Documento obtido pelo Joio em primeira mão mostra como a monocultura afeta a saúde de moradores em comunidades de vários estados
Até nove agrotóxicos em uma mesma amostra de água, muitos deles capazes de somar ou até multiplicar os efeitos uns dos outros no corpo humano. Esse foi o resultado da análise feita pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) nas águas usadas pela população dos territórios de comunidades tradicionais de sete estados brasileiros, das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, que resultou em um dossiê feito em parceria com a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado e entidades associadas a ela, como a Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Os resultados já eram sentidos no corpo desses moradores, com dores de cabeça constantes, coceiras, caroços e manchas na pele. Sem contar a associação das substâncias a problemas mais graves, como más formações, câncer e distúrbios neurológicos. As vítimas são quilombolas, moradores de comunidades tradicionais e de acampamentos. Essas populações têm em comum duas coisas: estarem cercadas pela monocultura de grãos, notadamente, a soja, e habitarem áreas do Cerrado.
Bioma muitas vezes negligenciado em debates ambientais, o Cerrado é ligado diretamente à qualidade das águas no país. Rios importantes, como São Francisco, Paraná, Paraguai, Tocantins, Araguaia, Tapajós, Madeira e Xingu têm as nascentes em territórios cerradeiros. Além deles, é o berço de três aquíferos: Guarani, Bambuí e Urucuia.
A contaminação por agrotóxicos é mais preocupante no bioma, porque nele se concentram 70% da utilização dessas substâncias no Brasil. A pesquisa levou em conta áreas de presença mais antiga do agronegócio, a exemplo de Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, e de expansão mais recente, como Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, o chamado Matopiba.
Nos últimos 20 anos, o Matopiba perdeu mais vegetação nativa do que nos 500 anos anteriores. As diferenças entre as regiões não foram significativas para afetar uma conclusão única: uma contaminação, inclusive, com substâncias que são proibidas em países com legislação mais rigorosa, como os membros da União Europeia. O Brasil tem leis consideradas permissivas tanto na liberação de ativos químicos quanto nas quantidades que consideram a presença permitida em alimentos, na água e no solo.
As comunidades cerradeiras também sofrem com as nuvens químicas da aviação agrícola, que dispersa a contaminação na terra, água e ar. A pulverização aérea é uma agravante para a contaminação dos territórios, tanto que é proibida nos países da União Europeia desde 2009, devido aos grandes prejuízos sociais e ambientais.
Segundo estudos realizados pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), somente 32% dos agrotóxicos pulverizados atingirão as plantas alvo, enquanto 49% irão para o solo e 16% serão dispersados pelo ar para áreas próximas à aplicação.
O dossiê
Ao retratar a contaminação da água, o relatório traz mais subsídios para o debate e mostra várias consequências nas comunidades atingidas. Seja pelo consumo humano ou pelo uso para irrigação de cultivos, para os animais criados nas áreas, a pesca, a caça e a coleta tradicionais. Problemas que impactam no sistema de saúde da região e levam a contaminação para além dessas comunidades.
A principal substância encontrada é o glifosato, presente em todos os estados. Com fortes restrições em relação ao nível permitido nas águas na União Europeia, esse é o agrotóxico mais vendido no Brasil, onde a legislação é bem menos exigente. Entre as treze substâncias detectadas na água, estão também o metolaclaro, banido da União Europeia por suspeição de efeito desregulador endócrino e associação ao aumento da incidência de tumores, em particular hepáticos; o fipronil, classificado nos Estados Unidos como possível carcinógeno humano, devido à ocorrência de tumores na tireoide; e o epoxiconazol, tido pelos estadunidenses como provável carcinógeno para humanos, principalmente em decorrência do aumento de tumores ovarianos.
No Maranhão, os níveis de atrazina detectados na comunidade de Cocalinho foram mais de duas vezes superiores ao valor máximo permitido segundo as normativas brasileiras. A substância foi encontrada em pelo menos uma amostra em outros seis estados. A atrazina já foi banida pela União Europeia devido ao alto poder de contaminação ambiental. Os efeitos para a saúde humana, associados à intoxicação pela substância, podem gerar distúrbios endócrinos, problemas na reprodução e câncer.
Mariana Pontes, da Campanha do Cerrado, afirma que a pesquisa veio de um pedido feito pelas próprias comunidades tradicionais, há quatro anos. “O planejamento começou a ser feito em 2019 e o trabalho de campo a partir de 2021”, diz. As comunidades Cocalinho, Serra do Centro, em Tocantins, e Geraizeiros, na Bahia, já são acompanhadas pela campanha. A Barra da Lagoa, no Piauí, fica próxima da área dos geraizeiros. Os assentamentos Eldorado II, no Mato Grosso do Sul, e Leonir Orback, em Goiás, e as comunidades Serra do Centro, em Tocantins, e Cumbaru, no Mato Grosso, foram escolhidas em conversas com outras entidades participantes da campanha.
Para ela, a denúncia do dossiê fortalece o debate sobre a excessiva permissividade da legislação brasileira. “Além de autorizar o uso de agrotóxicos proibidos em outros países, ainda existe muita discrepância nas quantidades em que eles são aceitos. [o dossiê] Usa como base um cidadão adulto que é saudável, tem um peso dentro da média e despreza os impactos em crianças, idosos e pessoas com outras fragilidades”, afirma. No caso das crianças e da fase intrauterina, os impactos podem acompanhar essas pessoas por toda a vida.
O dossiê será apresentado nesta terça-feira, dia 30, em Brasília. A ideia é levar o debate ao Congresso Nacional, por meio da Comissão de Meio Ambiente, e aos ministérios do Meio Ambiente, Saúde e Direitos Humanos.
Objetivos e métodos
“Nosso objetivo é fortalecer a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida”, diz Mariana. O Brasil viveu um verdadeiro boom na liberação de agrotóxicos após o impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff (PT). A quantidade de substâncias liberadas entre 2005 e 2016 variavam entre cem e trezentas por ano. Em 2017 e 2018, na gestão de Michel Temer (MDB), os números foram além de quatrocentos por ano. Com Jair Bolsonaro (PL), chegaram a 562, em 2021, e 652, em 2022.
Para Aline Gurgel, pesquisadora em saúde pública e professora do Departamento de Saúde Coletiva da Fiocruz, o momento agora é de recuperar os marcos legais de maior segurança para o consumidor e os moradores de áreas próximas às grandes propriedades dedicadas à monocultura. “Os últimos seis anos foram marcados pelo enfraquecimento da política de segurança e proteção, com a liberação de diversos produtos e a flexibilização da aplicação”, diz.
Ela explica que a metodologia aplicada no levantamento foi inovadora. Os técnicos orientaram líderes comunitários como deveria ser feita a coleta e os cuidados para garantir que as amostras chegassem ao Rio de Janeiro, onde fica a Fiocruz, com qualidade para serem analisadas. “Eles puderam coletar a água nos lugares que mais usam e que estavam preocupados com a qualidade da água”, diz.
Segundo Aline, a condição da água pode ser mais grave do que os resultados apontam. “Existem substâncias tóxicas que ficam menos tempo na água. Ou seja, não constatamos nas amostras, mas podem ter sido ingeridas pelas pessoas em períodos anteriores”, observa. Assim como os que foram encontrados e permanecerão por décadas na água. Outra limitação foi o número de substâncias pesquisadas, que não abrange todos os produtos tóxicos para a saúde humana presentes nos agrotóxicos.
Aline critica a legislação brasileira por, além de ser extremamente condescendente com o uso de agrotóxicos proibidos em outros países e de permitir a presença de maior quantidade de resíduos, por analisar individualmente a presença de cada um deles. “Existem substâncias que aumentam o impacto de outras no corpo humano e há as que até potencializam os efeitos”, afirma.
Ela destaca um segundo aspecto: o impacto na rede de atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS). “Quem causou o dano jamais será responsabilizado pela contaminação, ficando apenas com os lucros da produção com substâncias químicas nocivas e as vítimas podem ficar com sequelas durante toda a vida, dependendo do sistema público de saúde para o tratamento”, diz.
A Fiocruz fez diversas sugestões para a portaria 888, de 2021, do Ministério da Saúde, sobre os procedimentos de controle e de vigilância da qualidade da água para o consumo humano e o padrão de potabilidade. Na ocasião, as propostas não foram acatadas pela gestão do ex-ministro Marcelo Queiroga, da gestão Jair Bolsonaro (PL).
Agora, a esperança é que a ciência seja ouvida nas próximas edições de outras portarias.