Ao contrário do que dizia a propaganda para aprovar novos instrumentos financeiros do agronegócio, o setor não reduziu sua demanda por crédito público. Enquanto isso, cooperativas e agricultores familiares enfrentam obstáculos para acessar a parte menor que lhes cabe
O mantra é assim: os novos instrumentos financeiros democratizarão o acesso a recursos pela agricultura e pecuária no Brasil e o agronegócio dependerá menos do dinheiro público. Esse discurso é repetido no parlamento, em lives, debates, aulas de coaches financeiros: todas as vezes que o crédito para o agro é abordado. Foi uma das bases de argumentação para a aprovação das novas Leis do Agro (13.986/20 e 14.421/2022) e do Fundo de Investimento nas Cadeias Produtivas Agroindustriais, o Fiagro) (14.130/2021) – leis que estruturam instrumentos do mercado financeiro lastreados em dívidas, produção e terras no Brasil.
Só que não é verdade. O agronegócio sempre dependeu e vai depender de recursos públicos. “O crédito é um fator de produção tão relevante quanto a terra, o fertilizante ou a máquina agrícola. Dessa maneira, seria impensável a expansão do Agro brasileiro sem a política de crédito rural que norteou a política agrícola nacional”, afirma a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) em “O Futuro é Agro – 2018-2030”, um “Plano de Estado”, apresentado aos candidatos à presidência em 2018.
No Plano Safra 2023/2024, R$ 364,22 bilhões, 26,8% a mais que o Plano Safra de 2022/2023, são direcionados para a atividade. Desses, R$ 186,4 bilhões (+31,2%) têm taxas controladas e R$ 101,5 bilhões (+26,1%) apresentam taxas equalizadas, ou seja, subsidiadas. Sem contar recursos para obras de infraestrutura como a Ferrogrão, uma Embrapa dedicada a seus interesses, bilhões que ainda devem ser anunciados para o seguro rural, isenção de imposto de renda nas aplicações em títulos financeiros do agronegócio, isenção de imposto de exportação com a Lei Kandir e perdões periódicos de dívidas do agronegócio.
Esses recursos são deixados de fora da conta quando os empresários falam em “subsídios ao agro”. E são pagos por toda a população do país. Agora mesmo, o relator da Reforma Tributária na Câmara dos Deputados, Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), reduziu mais a alíquota do Imposto sobre Valor Agregado (IVA) sobre produtores agropecuários, por pressão da bancada ruralista. Com isso, a alíquota para os produtos agropecuários e da cesta básica será de 40% do total da alíquota padrão (que será definida no futuro, na regulamentação da reforma). Antes, o relatório já previa redução de 50% em relação à alíquota geral, mas acharam insuficiente.
O crescimento explosivo de aplicações em instrumentos financeiros do agro – e portanto de recursos que o mercado financeiro aplica no agronegócio – significa que o setor empresarial tem mais alternativas para captar recursos privados.
Não significa uma democratização no acesso a crédito porque este dinheiro é para grandes grupos ou para seus parceiros. E democratização, no sentido que o agronegócio usa, é algo relativo. Não há um número maior de produtores com acesso ao dinheiro, mas sim o turbinamento do modelo de produção que esses mecanismos reproduzem: commodities para exportação, monocultura, uso intensivo de maquinário, agrotóxicos, transgênicos. Com exploração da mão-de-obra e uma gigantesca especulação em torno da valorização das terras agricultáveis no Brasil.
“O Agro é tudo”, diz a propaganda. “Tudo é agro”, reclamam os ruralistas em junho de 2023, para atacar a decisão do governo federal de lançar dois Planos Safra 2023/2024: um para a agricultura corporativa e outro para a agricultura familiar.
Há um conceito para os atos de fala ou de linguagem que, além de expressar algo, também são uma ação. É o conceito de “performativo”, que vem de performance: executar, fazer. Neste caso, a comunicação do agronegócio e de seus representantes expressa e realiza, a todo momento, o que ele é: monocultura e destruição da diversidade. Mesmo quando outros segmentos da agricultura brasileira tentam acessar crédito nessas regras inventadas por eles.
Em 2020, quando foi sancionada a nova Lei do Agro, para ampliar o uso de mecanismos financeiros privados, o crédito para a agricultura familiar havia secado. O governo Michel Temer havia acabado com o Ministério do Desenvolvimento Agrário, e políticas públicas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) passaram por anos de desmantelamento, agravados por Jair Bolsonaro.
Em 2021, sete cooperativas ligadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) – e que precisavam de recursos para beneficiar sua produção – decidiram usar um dos instrumentos financeiros de mercado, os Certificados de Recebíveis do Agronegócio (CRA). Aí se viu que “o agro é tudo” – menos o MST.
“Era uma operação micro, R$ 17,5 milhões, mas incomodou muita gente. O agronegócio tentou barrar de todas as formas”, recorda João Pacífico, fundador da securitizadora que fez a emissão do CRA, a Gaia Securitizadora. A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) suspendeu por 30 dias a oferta, depois de sua divulgação, e determinou que as cooperativas colocassem explicitamente, no prospecto, que parte de seus associados se identificavam com o MST.
Está lá, na página 184, na descrição dos devedores da oferta. “São cooperativas agropecuárias; seus sócios proprietários (cooperados) são agricultores familiares, os imóveis agrícolas onde atuam, estão sediados em assentamentos da Reforma Agrária regulamentados pela Lei 8.629. Parte dessas famílias, as quais constituem e prestam serviços às Cooperativas, se identificam com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), um dos diversos movimentos sociais no país que buscam a implementação da reforma agrária no Brasil.”
O Joio e O Trigo desafia os leitores a encontrar outro prospecto de CRA que registre a atuação política dos devedores. Ou seu time de futebol. “Algum desses cooperados, com certeza, torce pelo Palmeiras. Mas isso ninguém perguntou”, ironiza Luís Costa, gerente do Finapop, organização criada em 2020 para buscar financiamento e crédito a organizações de famílias assentadas, e que participou da estruturação do CRA.
A suspensão determinada pela CVM e a ordem de explicitar a relação entre cooperativas e MST foi somente um dos obstáculos que a operação superou. Para serem realizadas, as emissões de CRA precisam de um conjunto de atores ligados ao mercado: a securitizadora (organiza o processo, é a responsável primeira linha), o coordenador líder (corretora onde o investidor abre a conta, aporta o dinheiro, onde o título é oferecido), o agente fiduciário (olha para a operação e confirma garantias previstas), o custodiante registrador (cuida de regulamentos, registros, registro na CVM), o agente liquidante (fecha a operação).
Pelo menos um deles recebeu ligações de clientes do agronegócio, na noite anterior ao lançamento público da oferta, avisando que “se trabalhar para o MST, tiramos o dinheiro daí”. Pelo menos um deles nunca mais aceitou fazer um CRA ou outro tipo de emissão com cooperativas que tenham, entre seus associados, participantes do MST.
“Era uma operação micro, R$ 17,5 milhões, mas incomodou muita gente. O agronegócio tentou barrar de todas as formas”, recorda João Pacífico, fundador da securitizadora que fez a emissão do CRA, a Gaia Securitizadora.
Alguns escritórios de advocacia se recusaram a trabalhar na operação. Os organizadores receberam – e não seguiram – a orientação de cancelar a live de apresentação, divulgada somente para quem tinha manifestado interesse nela. Luís, gerente do Finapop, ainda hoje não cita nomes das empresas ou pessoas que agiram dessa maneira. Conta o caso para falar das questões estruturais que impedem atores fora do modelito do agronegócio de terem acesso a crédito adequado.
Concluído o processo, Pacífico publicou um texto. “Chorei por causa do MST”. A operação foi um sucesso, ele se recorda. “O MST foi para a B3 dentro da regra de governança mais exigente, a de ofertas para o varejo. Sete cooperativas passaram no escrutínio. Aí fica difícil falar mal dos caras”, avalia.
No meio da conversa, lembra-se de outro detalhe: o do jornalista inconformado com os juros oferecidos (5,5% ao ano), taxa mais baixa que a do mercado. “Mas então os investidores perderam dinheiro!”, reclamou o repórter. “Só que os investidores estavam dispostos a trazer um impacto positivo ao mundo. Ninguém precifica as externalidades negativas dos investimentos. Poluição, desigualdade, ninguém olha. Investir a 5,5% ao ano ajudou o agricultor familiar, aumentou a renda dessas pessoas, levou recursos para a agroecologia. Melhor do que ganhar 10% investindo em termoelétricas”, responde Pacífico, de novo, ainda, em 2023.
A Gaia Impacto, que João Pacífico mantém depois de ter vendido a parte de investimentos tradicionais de seu negócio, segue captando recursos para cooperativas da agricultura familiar, populações tradicionais e cooperativas de assentados da reforma agrária. O Finapop se transformou em empresa em 2022 e continua em atuação, articulando 150 cooperativas e associações.
O prospecto de outro CRA, de 2023, cita o MST. Mas não porque vá investir em assentados. Pelo contrário. É o da 207a emissão da Ecoagro, realizada para a Usina Coruripe Açúcar e Álcool, de R$ 106 milhões. O movimento aparece na parte dos “riscos”: “As terras da Devedora e/ou de seus fornecedores podem ser invadidas pelo Movimento dos Sem Terra. A capacidade de produção da Devedora e de seus fornecedores pode ser afetada no caso de invasão do Movimento dos Sem Terra, o que pode impactar negativamente suas atividades e sua capacidade de pagamento dos Direitos Creditórios do Agronegócio e por sua vez o pagamento dos CRA pela Emissora.” A definição usada no mundo do agronegócio para algo assim – de novo performativa e sempre atribuída a outrem – é “postura ideológica”.
O registro de questões ideológicas em um documento de emissão de CRAs não é de hoje. Em 2013, em um prospecto da 52a emissão da Ecoagro para Produtores de Soja, sobrou até para a Comissão Pastoral da Terra. “Movimentos sociais, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e a Comissão Pastoral da Terra, são ativos no Brasil. Invasões e ocupações de terrenos agrícolas por grande número de participantes desses movimentos são comuns e, em algumas áreas, os proprietários não contam com a proteção efetiva da polícia nem com procedimentos eficientes de reintegração de posse. Não é possível assegurar que as propriedades envolvidas nos contratos de parceria, arrendamento de terras, alienadas fiduciariamente, de posse ou de propriedade do Devedor dos Créditos, não estejam sujeitas à invasão ou ocupação por grupos desse tipo.“
Trinta anos
O Plano Safra 2023/2024 para a Agricultura Familiar recebeu, como o Plano Safra Empresarial, um volume recorde de recursos. Mas vejam a desproporção: são R$ 71,6 bilhões, enquanto o plano dos produtores de commodities é de R$ 364,22 bilhões.
O Ministério do Desenvolvimento Agrário e da Agricultura Familiar ter o próprio plano safra incomodou o agronegócio. E não se discute o fato de o mercado ter cada vez mais alternativas de financiamento – sem abrir mão dos recursos públicos –, enquanto os agricultores familiares enfrentam obstáculos para receber sua cota.
“Não é apenas a vontade política e a disponibilidade que garantem que esses recursos cheguem de fato para as famílias que estão produzindo alimento saudável. No caso das famílias assentadas da reforma agrária, o problema é a garantia real exigida pelos bancos. Nossos assentados não têm propriedade da terra. A propriedade é da União. Não haveria problema com isso, desde que as famílias pudessem pagar os empréstimos com sua própria produção. A gestão pública deveria subsidiar essa agricultura da produção de alimentos”, constata Dirlete Teresinha Dellazeri, da direção da Copran, cooperativa de Arapongas, no Paraná.
Um exemplo é o assentamento Santa Maria, em Paranacity (PR), que tem 234 hectares e foi criado em 1983. Somente depois de 30 anos de existência conseguiu aprovar um projeto para receber empréstimo pelo Pronaf – Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar. A Copavi, cooperativa do assentamento, reúne 104 associados e é uma das sete cooperativas financiadas pelo CRA do MST.
Jovens e mulheres são muito atuantes dentro da cooperativa. Cristina Sturmer é economista e faz parte da diretoria compartilhada. “Quando a gente foi assentado, minha mãe, Claudete, não tinha terminado o segundo grau. Ela fez parte da diretoria. A cooperativa tinha uma uma política de garantir que as pessoas fizessem Supletivo, Ensino de Jovens e Adultos. Então minha mãe terminou o Ensino Médio e passou na universidade pública. Não terminou o curso, mas fez dois anos de Serviço Social, já com 45 anos. Os mais novos sempre tiveram incentivo para estudar. Temos veterinário, temos agrônomo”, ela conta.
Depois de duas gerações, uma delas formada pela primeira vez em universidades, a Copavi conseguiu recursos do Pronaf por meio do Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul. “Os bancos não veem a gente como cliente, como prioridade. Dá muito trabalho, para eles, entender um empreendimento diferente da maioria. Não é uma empresa. São agricultores e agricultoras que querem produzir na terra de modo coletivo. Eles não veem isso como rentável, veem somente como um risco. Não existe esse processo de democratização de acesso a crédito adequado”, explica Cristina.
O primeiro obstáculo é a exigência de garantia real – a terra. Assentados da reforma agrária não têm títulos individuais de terras e, mesmo que tivessem, explicam Cristina e Luís, não querem dar algo que tanto custou conquistar, onde vivem e produzem, em garantia de empréstimos.
Para esses agricultores, a terra não é um patrimônio, um ativo. É a forma de produzir e reproduzir a vida. No caso do MST, o lastro do CRA foram Cédulas do Produto Rural Financeiras (CPR-F) e as garantias adicionais foram a produção das cooperativas (arroz em casca, soja, leite UHT, leite em pó, milho e açúcar mascavo) e recebíveis de contratos de fornecimento de alimentos saudáveis para prefeituras.
Outro obstáculo é que o que a agricultura familiar produz e a maneira como produz não cabem no formato de projetos com os quais os bancos gostam de lidar. “Os pacotes dos bancos são direcionados para aquele modelão de produção: adubo químico, veneno, vaca e trator”, conta Luís Costa, do Finapop.
“As empresas que vendem insumos têm agrônomos ou técnicos agrícolas que dão assistência para as famílias. Montam o pacote que elas precisam para ir ao banco pegar recursos e esses recursos vão direto para pagar o fornecedor de insumos. Aí chega um agricultor da agroecologia querendo comprar adubo orgânico, semente. Mesmo com o Pronaf Agroecologia foi difícil aprovar projetos. Os bancos perguntavam como iriam fiscalizar sementes orgânicas que, dependendo de onde são obtidas, sequer têm nota de origem.”
Os indicadores usados para fazer a análise dos projetos também não são adequados. Desconsideram diferenças entre as regiões do país, outras formas de organizar a produção e externalidades positivas, como conta Cristina.
“Quando a gente usou crédito para modificar a estrutura de moagem de nosso engenho, aumentou a extração de caldo. Geramos mais produtos para vender. É um indicador econômico. Mas a gente agora consegue, também, secar o bagaço da cana e queimar na caldeira. Diminuímos o consumo de lenha. O maior efeito não é econômico: a gente está formando uma estrutura quase sustentável do ponto de vista da energia. E isso não entra no indicador.”
A Copavi consegue lidar com a complexidade de documentos e enorme burocracia porque formou, no assentamento, pessoas que sabem fazer isso. Não é a regra entre pequenos agricultores. “Pessoas que estão lidando nesses empreendimentos às vezes não têm condição de compreender, de preencher a papelada. É uma burocracia significativa para um recurso que às vezes é pequeno, e isso barra as pessoas no primeiro momento”, constata Cristina.
E, para quem consegue superar esta fase, muitas vezes a resposta é “não”. Não fosse a disposição do Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul de realizar parceria com a Copavi, não haveria financiamento. “Apresentamos um documento de 50 páginas, um dossiê de nossa história, de como estão nossos processos produtivos, o que projetamos para os próximos anos e onde esse crédito entraria. Enviamos documentos da diretoria e da cooperativa. Não foi um processo longo mas foi trabalhoso. E se efetivou”, celebra.
“Os bancos não veem a gente como cliente, como prioridade. Dá muito trabalho, para eles, entender um empreendimento diferente da maioria. Não é uma empresa. São agricultores e agricultoras que querem produzir na terra de modo coletivo. Eles não veem isso como rentável, veem somente como um risco. Não existe esse processo de democratização de acesso a crédito adequado”
A Copavi decidiu, no ano 2000, tornar agroecológica toda sua produção. São 500 toneladas de derivados de cana (melado, açúcar mascavo e cachaça), 75 mil litros de leite orgânico certificado, iogurte, queijo e 45 toneladas de hortifrutis por ano. Seus produtos são orgânicos, certificados pela Rede Ecovida de Agroecologia, e a linha de derivados de cana possui certificação para a exportação para União Europeia fornecida pela Associação de Certificação Instituto Biodinâmico.
No início de 2023, com outras cooperativas do Paraná, a Copavi fez um Plano de Desenvolvimento, como uma forma de pressionar os governos por mais políticas públicas. “Nossa necessidade não é apenas o crédito direto, mas também investimento em estradas rurais, captação e aproveitamento de água. Este plano engloba infraestrutura, que é uma dívida histórica do Estado brasileiro com as populações rurais. Investimentos em habitação, saneamento básico no campo”, conta.
A demanda de investimentos de longo prazo é de R$ 25 milhões. “Com infraestrutura de energia solar, captação e aproveitamento de água nas indústrias, saneamento básico, estrada, nosso projeto de laticínio”, enumera Cristina.
Para o curto prazo seriam necessários R$ 7,5 milhões. “Capital de giro, a estrutura do laticínio de leite orgânico, a reforma do canavial e o plano de reflorestamento para a área de 10 hectares que selecionamos, no assentamento, para fazer parte do Plano Nacional Plantar Árvores, Produzir Alimentos Saudáveis e estamos revitalizando”, continua Cristina. O crédito recebido pela Copavi via Pronaf foi de R$ 800 mil.
Isso não é tudo
Se bancos e assistência técnica rural não conseguem enxergar a viabilidade e a importância de dar crédito da agricultura familiar a uma cooperativa como essa, o que dizer de camponeses/as que fazem agroecologia em suas terras e quintais?
“Eles não consideram uma associação de mulheres quilombolas um negócio. O que chamam de agricultura familiar é o agronegocinho – aquele mesmo pacote, mas de tamanho menor. E em lugares privilegiados do ponto de vista estrutural nas regiões Sul, Sudeste e Centro- Oeste”, sintetiza Cristina, explicando que mesmo parte dos recursos da agricultura familiar é capturada pela cadeia do agronegócio.
Dirlete, da Copran, se lembra do tempo em que a produção familiar era diferente. “Cresci no campo, vendo meu pai e minha mãe plantarem feijão. Nunca vi nenhum dos dois com uma máquina de passar veneno. Nós destruímos o ecossistema e temos que começar a recuperar. Não podemos deixar como está para nossos filhos e netos porque não foi assim que recebemos de nossos pais. Não precisa voltar naquela época, mas precisa de uma tecnologia adequada para hoje. A ciência evoluiu e nós evoluímos como humanidade.”
A lógica do Pronaf é a mesma da agricultura empresarial: limitar o incentivo à produção de determinadas e poucas espécies alimentares. E a produção agroecológica é feita com biodiversidade, manejo combinado de alimentos, cultivo de floresta. Os bancos tampouco consideram o tempo de trabalho que tem de ser aplicado nesta produção. Quando uma camponesa recebe crédito para criar galinhas, os recursos passam de imediato para o fornecedor de insumos. De que ela vai viver enquanto as galinhas não estão botando ovos?
Enquanto colhia café catado – quando se pega somente o grão que já madurou, está docinho – com uma quilombola no Vale do Ribeira, Miriam Nobre, da Sempreviva Organização Feminista, ouviu este relato de como a vida é.
A camponesa tinha dificuldade de fechar a mão por causa de um acidente de trabalho, um machucado com o facão que prejudicou seu tendão. Trabalhava no pedágio e, quando voltava, corria para fazer as coisas da roça e da casa antes de as crianças chegarem da escola. Na pressa das muitas coisas por fazer, se feriu. O trabalho no pedágio foi a solução para pagar um empréstimo para plantar pupunha orgânica. O pupunhal fracassou: foi destruído por um fogo que o vizinho ateou em sua roça.
Há produção
De acordo com o Censo Agropecuário 2017, 1,6 milhão de agricultores e agricultoras produzem principalmente para o autoconsumo. “Além de ser diversa, esta produção é grande”, conta Sarah Luiza Moreira, militante da Marcha Mundial das Mulheres e do GT Mulheres da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA). As Cadernetas Agroecológicas, em que mulheres do campo por todo o país anotam o que plantam, o que colhem e quem consome, mostram um volume importante de valores não contabilizados como produção.
“É uma produção invisível porque não é direcionada para o mercado. Não gera dinheiro, gera vida. A produção para o autoconsumo é feita geralmente por mulheres e gera alimentos saudáveis, sem veneno, em uma lógica diversificada que preserva o ambiente ao mesmo tempo que garante a alimentação das famílias e comunidades”, relata Sarah.
Essa produção cria segurança alimentar para as famílias. Se não existisse, elas precisariam comprar mais alimentos. “Isso precisa de apoio do Estado, a partir de políticas públicas. Por isso, a nossa grande luta não é apenas por crédito. As mulheres precisam de apoio para manter sua produção e não para entrar em dívidas com bancos. Políticas públicas de acesso à água, de reforma agrária, para fomento produtivo”, explica.
Dirlete cita, antes de responder às perguntas que lhe enviamos, números que, insiste ela, precisam ser considerados na sua devida dimensão: a de questionar onde, afinal, o país deseja investir uma parte tão importante de seus recursos públicos.
“Em 2022, na agricultura familiar, tivemos apenas 14% da destinação dos créditos, enquanto o agronegócio teve 86%. Eles concentram 76% das terras agricultáveis. A comida produzida para o povo brasileiro foi 70% produzida pela agricultura camponesa. E 74% da mão de obra do campo é da agricultura familiar. Os empresários do agronegócio criam um campo sem gente”, enumera.
O agronegócio divulga que os recursos do Plano Safra correspondem a apenas um terço de sua necessidade de expansão. Dirlete está olhando para a necessidade de ampliar a produção de alimentos. Explica que dois programas importantes criados nos primeiros governos Lula – o Plano Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) –, agora em processo de reconstrução, são importantes não apenas porque financiam a agricultura familiar mas porque, ao fazê-lo, incentivam a diversificação da produção.
“Ninguém vai plantar alface, pepino, abóbora, beterraba, cenoura, melancia sem saber para quem vai vender. Incentivar a produção diversificada é a coisa mais fundamental que o PAA e o PNAE têm, porque muitos pequenos agricultores acabam plantando milho e soja porque têm certeza de que vão vender”, alerta.
Ainda assim, planta-se comida. Na chamada aberta este ano pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), para comprar R$ 300 milhões em alimentos, a agricultura familiar apresentou R$ 1,1 bilhão em propostas. E isso porque há um limite: cada família só pode vender R$ 15 mil por ano. De acordo com Edegar Pretto, presidente da Conab, foram recebidas propostas de 77 mil famílias e 77% delas foram ofertadas por mulheres.
“Ninguém vai plantar alface, pepino, abóbora, beterraba, cenoura, melancia sem saber para quem vai vender. Incentivar a produção diversificada é a coisa mais fundamental que o PAA e o PNAE têm, porque muitos pequenos agricultores acabam plantando milho e soja porque têm certeza de que vão vender”, alerta.
“Nós produzimos muito mais! Muita gente ficou de fora, muita gente nem entrou. A Copran tem um CNPJ e 1.045 famílias associadas. A gente poderia, com o CNPJ, apresentar um projeto de até R$ 1,5 milhão. É muito pouco, em um programa importantíssimo. O povo está precisando comer e a oferta de R$ 1 bilhão mostra que temos comida.”
Enquanto o agronegócio segue na guerra ideológica para expandir seu modo de produção, pequenas agricultoras e agricultores trabalham por políticas públicas que enxerguem a diversidade da população, da produção e dos modos de produzir. “Não estamos pegando um recurso para comprar uma caminhonete toda equipada ou para colher milhões de sacas de soja e milho. Não estou dizendo que isso não é importante: estou dizendo que os recursos públicos são nosso caixa comum, do povo brasileiro”. Dirlete está dizendo que o agronegócio não é tudo.