A horta agroecológica de Luiz Barbosa é rodeada de plantações de tabaco. Foto: Raquel Torres

Plantar comida em vez de tabaco: por que essa troca é tão difícil?

Em Alagoas, crise do fumo de rolo deixou agricultores familiares em maus lençóis. Mesmo décadas depois, poder público ainda não foi capaz de promover alternativas viáveis

Desde os sete anos de idade eu plantava fumo. De uns tempos pra cá, só vivia doente, os venenos me atacavam muito. O fumo e o veneno mexem muito com a pessoa. Aí eu pensei: sabe de uma coisa? Vou parar”, conta Luiz Barbosa dos Santos, de 56 anos, na banca de feira onde hoje vende seus alimentos em Craíbas, Alagoas. 

Conhecido como Lulinha, há três anos ele transformou sua lavoura de tabaco em horta agroecológica. Nós o conhecemos no terceiro e último dia em que rodamos entre Craíbas e Arapiraca, cidades importantes na produção alagoana de fumo de rolo. 

Havíamos saído bem cedo para encontrar Florisval Costa, primo de Lulinha e, ele próprio, um ex-fumicultor. Florisval tem uma relação de longa data com movimentos de agricultores e hoje integra a Articulação Alagoana de Agroecologia (Rede Mutum). Nos dois dias anteriores, Geraldo Balbino, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares de Arapiraca, tinha nos levado para visitar vários fumicultores. Com ele, também conhecemos famílias que haviam trocado o tabaco por outros cultivos – mas eram agricultores que mantinham uma produção convencional, com uso de adubos químicos e agrotóxicos. 

A ideia, nesse fim de viagem, era que Florisval nos apresentasse a produtores que haviam trocado o fumo pelo cultivo agroecológico de alimentos. Antes, porém, ele nos levou à feira de fumo de Craíbas (falamos dela com mais detalhes aqui), onde conversamos com um bom punhado de fumicultores desesperançosos: eles reclamavam de um trabalho desgastante, potencialmente danoso à saúde e pouco lucrativo.

A feira de alimentos fica a poucos metros dali, e a banca de Lulinha tem de tudo um pouco: batatas, macaxeira, frutas, verduras, legumes, gergelim. “Em relação à renda, eu acho até que estou melhor agora. Porque os adubos e venenos para o fumo são caros, e depois a gente não consegue vender o produto pelo preço que seria o justo. No último ano em que eu plantei, colhi quatro bolas [cada bola é um carretel de fumo já enrolado, pesando entre 70 e 100 quilos] e não deu para pagar as contas. Fiquei endividado. Hoje estou mais tranquilo”, ele avalia.

Entre os produtores de alimentos da feira de Craíbas, Lulinha é o único que planta sem agrotóxicos. Foto: Raquel Torres


Plantar alimentos sem agrotóxicos ainda não é muito comum na região – entre os produtores da feira de Craíbas, Lulinha diz ser o único. Mas a transição do tabaco para outras culturas tem sido frequente nas últimas décadas no polo fumageiro de Alagoas: nos anos 1980, o estado colheu em média 35 mil hectares de fumo por ano, enquanto nos anos 2010 a média anual caiu para 9,4 mil, segundo a pesquisa Produção Agrícola Municipal do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (PAM/IBGE). 

Por conta dessa queda, é comum que cidades como Arapiraca e Craíbas sejam vistas como bons exemplos de diversificação ou transição do tabaco para outras atividades. Mas essa impressão traz uma pegadinha: no geral, não há planejamento, orientação ou suporte a esses agricultores por parte do poder público, para que eles tenham o mínimo de segurança no processo. Ou seja, não há exatamente uma estratégia a ser seguida por outras regiões fumageiras onde se queira oferecer alternativas aos plantadores de tabaco.

Uma questão de mercado

A produção de tabaco nos estados nordestinos afundou por uma série de razões. Uma delas é que os malefícios do tabaco para a saúde se escancararam, e necessárias campanhas de saúde pública começaram a fazer cair a prevalência de fumantes. E, para quem continuou fumando, os cigarros industrializados foram substituindo o fumo em corda, cujo consumo fora das regiões Norte e Nordeste quase desapareceu. 

Ao mesmo tempo, o fumo escuro praticamente deixou de ser usado nos cigarros industrializados. Com isso, as exportações caíram: “Tivemos problemas com a nitrosamina, uma das substâncias da fumaça de tabaco que têm potencial cancerígeno. Ocorre que o tipo de tabaco produzido na nossa região leva a níveis de nitrosamina muito altos, e as empresas avisaram que, se não conseguíssemos reduzir esses teores, teríamos dificuldade para continuar exportando a produção”, lembra Hibernon Cavalcante, secretário de Agricultura de Arapiraca.

Não que a indústria do tabaco se preocupe muito com a saúde dos consumidores. Afinal, a nitrosamina não é exclusividade do fumo escuro, e consumir qualquer tipo de tabaco é fator de risco para várias doenças e agravos, incluindo cânceres. Mas já fazia algumas décadas que a saúde tinha começado a fazer parte do discurso dessa indústria. Os filtros de cigarro foram criados nos anos 1950 para dar aos fumantes uma falsa sensação de segurança, apesar de a maioria dos estudos mostrar que filtros não reduzem em nada os riscos à saúde. A propaganda dos cigarros light (nomenclatura hoje proibida no Brasil) ia nessa mesma direção, quando na realidade eles podem ser até mais perigosos do que os comuns.

O fato é que o gosto do consumidor foi sendo remodelado e o tabaco escuro perdeu espaço. “A gente observou uma mudança nos hábitos dos consumidores, que começaram a preferir fumos de sabor menos forte. São exatamente os produzidos no Sul”, nota Fábio Ribeiro, da CAPA, empresa que exportava fumo para cigarros e, hoje, vende apenas folhas de charuto. 

Até houve tentativas de introduzir fumos claros no Nordeste, mas era complicado: trata-se de uma produção que demanda mais investimentos financeiros e que, naquela época, já estava muito bem estabelecida nos estados sulinos, inclusive com fábricas das grandes empresas instaladas. 

Com o declínio das vendas de fumo de rolo – assim como os preços – nos anos 1990, os agricultores familiares da região ficaram um tanto perdidos. Muitos saíram do campo para os centros urbanos, principalmente em Arapiraca, maior cidade da região. Outros se mantiveram na fumicultura, apesar da insegurança. “A gente sempre escuta que uma hora o fumo de rolo vai acabar, mas vamos seguindo”, dizem vários deles. 

Entre aqueles com quem conversamos, era comum ouvir que, apesar de eles quererem deixar o cultivo do tabaco, sentem que não têm opções: seja porque suas terras são muito pequenas, seja pela falta de acesso constante à água, seja por não saberem como escoar uma nova produção.

Entre os que conseguiram mudar de atividade, o relato mais frequente era o de ter sido um movimento solitário, no sentido de que não receberam nenhum incentivo ou apoio institucional. Em outras palavras, eles se viram como podem, porque precisam.

Terras muito pequenas

A maior dificuldade apontada por fumicultores que querem investir em outras culturas é o tamanho de suas terras. Na região fumageira de Alagoas é comum se dizer que existe uma “reforma agrária natural”, no sentido de que, depois de serem repartidas em herança ao longo de gerações, as propriedades são muito pequenas: nos cinco municípios alagoanos que mais produzem tabaco, o tamanho médio dos estabelecimentos agropecuários não chega a seis hectares, segundo informações do Ipeadata, banco de dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. “A gente aqui não tem mais muitas terras grandes e improdutivas que possam ser usadas para a reforma agrária”, afirma Geraldo.

Mas essa ideia de reforma agrária natural engana. O termo dá a entender que todo mundo tem os recursos necessários para viver bem da terra, e não é bem assim. Ainda segundo Geraldo, os agricultores familiares têm, em geral, entre meio e dois hectares para cultivar – isso quando possuem terra própria e não precisam arrendar a de terceiros. “Em lotes tão pequenos, culturas como milho, feijão e mandioca realmente dão um retorno financeiro menor que o fumo. Porque é preciso um volume de produção maior para valer a pena. A renda do fumo é baixa, mas é possível ter algum retorno mesmo em áreas pequenas”, diz ele.

José Galdino da Silva, de 58 anos, parou de plantar tabaco há oito anos e hoje vive principalmente da mandioca. Sua terra não é grande: apenas dois hectares. Mas ele acredita que a mudança de cultivo não teria dado certo se sua esposa, Maria Lúcia, não tivesse um emprego formal, com salário certo. “Eu sou filha de agricultores, meu pai também trabalhava com fumo. Mas consegui estudar e sair da roça. Sou concursada e trabalho como secretária de escola”, ela conta. 

“Eu sou filha de agricultores, mas consegui estudar e sair da roça. Sou concursada e trabalho como secretária de escola”, conta Maria Lúcia. Sua renda mensal apoiou o marido, ex-fumicultor, durante a transição do tabaco para a mandioca. Foto: Raquel Torres

José Galdino arremata: “Essa foi nossa sorte. Mesmo quando eu não conseguia ganhar nada, ela tinha [dinheiro]. Se não tivesse a renda dela, até hoje eu estava remando.” Ele vem de uma família tradicional de fumicultores, e seu pai chegou a ter uma terra de cerca de 30 hectares onde plantava e criava gado. Vendeu boa parte e, quando morreu, tinha cerca de dois hectares – que foram divididos entre os filhos. 

Com o passar dos anos, José Galdino conseguiu comprar áreas para expandir um pouco sua porção. “Quando meu pai plantava uns seis hectares, ele tinha ainda aqui uns quatro, cinco moradores, aí tinha sempre mão-de-obra. Mas aí foi sumindo, teve um que botou ele ‘no pau’ [processou] e meu pai teve que pagar a ele, ficou desgostoso com isso. Criou ele como um filho e depois ele quis dinheiro”, conta, expondo uma situação totalmente precária em relação às relações de trabalho. Ele diz, inclusive, que sua grande motivação para abandonar o tabaco foi a dificuldade para contratar mão-de-obra temporária para a colheita e a cura dos rolos de fumo – os filhos, já crescidos, não quiseram seguir no campo. 

“Naquela época, o papai chamava dez pessoas para trabalhar e vinham 20. Hoje, você chama dez e vêm três. Aquela tradição de trabalhar, essa turma nova não tem. Só querem emprego, serviços mais ‘maneirinhos’ [leves]. Mas negócio de roça, não. Eu tô aqui porque eu gosto. Mas é muito pesado”, reclama.

José Galdino depende totalmente de contratar trabalhadores para a lavoura, já que ninguém mais na família trabalha com isso hoje. Daí a inviabilidade de seguir com o tabaco: além de precisar de mais mão-de-obra na época da colheita, o período de cura do fumo também exige pelo menos três pessoas para o manuseio dos equipamentos onde as folhas são enroladas. “O fumo precisa de muita gente e também muito cuidado. A mandioca é uma lavoura que, mesmo se for grande, qualquer veneninho tapeia. Já o fumo usa mais veneno. E, com o fumo, se você não consegue colher na hora certa, já perde as folhas. Aqui não, a mandioca pode esperar na terra. É melhor”, compara.

“A mandioca é uma lavoura que, mesmo se for grande, qualquer veneninho tapeia. Já o fumo usa mais veneno. E, com o fumo, se você não consegue colher na hora certa, já perde as folhas. A mandioca pode esperar na terra. É melhor”, compara José Galdino, ex-fumicultor. Foto: Raquel Torres

Mas ele ainda aposta que, em termos de retorno financeiro, na média o tabaco continua superior, mesmo que os tempos áureos já tenham ficado para trás. “Claro que varia muito conforme o preço de venda, já teve ano de eu até perder dinheiro. Mas o fumo, quando dá preço bom, supera qualquer outra coisa por aqui.”

Para quem vender?

Outro problema sério é o escoamento da produção de alimentos. As folhas e rolos de fumo são vendidos na região mesmo, nas feiras de fumo de Arapiraca e de Craíbas. Dali, vão para empresas que beneficiam e vendem o produto final a outras partes do país. Já a venda dos alimentos é mais complicada. E, também em relação a isso, os produtores que decidem largar o tabaco precisam abrir seus próprios caminhos. 

“Muitas pessoas tentam sair do fumo, já vi algumas dando certo e outras não. Para dar certo, mesmo, tem que correr atrás e trabalhar dia e noite”, aponta Gilsa Felix da Silva. Ela, que hoje está com 48 anos, trabalhou com fumo desde os dez até os 25. Então, junto com o marido, decidiu migrar para as hortaliças. 

“Acordo às cinco horas da manhã, faço café e vou para a colheita. Passo o dia na plantação. Toda noite, às onze horas,  meu marido sai para levar as verduras para vender em feiras e mercados nas cidades vizinhas, e só volta às nove da manhã”: mesmo com rotina pesada, Gilsa da Silva prefere plantar hortaliças do que tabaco. Foto: Raquel Torres

O principal motivo foi a saúde – ela sempre teve muitos problemas com a doença da folha verde do tabaco, uma intoxicação por nicotina comum nas plantações. A transição para as verduras significou enormes mudanças na rotina, no modo de produção e na comercialização dos produtos. Também foi preciso investir muito dinheiro ao longo dos últimos anos, principalmente para a instalação de um bom sistema de irrigação. Gilsa conta que a família nunca recebeu assistência técnica nem apoio financeiro em todo o processo.

Embora seja considerado um trabalho menos pesado do que a fumicultura, a produção de hortaliças também demanda muito tempo e energia. “Eu acordo às cinco horas da manhã, faço café e vou para a colheita. Passo o dia na plantação. Toda noite, às onze horas,  meu marido sai para levar as verduras para vender em feiras e mercados nas cidades vizinhas, e só volta às nove da manhã”. 

Isso é algo que muitos fumicultores nos relataram como uma desvantagem das hortaliças: com o tabaco, o trabalho mais extenuante é concentrado em alguns meses do ano, principalmente na colheita. Já as hortaliças exigem menos esforço físico, mas o trabalho não pode parar. Nunca. ”Nós trabalhamos o ano inteiro, não temos férias nem feriado”, revela Gilsa.

Mas, mesmo com a rotina puxada, ela ainda prefere as verduras ao tabaco. Além de não sofrer mais o problema da intoxicação por nicotina, ela acha mais interessante ter uma renda bem distribuída ao longo do ano. “Com o fumo, a gente precisava trabalhar vários meses para ter o dinheiro só no fim da safra, uma vez por ano. E quando a safra era ruim, o dinheiro nem vinha. Com as verduras, todo dia você planta, colhe e vende”, compara.

Cinturão Verde: exceção que confirma a regra

A produção de hortaliças para comercialização em Arapiraca e arredores começou nos anos 1980 e cresceu a partir da decadência do tabaco, na década seguinte, especialmente entre agricultores familiares. 

Para o cultivo de verduras e legumes, a disponibilidade de água é essencial – mas toda a região faz parte do Agreste alagoano, com chuvas concentradas no outono e inverno. A propriedade de Gilsa fica em uma área privilegiada de Arapiraca, porque, em sua comunidade, existe água doce subterrânea em abundância. 

Só que não é assim em toda parte, e essa é mais uma das dificuldades para quem quer reduzir ou parar com o cultivo do fumo. Foi justamente nas áreas com maior acesso à água – as regiões sul e leste de Arapiraca – que se desenvolveu o único projeto capitaneado pela prefeitura para incentivar o cultivo de hortaliças em vez de fumo: o Cinturão Verde, lançado em 2003.

O projeto recebeu recursos federais via Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), enquanto a Secretaria de Agricultura de Arapiraca foi responsável pelo planejamento e execução. O principal objetivo era perfurar poços e oferecer kits de irrigação a produtores familiares. 

O secretário de Agricultura de Arapiraca, Hibernon Cavalcante, não nos forneceu o número exato de agricultores beneficiados. Mas ele acredita que, hoje, cerca de 700 agricultores tiram seu sustento das hortaliças na cidade, e parte deles recebeu os kits da prefeitura. O projeto foi descontinuado há cerca de uma década.

“O Cinturão Verde foi muito concentrado e limitado a poucas comunidades e, nesse sentido, não merece muito destaque”, avalia Geraldo. Ele diz que, de fato, a regra é ver agricultores familiares tendo ideias e investindo nelas por conta própria. 

Existe até um grupo de ex-fumicultores começando a produzir camarão em cativeiros, em áreas mais secas e onde a água subterrânea é salobra. “Antigamente, quando alguém furava o poço e vinha água salgada, tinha que fechar. Hoje a gente já orienta: olha, aproveitando essa água para criar camarões você pode ter uma boa lucratividade”, diz o secretário municipal de Agricultura, referindo-se a uma atuação recente da pasta. De acordo com ele, a ideia do trabalho com camarões partiu dos próprios agricultores, mas acabou sendo encampada pela prefeitura, que este ano realizou um seminário sobre o tema.

A criação de camarões exige um investimento relativamente alto, que inclui a construção de açudes e um controle minucioso das condições da água, um retorno ainda desconhecido no longo prazo e muitos problemas ambientais. “O Sindicato chegou a criar uma associação para organizar esses produtores. Uns vão se dando bem, aí outros começam a fazer também. Por enquanto, tem demanda. Mas se for aumentando a produção sem que o mercado aumente, pode ser que isso resulte em uma frustração”, reconhece Geraldo.

Cursos e oficinas

Tirando o Cinturão Verde, existem iniciativas isoladas para levar orientação a agricultores em processo de diversificação e transição: são cursos e ações de assistência técnica encabeçadas por instituições públicas, como a Embrapa, ou por organizações não-governamentais, como as entidades da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA).

Esse foi o tipo de iniciativa que ajudou Florisval Costa a trocar o fumo pela agroecologia – uma mudança que também esteve ligada ao início da sua militância política. Entre os anos 1970 e 80, ele se aproximou de um grupo da igreja católica chamado Animação dos Cristãos no Meio Rural, baseado na Teologia da Libertação. “Foi algo que ajudou a construir uma nova conscientização no campo”, avalia. Em 1983, Florisval fundou o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais do município de Craíbas e, no fim daquela década, decidiu abandonar o tabaco. 

No caso de Florisval Costa, ex-fumicultor, a transição do tabaco para a produção agroecológica de alimentos esteve ligada ao início de sua militância política. Fotos: Raquel Torres

“Não foi um processo gradual, eu parei de uma hora para a outra. E radicalizei de vez: nunca mais usei adubo químico nem veneno. Eu não me dava bem com os venenos. Perdia o sono, ficava enjoado, tonto, não tinha como viver legal”, lembra. Na época, Florisval estava em contato com movimentos e organizações ligados à agroecologia, e já tinha começado a participar de uma série de cursos e oficinas – algo que continuou fazendo por muito tempo, chegando a se formar como técnico em agroecologia. 

Florisval reconhece que, quando parou de produzir fumo, sentiu uma queda na renda, mas acredita que isso tenha sido compensado pelo fato de ter reduzido também suas despesas com a compra de alimentos. 

Hoje, está aposentado. Conforme caminhamos pelos 2,7 hectares de terreno que se estendem nos fundos de sua casa, ele vai nos mostrando as centenas de espécies de plantas que tem multiplicado nos últimos anos, todas nativas ou adaptadas à Caatinga. Florisval ainda planta alimentos, principalmente para consumo próprio, e mantém uma fabricação artesanal de produtos processados, como óleo de gergelim e licores.

Florisval fabrica produtos processados artesanais. Foto: Raquel Torres

Ele também orienta vizinhos e amigos que queiram parar de plantar fumo sem saber como, ou que já tenham parado e ainda precisem de ajuda. “Aqui é bom você plantar algo que forme uma barreira verde entre a sua terra e a dos outros”, diz a Lulinha, enquanto este nos mostra sua plantação. Isso porque a terra de Lulinha, com pouco mais de meio hectare, é uma ilha agroecológica rodeada de tabaco convencional por todos os lados – por mais que ele se esforce em manter sua produção limpa, sempre há o risco de o veneno dos vizinhos ser dispersado até ali.

Renda paralela

Outro agricultor orientado informalmente por Florisval é Edvaldo da Silva, também de Craíbas. “Parei com o fumo há quatro ou cinco anos. Hoje em dia ainda tem muita gente plantando, mas uma hora vão deixar de plantar, porque o fumo não está mais dando preço”, ele diz. 

Na sua propriedade, o cultivo que predomina atualmente é o da palma, um tipo de cacto utilizado para alimentação animal. Dos dois hectares que Edvaldo possui, 1,5 estão reservados à palma. No restante, ele planta alimentos para o próprio consumo, como frutas, milho, feijão, macaxeira e abóbora.

Em relação aos tratos culturais, a palma tem muitas vantagens sobre o fumo: não precisa de agrotóxicos, adubos químicos nem capina, e quase não precisa de água – o que é muito importante quando a maior parte da região não tem chuva em todas as estações.

Porém, a colheita só acontece de três em três anos. “É uma planta que demora demais. Pra mim não tem muito problema, porque eu e minha esposa estamos aposentados. Enquanto a gente espera a época da colheita, vive da aposentadoria e vai tocando a vida. Mas, sem isso, teria sido muito difícil largar o fumo”, relata, fazendo uma análise muito semelhante à que tínhamos ouvido de José Galdino. 

No geral, ter outra fonte de renda além da que vem da terra parece ser fundamental para os plantadores de tabaco conseguirem fazer a transição. Segundo Geraldo, quase todas as famílias de agricultores recebem o Auxílio Brasil (e, antes, o Bolsa Família). Mas, além disso, a aposentadoria rural é um ponto importantíssimo: depois de se aposentarem, os agricultores se sentem mais seguros para investir em atividades que podem até ser menos lucrativas, mas são também menos extenuantes e perigosas. Isso num momento da vida em que, em tese, deveriam poder apenas descansar.

Edvaldo da Silva substituiu o tabaco por palma, usada na alimentação animal. Mas a colheita só acontece a cada três anos: “Enquanto a gente espera a época da colheita, vive da aposentadoria”. Foto: Raquel Torres

Está no papel

A busca por alternativas não deveria ser tão penosa. Em 2005, o Brasil ratificou a Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco, o único tratado internacional de saúde pública que existe no mundo, e mira a redução do tabagismo. O documento apoiado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) tem um artigo específico estabelecendo que os países signatários devem promover alternativas economicamente viáveis para os trabalhadores do setor. 

Naquele mesmo ano, o governo brasileiro lançou o Programa Nacional de Diversificação em Áreas Cultivadas com Tabaco (PNDACT), sob a responsabilidade do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). Como o nome sugere, a ideia era apoiar fumicultores na diversificação de suas atividades, para que eles não fossem prejudicados em cenários de queda de demanda. Isso porque, quando famílias de agricultores dependem economicamente de um único produto, elas ficam em situação de extrema fragilidade. O que aconteceu recentemente na Colômbia dá uma dimensão disso: em 2019, a Coltabaco, subsidiária da Philip Morris International, encerrou a fabricação de cigarros no país e deixou de comprar folhas de tabaco produzidas por lá. 

A empresa ofereceu aposentadoria voluntária aos empregados da fábrica, mas deixou 12 mil famílias de fumicultores a ver navios. “Ela deu cerca de 2 mil dólares para cada produtor iniciar uma mudança de cultivo e contratou uma empresa para fazer um estudo sobre os produtos que teriam viabilidade na região. Essa foi a grande contribuição da indústria”, ironiza Adriana Gregolin, que atuou no PNDACT entre 2006 e 2013.

Ela foi procurada pela Colômbia para dar alguma luz com base na experiência brasileira, que é tida como exemplo internacional de sucesso em diversificação. De fato, mais de 40 mil famílias foram beneficiadas pelo programa no Brasil, mas ele esteve longe de esgotar  todas as demandas. O país tem cerca de 150 mil famílias que vivem da fumicultura e o PNDACT nunca teve recursos financeiros e humanos suficientes para alcançar todo mundo que precisava. 

Sempre houve forças políticas importantes contrárias ao programa. “Tentamos criar uma linha de crédito específica para a diversificação dentro do Pronaf [Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar], mas não conseguimos institucionalizá-lo por conta de uma forte pressão da então senadora Ana Amélia sobre o Ministério da Agricultura”, exemplifica Adriana, referindo-se à ex-senadora do Rio Grande do Sul então filiada ao PP, que defendeu abertamente a indústria do tabaco.

Afora oposições mais localizadas, como a da ex-senadora, houve embates com a Câmara Setorial da Cadeia Produtiva do Tabaco, estabelecida em 2004 pelo Ministério da Agricultura, Agropecuária e Abastecimento (Mapa) e composta prioritariamente por atores que defendem o setor. Essa câmara é um elo formal entre o governo e o setor privado – um fórum que promove discussões e propostas relacionadas à produção de tabaco, e que sempre se posicionou contra a Convenção-Quadro.

Completamente esvaziado

Em 2016, o então presidente Michel Temer extinguiu o Ministério do Desenvolvimento Agrário. Hoje, o PNDACT está sob responsabilidade da Secretaria da Agricultura Familiar e Cooperativas (SAF), criada em 2019 como parte do Mapa. Embora o programa ainda exista, tudo mudou, e houve sucessivos cortes orçamentários.

Com a extinção do MDA, toda a documentação oficial do programa foi perdida. Quando entramos em contato com o Ministério da Agricultura solicitando informações, a resposta foi que deveríamos procurar a Câmara Setorial do Tabaco – mesmo o colegiado não sendo responsável pelo planejamento e execução de programas. Todos os nossos e-mails posteriores enviados ao Mapa foram ignorados.

Queríamos saber quais foram, afinal, as ações e os resultados do PNDACT em Alagoas – porque as pessoas com quem conversamos nos municípios de Arapiraca e Craíbas não se lembram de ter conhecido nenhuma família beneficiada por ele. “Por aqui isso é que nem caviar: a gente já ouviu falar, mas nunca viu de perto”, diz Fábio Ribeiro, da CAPA. Geraldo Balbino, por sua vez, diz que seu sindicato nunca teve contato com ninguém do Programa de Diversificação. “Isso aí eu acho que só foi feito no Sul.”

Adriana confirma que a atuação do programa ficou concentrada no Sul, por uma razão compreensível: a região é responsável por mais de 95% da produção de tabaco no Brasil, e é ali que está a maior parte das famílias que dependem desse cultivo. Apesar disso, ela se recorda de ter havido ações pontuais no Nordeste. Consta que, de 2011 a 2013, o PNDACT lançou uma chamada pública que beneficiou duas mil famílias na região (em Alagoas, Bahia e Sergipe). No entanto, não há memória documental sobre as ações realizadas e os resultados alcançados. 

“Nesses três estados, fizemos seminários falando sobre a diversificação, explicando o programa e falando do papel que tínhamos”, lembra. Mas, na sua avaliação, toda a atuação PNDACT no Nordeste funcionou mais como um pontapé inicial do que poderia ter continuado se desenrolando. “Vimos que as famílias realmente poderiam diversificar seus sistemas de produção, ainda que sem deixar de produzir o fumo. Seria possível elas introduzirem outros cultivos que lhes garantiriam melhor qualidade de vida e diminuiriam sua dependência financeira em relação ao tabaco.”

Do fumo aos ultraprocessados

Se para agricultores familiares é muito difícil diversificar ou mudar suas fontes de renda, o mesmo não se pode dizer da maior e mais famosa empresa de fumo de rolo de Alagoas, o Grupo Coringa. Ainda nos anos 1970 – bem antes da crise do fumo –, a Coringa comprou uma fábrica de produtos de milho, café e corantes

Hoje, a empresa tem um monte de produtos processados e minimamente processados – como fubá, flocão, milho de pipoca, arroz e vários tipos de café –, e também ultraprocessados, como refrescos de pozinho e o biscoito “Coringuitos”, voltado para o público infantil.

A empresa mais famosa de fumo em Arapiraca, o Grupo Coringa, se especializou na fabricação de alimentos. São produtos processados e minimamente processados – como fubá e flocão de milho –, e também ultraprocessados, como o biscoito “Coringuitos”, voltado para o público infantil.  Foto: Raquel Torres

O mercado de fumo de rolo encolheu, mas o negócio de alimentos deu certo para o Grupo Coringa. Tanto que, em 2014, toda a produção de fumo foi deslocada para uma nova empresa, criada pelo mesmo grupo: a Incofusbom. A Coringa ficou só com as comidas.

Fábio Ribeiro, da CAPA, lembra que essa é uma trajetória semelhante à de outra grande empresa de fumo de rolo do Nordeste: a Maratá, de Sergipe. “Esse sucesso tem muito a ver com a distribuição dos produtos. Essas empresas já comercializavam o fumo de rolo picado para vários estados, então puderam começar a aproveitar a viagem para distribuir também outras coisas”, acredita. 

Testes e mais testes

Fábio revela que, desde o começo da crise do fumo, a CAPA também tem pensado em diversificar sua produção. A empresa é bem menor que a Coringa ou a Maratá, e tem contratos com cerca de 80 agricultores familiares que lhes fornecem as folhas de fumo. A ideia é conseguir algo que possa ser cultivado por essas pessoas, mantendo-se o esquema dos contratos. Alguns testes têm sido realizados, e eles começam com a produção em campo, feita pela própria empresa, para a criação de um pacote tecnológico e a análise da viabilidade econômica. Daí, pode-se propor o novo cultivo aos agricultores.

Assim como a Coringa, a CAPA já avaliou a possibilidade de investir em milho. Mas, segundo Fábio, o fato de a empresa só trabalhar com pequenos e médios agricultores faz com que não valha a pena. “Com o tamanho das propriedades deles, não haveria escala para dar renda ao produtor”, pontua. As tentativas com a produção de soja tiveram o mesmo resultado. Ele conta que também já pensou em ter uma fecularia para estimular a produção de mandioca. “Mas esse seria um passo maior do que as nossas pernas alcançam, em termos de investimento. Era um negócio grande demais para a gente.”

A experiência mais recente da CAPA é com a produção de pimenta-do-reino, que, de acordo com Fábio, parece ser a cultura com mais chances de vingar entre agricultores familiares na região. “É uma planta que pode ser cultivada com pouca mão-de-obra, em áreas pequenas, e oferecer boa rentabilidade. E o mais bacana é que na pimenta-do-reino você não precisa usar produto químico nenhum, conseguimos fazer o controle totalmente biológico”, justifica.

O maior problema é a necessidade de irrigação: embora a demanda da pimenta-do-reino por água não seja tão alta, ela ainda exigiria o uso de poços artesianos. Esse cultivo, portanto, poderia só dar certo onde há água subterrânea. “É muito complicada essa busca. Não encontramos ainda um substituto perfeito para o tabaco”, diz Fábio. 

Outra complicação é o tempo que a pimenteira demora para começar a dar retorno – a produção só se torna viável após o terceiro ano. “Teríamos que estar preparados para oferecer algum apoio [aos agricultores] durante esse período”, pontua, completando: “E também absorver toda essa oferta, abrir mercados. Porque obviamente não adianta produzir sem ter para quem vender.”

O negócio com as pimentas-do-reino ainda é experimental, e não chegou a ser proposto aos agricultores contratados pela CAPA. “Estamos no quinto ano de plantio, e agora é que estamos vendo que pode dar certo”, explica Fábio. De acordo com ele, a partir de agora a empresa deve começar o cultivo com poucos agricultores, para ver se funciona bem na prática. E, se tudo correr bem, começar a produção para valer. 

A CAPA, empresa de Arapiraca que exporta folhas de tabaco para charuto, tem procurado formas de substituir esse produto diante da baixa demanda. “É muito complicada essa busca”, aponta o empresário Fábio Ribeiro. Foto: Raquel Torres

Diversificação dos substitutos

Quando Fábio diz que é difícil encontrar um substituto ideal para o tabaco, isso indica que talvez não exista mesmo um substituto único. E isso não é necessariamente ruim, até porque se todos os fumicultores se atirassem a uma mesma nova solução, o conjunto deles continuaria na mesma situação de vulnerabilidade. 

Se nas regiões com maior disponibilidade de água subterrânea é mais fácil oferecer alternativas, resolver o problema nas áreas secas pode exigir investimentos em múltiplas direções, para viabilizar a produção de culturas que não exigem muita água o ano inteiro – como mandioca, batatas, inhames e frutas nativas. Em ambos os casos, o escoamento precisa ser garantido.

Empresas como a Coringa e a CAPA investem em diversificação para se manterem de pé e expandirem seus lucros. Mas é o poder público que precisa planejar e conduzir esse processo na região fumageira como um todo para que os agricultores sejam beneficiados. 

E, para Florisval, isso não passa só por mudar os cultivos. “A diversificação que acontece aqui nos arredores, além de ficar muito a cargo dos próprios agricultores, também segue a mesma lógica de produção que adoece essas pessoas, baseada nos venenos. No fundo, eles estão trocando seis por meia dúzia”, alerta.

A ideia de encontrar substitutos ao tabaco também esbarra em outra questão: nem todo plantador de fumo quer, necessariamente, deixar essa atividade. Muitos param por uma necessidade material, objetiva – seja por problemas de saúde, seja por verem que seu trabalho duro não traz um retorno financeiro justo –, mas, conversando com esses agricultores, percebemos que existe um forte componente cultural envolvido.

Não é incomum ver gente que abandonou o tabaco, mas segue ajudando familiares e vizinhos na cura das folhas, ou mesmo frequentando a feira de fumo só para olhar o movimento. Também conhecemos agricultores que reconhecem a dureza do seu trabalho, mas ao mesmo tempo nos mostram muito orgulhosos a sua lavoura, os maços de folhas colhidas ou os rolos de fumo sendo produzidos. 

José Galdino, que já não planta tabaco há quase uma década, ainda não se desfez do maquinário utilizado para fazer os rolos de fumo e a cura – ele diz que, se por acaso precisar de novo, está tudo ali. “O cabra que desde pequenininho nasce com aquilo, quando vê assim… Dá uma emoção. Eu acho tão bonita a safra de fumo quando tá bem plantadinha… É lindo”, confessa.

Prenúncio de outra crise?

Nos anos 1980, Alagoas colheu em média 35 mil hectares de fumo por ano, enquanto nos anos 2010 a média anual caiu para 9,4 mil Foto: Raquel Torres

Apesar do ocaso da fumicultura no Nordeste, o Brasil ainda é o maior exportador e o terceiro maior produtor de tabaco no mundo. Na região Sul, essa cultura ainda é a base econômica de um conjunto de municípios, e centenas de milhares de produtores dependem dela para viver. A história da região fumageira de Alagoas, onde agricultores seguem órfãos do fumo mesmo décadas após o declínio nas vendas, ajuda a entender a fragilidade em que as famílias do Sul se encontram hoje.

Acontece que a última grande aposta da indústria depende muito menos das lavouras de tabaco. Entre os dispositivos eletrônicos para fumar (DEFs) – cujo marketing se apoia na hipótese, ainda frágil, de serem menos nocivos à saúde –, apenas os produtos de tabaco aquecido dependem da planta. Os cigarros eletrônicos, ou vapes, são à base de líquidos contendo nicotina, que pode ser sintetizada em laboratório.

Comparados aos cigarros convencionais, os novos produtos ainda não representam uma grande fatia na receita da indústria do tabaco, e pode ser que isso continue assim por muito tempo. Mas as empresas vêm investindo pesado para introduzir os eletrônicos no mundo todo e têm mirado em adolescentes para conquistar uma nova geração de usuários.

Se realmente houver mais uma grande mudança no perfil dos consumidores ao longo das próximas décadas, o que aconteceu na região fumageira de Alagoas pode se reproduzir em outras partes do mundo que dependem do fumo. Elas precisam estar preparadas.

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