Primeiro turno das eleições mostraram país dividido pelo agro e pela fome
Dos dez estados onde mais se passa fome no Brasil, nove deram mais votos ao candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no primeiro turno das eleições presidenciais de 2022.
Destes estados, seis ficam no Nordeste – Alagoas, Piauí, Sergipe, Maranhão, Ceará e Pernambuco – e quatro na região Norte – Amapá, Pará, Amazonas e Roraima. Este último foi o único onde Jair Bolsonaro (PL) recebeu mais votos.
Todos os estados mencionados têm índices de insegurança alimentar grave acima de 22%. Na prática, isso significa que ao menos um quinto de suas populações já passou um dia inteiro sem comer, no ano anterior à pesquisa.
Os dados são do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, produzido pela Rede Penssan, e do Tribunal Superior Eleitoral. Eles foram cruzados com a ajuda do economista Valter Palmieri, professor da Escola Superior de Administração, Marketing e Comunicação de Campinas.
Dos dez estados com menores índices de insegurança alimentar grave, seis elegeram Bolsonaro e quatro ficaram com Lula.
Enquanto Bahia, Rio Grande do Norte, Paraíba e Minas Gerais deram mais votos ao candidato petista, Distrito Federal, Goiás, Mato Grosso, Paraná, Santa Catarina e Espírito Santo elegeram Bolsonaro.
Todos os estados mencionados têm índice de insegurança alimentar grave igual ou menor que 13% – o que significa que até 13 em cada 100 habitantes dessas unidades federativas passaram fome no ano anterior à pesquisa.
Segundo um levantamento realizado pela revista Globo Rural, Bolsonaro também saiu vitorioso em 75 das 100 cidades com maior Valor Bruto de Produção Agropecuária (VBP).
Grandes produtoras de commodities – que não são alimentos por si só, mas integram a cadeia da carne, dos ovos e dos ultraprocessados – lideram o ranking. É o caso de Sorriso e Sinop, no Mato Grosso, que deram mais de 70% de seus votos válidos ao presidente.
Já mostramos aqui no Joio que essas duas capitais do agronegócio acumulam problemas de segregação racial, pobreza e desigualdade.
À esquerda, estados onde Lula venceu (laranja). À direita, índice de insegurança alimentar grave em cada estado (quanto mais escuro o azul, maior a prevalência da fome). Fontes: TSE/Rede Penssan
Memória de políticas sociais explica voto em Lula
Depois do primeiro turno, Bolsonaro deu declarações associando sua derrota em algumas regiões a índices socioeconômicos.
“Lula venceu em 9 dos 10 estados com maior taxa de analfabetismo. Vocês sabem quais são os estados? No nosso Nordeste. Não é só a taxa analfabetismo alta o mais grave nesses estados. Outros dados econômicos agora também são inferiores nas regiões, porque esses estados no Nordeste estão há 20 anos sendo administrados pelo PT”, falou em uma de suas lives.
Em entrevista a um podcast na última sexta-feira (14), o presidente ainda afirmou que “muita gente vota com o estômago e está achando que vai comer picanha todo fim de semana” – uma referência às promessas frequentes de Lula de que, em um novo governo seu, os brasileiros voltarão a comer picanha.
Segundo dados do IBGE, a picanha acumula alta de 32% desde o início do mandato de Bolsonaro, em 2019, quando já estava em um patamar de preço elevado, até setembro deste ano. Carnes bovinas, em geral, estão 72% mais caras.
Para a economista Nathalie Beghin, que atuou no Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome durante o governo Dilma Rousseff (PT), as declarações de Bolsonaro são carregadas de “aporofobia”: “É uma explicação de quem tem pavor dos pobres”, diz.
“O argumento de Bolsonaro não faz o menor sentido”, argumenta Beghin. “O governo do PT melhorou as condições de vida dos mais pobres. Essa memória é que faz com que eles acreditem mais nas propostas de Lula do que nas de Bolsonaro”, avalia.
Dos dez estados com maiores índices de fome, apenas dois são governados pelo PT no período em que a fome se agravou no Brasil. MDB, PSB, PDT, PSD e PP – que está à frente de Roraima – governam o restante das unidades federativas na lista.
Para o historiador pernambucano Frederico Toscano, autor do recém-lançado Yes, Nós Temos Coca-Cola (Cepe Editora, 2022), que trata também do tema da fome Nordeste, as declarações de Bolsonaro refletem um pensamento que busca garantir que as regiões Norte e Nordeste sejam tuteladas pelo eixo Sul/Sudeste.
“Dizer que o nordeste é terra de ignorantes e analfabetos é de uma ignorância gritante”, argumenta. “O nordeste é a região que mais lê no Brasil, que tem os maiores índices de notas no enem, nas olimpíadas de física, de química”.
Assim como Beghin, Toscano credita a vitória de Lula nos estados com maiores índices de fome a uma memória de políticas sociais implementadas pelo PT. “As pessoas sabem que, se esse governo continuar, elas vão continuar com fome”, diz.
Fome
Os dados mostram que a fome aumentou no Brasil de Bolsonaro. A última Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), conduzida pelo IBGE em 2018, registrou que 10 milhões de pessoas passavam fome no Brasil naquele ano.
Em 2020 esse número havia subido para 19 milhões, segundo projeção da Rede Penssan – que assumiu a tarefa de levantar dados sobre fome no país após cortes de verbas no IBGE – e agora é de 33 milhões.
Alguns segmentos específicos são mais afetados. Pessoas negras, produtores rurais, moradores das regiões Norte e Nordeste e moradores de domicílios chefiados por mulheres ou com presença de crianças de até 10 anos têm índice de insegurança alimentar acima de 60%.
Lula lidera as intenções de voto entre alguns desses segmentos – particularmente mulheres, nordestinos e pessoas negras, segundo a mais recente pesquisa do Datafolha para o segundo turno.