeridas, está a proibição da fabricação desses dispositivos no Brasil. Hoje, o embargo atinge comercialização, importação e propaganda dos produtos.
Além disso, aponta a necessidade de melhorias nos mecanismos de fiscalização ao contrabando, além da realização de campanhas para conscientizar a população sobre os riscos dos dispositivos.
“É um dia histórico para a saúde pública brasileira”, comemora Monica Andreis, diretora-executiva da ACT Promoção da Saúde, ONG que atua no controle do tabagismo. Para ela, que acompanhou de perto as discussões iniciadas pela Anvisa em 2016, a manutenção da proibição no Brasil pode influenciar o resto do mundo, especialmente a América Latina, já que o país é tido como exemplo no combate ao fumo.
Próximos passos
Mas a decisão de ontem não encerrou o assunto na Anvisa. Agora, a agência precisa elaborar uma nova regra para os dispositivos eletrônicos. Quem toma a frente desta etapa é o diretor-presidente da agência, Antonio Barra Torres, que foi sorteado ontem como novo relator do processo. Ele está de férias desde o dia 4 de julho e não participou da reunião de ontem.
Segundo a agência, no momento da proposição da minuta de norma, caberá a Barra Torres revisar as cerca de 1,5 mil contribuições feitas numa etapa conhecida como tomada pública de subsídios, da qual participaram também as fabricantes dos dispositivos eletrônicos, “a fim de avaliar se todas foram consideradas pela área técnica”.
Depois disso, a sugestão de norma elaborada por ele irá para consulta pública, outra etapa em que a sociedade poderá opinar. E, só então, uma nova resolução será aprovada pelos diretores da Anvisa.
Questionada pelo Joio, a agência respondeu que Barra Torres precisará necessariamente adotar o caminho da continuidade da proibição, com melhorias, que foi o decidido pelo restante dos diretores da Anvisa ontem.
Judicialização à vista?
A possibilidade de que a indústria do fumo conteste o processo regulatório nos tribunais também ficou mais nítida ontem. De 26 manifestações ouvidas antes da leitura do relatório, apenas uma – vinda da Philip Morris Brasil – foi contra a aprovação do documento. E não parece ser coincidência que o representante escolhido pela empresa não tenha sido um funcionário, mas um dos sócios da banca de advogados Mattos Filho.
Em vídeo, Fernando Neustein renovou as críticas da Philip Morris à área técnica da Anvisa, explicitadas em ofício encaminhado a Barra Torres, revelado pelo Joio na semana passada.
Segundo o advogado, o relatório teria violações à lei da liberdade econômica, à lei das agências reguladoras, ao decreto federal que regulamenta o processo regulatório e ao regramento da Anvisa. Essas alegações foram contestadas pela agência em nota técnica também revelada pelo Joio.
Ainda de acordo com Neustein, o documento não poderia ser votado pela diretoria da Anvisa antes da correção do que a Philip Morris chama de “vícios” – dentre os quais, estaria o fato de não ter chegado à conclusão de que dispositivos de tabaco aquecido, caso do IQOS fabricado pela empresa, não merecem uma regulação à parte. Procurada, a companhia não quis comentar a aprovação do relatório.
Mas essa não parece ser uma posição unânime na indústria no momento. Procurada pelo Joio para comentar a aprovação do relatório, a British American Tobacco Brasil enviou uma nota em que parece apostar nos próximos passos do processo regulatório.
De acordo com a líder do mercado nacional de cigarros tradicionais, “novas rodadas de debate com as empresas, especialistas, consumidores, sociedade civil e organismos internacionais são fundamentais para que a decisão final da Anvisa se paute pelas evidências científicas mais atuais sobre vaporizadores e produtos de tabaco aquecido”.
A BAT Brasil evoca também o mercado ilegal – argumento recorrente da empresa para advogar diminuição de impostos – como um dos elementos que podem mudar os rumos da decisão da agência.
“A diretoria colegiada da Anvisa, ao aprovar a análise de impacto regulatório, externou grande preocupação com o mercado ilegal desses produtos e atenção a novas evidências, algo que se entende ser objeto de atenção da agência nas próximas etapas do processo regulatório que não terminou hoje”, diz a nota da BAT Brasil.
O contrabando também foi mencionado pela Japan Tobacco International (JTI), a terceira empresa que participou ativamente do processo regulatório, também procurada pela reportagem. A companhia disse lamentar a decisão da Anvisa, pois, na sua visão, “o uso dos dispositivos eletrônicos no país é corrente e abastecido exclusivamente pelo comércio ilícito”.
“Empresas legalizadas não comercializam o produto no Brasil e o crescimento do consumo que atinge a população vem da aquisição ilegal dos dispositivos”, diz a nota.
Tanto a BAT quanto a JTI citam países onde os dispositivos eletrônicos são liberados como razão para que o mesmo aconteça no Brasil.
Voto a voto
Vários pontos levantados pelas empresas foram abordados pelos diretores da Anvisa nos seus votos. De acordo com a diretora Meiruze Freitas, a Anvisa deve levar em consideração o contexto brasileiro para tomar uma decisão compatível com a realidade do país. Ela lembrou que, embora em certos nichos sociais se tenha a sensação de que os dispositivos eletrônicos estão disseminados por aqui, as pesquisas indicam uma prevalência em torno de 1% nas capitais, segundo o Vigitel. Isso, somado ao fato de o Brasil ter uma das menores taxas de tabagismo do mundo – em torno de 9%, também segundo o Vigitel – não indicaria a liberação dos dispositivos como melhor caminho.
“Não há evidências para concluir que [os dispositivos eletrônicos] são menos prejudiciais [do que cigarros tradicionais]. Na verdade, existe a preocupação de que, embora possam expor usuários a níveis mais baixos de algumas substâncias, podem expor a níveis mais altos de outras substâncias novas e desconhecidas”, disse Freitas, que citou ainda o aumento dos custos para o SUS com tratamento de doenças e os gastos com elaboração de protocolos de tratamento que ainda não existem como razões adicionais para manter a proibição.
Já o diretor Alex Machado, que cuida da parte de portos e aeroportos na Anvisa, falou sobre a entrada ilegal desses dispositivos no Brasil – que segundo ele, chegam “aos milhares”, tanto via contrabando nas fronteiras quanto em encomendas feitas pela internet ou nas malas dos viajantes. Nesse sentido, ele defendeu que a discussão da Anvisa seja um novo ponto de partida para que Legislativo e Executivo cheguem juntos. “Não há até aqui uma política efetiva”, avaliou.
O diretor Rômison Mota, por sua vez, falou sobre o histórico da Anvisa na regulação dos produtos fumígenos, lembrando que a agência enfrenta judicialização por parte da indústria, como no caso em que proibiu aditivos de aromas e sabores nos cigarros tradicionais, mas viu essa decisão de 2012 contestada no Supremo Tribunal Federal (STF).
“Embora não tenha desestimulado a judicialização, o acórdão do Supremo fala em intensa regulação desse mercado”, disse, destacando que, por nove a um, os ministros decidiram que a Anvisa tem competência de regular os produtos fumígenos.
Relatora do processo até ontem, Cristiane Jourdan resumiu o relatório técnico, de aproximadamente 300 páginas, abrindo a fila dos votos favoráveis à alternativa defendida pelos servidores da área. “Quando o assunto é o fumo, as preocupações de mercado, embora legítimas, não podem se sobrepor à proteção da saúde da população”, resumiu.