A Mondelez, fabricante da bolacha ultraprocessada, fechou acordo que permite usar os atores, cenário e marca do Castelo Rá-Tim-Bum em propagandas; contrato com o canal deveria ser público, diz especialista
“Hoje a brincadeira é de Castelo”, diz uma mulher enquanto observa os filhos brincarem numa cabana dentro do quarto. Ela segura um pacote da bolacha Oreo na mão. De repente, todos são transportados para o icônico portão do Castelo Rá-Tim-Bum, programa infantojuvenil da TV Cultura que conquistou milhares de crianças nos anos 1990.
A mulher que aparece no comercial da Oreo é a atriz Cinthya Rachel, conhecida por seu papel como Biba, uma das crianças protagonistas do Castelo Rá-Tim-Bum. Gravado entre 1994 e 1997, o programa conta as aventuras de Biba, Nino, Pedro e Zequinha em um castelo mágico na cidade de São Paulo. A atração foi reprisada por muitos anos, o que garantiu uma legião de fãs que a reverenciam até hoje.
Na propaganda da bolacha Oreo, a família entra no cenário do Castelo e encontra Nino e a bruxa Morgana, interpretados pelos atores originais do programa, Cássio Scapin e Rosi Campos.
Lá, as crianças conhecem uma “máquina de Oreo” inventada por Nino e se deliciam com as bolachas. Quando a família volta para casa, uma das crianças pergunta se eles podem retornar ao Castelo no dia seguinte. Biba, a mãe, responde: “com Oreo a gente sempre pode”.
Acordo sigiloso
O comercial é apenas uma das peças publicitárias fruto de um acordo entre a Mondelez, fabricante da Oreo, e a Fundação Padre Anchieta (FPA) – entidade pública ligada ao governo do Estado de São Paulo e controladora da TV Cultura. Desde setembro de 2022, a Mondelez produziu inserções publicitárias na televisão, no YouTube e em cartazes de rua que associam a sua bolacha ultraprocessada ao Castelo Rá-Tim-Bum.
E como se as propagandas não fossem suficientes para disparar gatilhos emocionais nos antigos fãs e conquistar novos consumidores mirins, a empresa decidiu patrocinar um reencontro do Castelo, que foi ao ar em fevereiro deste ano. O cenário foi reconstruído, e diversos atores que passaram pelo programa foram convidados para o encontro especial, que teve grande repercussão nas redes sociais.
Já seria questionável qualquer programa infantil vincular a sua imagem a ultraprocessados como o Oreo, que são prejudiciais à saúde de crianças. Estudos associam o consumo desses produtos com obesidade e hipertensão na infância, além de redução do desempenho escolar. Mas no caso da TV Cultura, a situação é ainda mais grave por ser um canal público, que insiste em não revelar os valores e os termos do contrato com a Mondelez.
Em fevereiro, O Joio e O Trigo enviou um pedido de Lei de Acesso à Informação à FPA, solicitando a íntegra do documento. A fundação alegou que seu contrato com a Mondelez contém cláusula de sigilo e que sua divulgação poderia gerar prejuízo concorrencial.
Também argumentou que o documento estipula uma “parceria” para investimento no especial de reencontro e não um contrato de “venda de direitos de marca”, como descreveu o Joio no pedido inicial. Apesar de a FPA afirmar que não houve a venda de direitos, a marca do Castelo é usada nas propagandas da Oreo.
Decidimos entrar com um recurso com apoio da Fiquem Sabendo, agência de dados independente e especializada na Lei de Acesso à Informação. No pedido, apontamos que, de acordo com a Lei Federal 14.133/2021, contratos firmados por entidades da administração pública são regidos pelo princípio da publicidade, “sendo vedada a existência de cláusulas de confidencialidade, ressalvadas as hipóteses de sigilo necessário à segurança da sociedade ou do Estado, o que não é o caso”.
A FPA indeferiu o recurso. Alegou que o contrato não é regido pela Lei Federal 14.133 e sim pela Lei 8.666 de 1993 – menos rígida com relação à publicidade de contratos públicos.
Recorremos novamente, desta vez à Ouvidoria Geral do estado. Apontamos que o contrato precisa ser tornado público mesmo que seja regido pela Lei de 1993. “A lei em questão é clara em asseverar que a publicidade e divulgação de informações quanto a contratos são públicas”, argumentamos. Mas o recurso foi negado outra vez.
Em abril, apelamos à última instância, a Comissão Estadual de Acesso à Informação (CEAI), vinculada à Casa Civil do governo. O colegiado é formado por seis servidores estaduais. O grupo deveria se reunir a cada três meses, de acordo com o decreto nº 60.144/2014, mas a comissão não se encontra desde dezembro de 2022, segundo o seu arquivo público de atas.
Questionamos a Casa Civil do Governo do Estado sobre a data da próxima reunião da CEAI, mas não obtivemos resposta. A Fundação Padre Anchieta e a Mondelez foram procuradas, mas não se manifestaram.
Para o advogado Bruno Morassutti, da Fiquem Sabendo, os argumentos da FPA não são válidos. “É direito fundamental do cidadão ter acesso a informações sobre contratos firmados por órgãos da administração pública direta ou indireta”, diz. “Por mais que o contrato tenha trechos sensíveis do ponto de vista concorrencial, esses trechos podem ser suprimidos e o restante do documento, divulgado”.
Morassutti critica ainda a demora da CEAI para se reunir. “Já tivemos que judicializar pedidos de acesso à informação por conta da demora da Comissão em analisá-los. Isso seria desnecessário se a administração pública estivesse funcionando de forma correta”, diz.
Publicidade infantil e ultraprocessados
Uma revisão da literatura científica conduzida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2009 concluiu que a publicidade voltada a crianças tem o poder de moldar hábitos e preferências alimentares, induzindo o consumo de alimentos ultraprocessados – que são os mais anunciados nos diversos formatos de mídia.
Evidências reunidas no mesmo documento da OMS também apontam o uso de personagens do universo infantil como uma das estratégias da indústria para cativar crianças.
Como já contamos em reportagem anterior, se acumulam artigos científicos mostrando que o público infantil tem dificuldade para diferenciar entretenimento e publicidade – e que restringir a publicidade infantil de alimentos ultraprocessados seria importante para reduzir gastos públicos em saúde.
Ainda assim, o poder público evita regulamentar (ou proibir a prática) e são raros os casos em que há qualquer tipo de punição às empresas. Sobretudo na internet, onde grande parte do material da parceria Oreo/Fundação Padre Anchieta foi divulgado, o clima é de terra sem-lei.