STF julgará recurso de empresa vinculada à “Máfia do Cigarro”

Com registro cancelado na Anvisa e na Receita, Sulamericana Tabacos chegou ao Supremo pedindo liberação de aditivos para seus produtos

O Supremo Tribunal Federal (STF) julgará uma ação movida pela Companhia Sulamericana de Tabacos contra a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). 

A empresa pede ao STF o cancelamento de uma norma da Anvisa que proíbe a utilização de aditivos nos cigarros. A decisão terá repercussão geral – isto é, valerá para todos os casos judiciais análogos no Brasil. 

A norma (RDC 14/2012) foi julgada pelo STF em 2018. A votação no plenário da corte resultou em empate e o debate do tema voltou para as instâncias inferiores. O resultado: quarenta ações de diferentes empresas e entidades de classe questionando a mesma norma.

Reportagem da Folha de S. Paulo daquele ano usou dados da Anvisa para mostrar que 90% das marcas com aditivos registradas no Brasil estavam protegidas por liminares e, portanto, sendo comercializadas. Na prática, a regra da agência federal não estava valendo.

Aditivos em cigarros são usados para diminuir a repulsividade e conquistar público jovem, diz a Anvisa. Fontes: Tobacco Free Kids/Comissão Nacional para Implementação da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco

A primeira das ações impetradas pela indústria a atingir o STF novamente é a da Sulamericana, após derrota no TRF1. Sediada em Duque de Caxias (RJ), a empresa tem presença relevante no mercado fluminense, com marcas como “Club One” e “G-Gift”. 

Aos olhos do poder público, no entanto, já não é mais uma empresa legalmente constituída. Em 2021, teve o registro cancelado definitivamente pela Receita Federal – é devedora contumaz, com um passivo tributário avaliado em R$ 1,2 bilhão pela Receita. Também já não consta na relação atualizada de fabricantes de cigarro da Anvisa. 

Ao mesmo tempo, investigações do Ministério Público Federal e da Polícia Federal vinculam a Sulamericana à “Máfia dos Cigarros”, do bicheiro Adilsinho. Adilsinho deu uma festa no Copacabana Palace em meio à pandemia, com shows de Ludmilla e Gusttavo Lima. 

Os inquéritos acusam a empresa de emitir notas fiscais adulteradas e coagir comerciantes de Duque de Caxias (RJ). Como parte da “Máfia”, a empresa obrigaria os empresários a vender apenas seus produtos.

Em 18 de agosto deste ano, o desembargador Macário Neto, do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, votou pela anulação da operação Smoke Free, conduzida em novembro do ano passado contra Adilsinho e a Sulamericana. Segundo a decisão, a operação teria utilizado provas já anuladas pelo STJ no âmbito de operação anterior contra a empresa. 

Em nota, a Sulamericana afirmou que Adilsinho já foi comprador e distribuidor de produtos da fábrica, mas nunca teve ingerência sobre a companhia. Também disse que os sócios “não foram, em momento algum, denunciados pela Polícia Federal e tampouco denunciados pelo Ministério Público Federal”.

Sobre a RDC 14/2012, a empresa argumenta que a Anvisa extrapolou sua atribuição constitucional, violando a liberdade de escolha do consumidor e a livre-iniciativa do setor.

“As agências reguladoras dispõem de um espaço legítimo de atuação normativa, desde que se mantenham nos limites e parâmetros traçados pela lei”, disse. “Em qualquer caso, devem predominar na função reguladora as escolhas técnicas, não cabendo às agências fazer opções políticas”.

Clique aqui para conferir o posicionamento completo da empresa.  

Em documento de 1985 da fabricante do Camel, diretor da empresa parabeniza funcionários pelo desenvolvimento de aditivos: “eles parecem especialmente atrativos para o público de 18-24 anos, que nós buscamos desesperadamente”. Disponível em ttps://www.industrydocuments.ucsf.edu/docs/gmgx0045

De inimigos…

Em reportagens e estudos bancados pelo Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO), um think tank financiado pelas grandes corporações do tabaco, a Sulamericana é retratada como devedora contumaz.

A crônica evasão fiscal da empresa a permitiria, segundo o ETCO, cobrar valores mais baixos pelos produtos, prejudicando concorrentes que estão em dia com o fisco.

Um documento interno da British American Tobacco obtido pelo Joio relata que o ETCO teria auxiliado a Receita Federal no processo de cassação do registro da Sulamericana. O documento consta de documentação apresentada à OAB pelo advogado Márcio Fernandes, que foi indicado pela entidade à vaga no STJ.

A British American Tobacco é dona da Souza Cruz – que fabrica marcas como Kent, Dunhill e Lucky Strike – e a principal financiadora do ETCO. O instituto foi procurado para comentar o teor do documento, mas não respondeu até o fechamento da reportagem.

Em documento interno, British American Tobacco (dona da Souza Cruz), afirma que o instituto ETCO ajudou a Receita a cancelar o registro da Sulamericana e outras concorrentes.

…a aliados

Mas quando a ação da Sulamericana chegou ao STF e ganhou repercussão geral, a Associação Brasileira da Indústria do Fumo (Abifumo) e o Sindicato Interestadual da Indústria do Tabaco (Sinditabaco) ingressaram como amigos da corte (amicus curiae) para engrossar a argumentação da empresa. 

A British American Tobacco é filiada às duas entidades. Há anos, essas associações lutam para derrubar a RDC da Anvisa, que não teve efeito prático em função da avalanche de processos judiciais. 

A indústria argumenta que a Anvisa extrapolou sua atribuição constitucional ao regular a presença de aditivos. Também diz que o fez sem base em evidências científicas. Para tanto, cita um estudo sem autoria publicado pela FGV e financiado pelo setor. O levantamento conclui que a proibição causaria perda de arrecadação e redução de postos de trabalho no setor.

A Anvisa, por outro lado, diz que a proibição é importante para proteger crianças e adolescentes, uma vez que os aditivos aumentam a atratividade e reduzem os efeitos repulsivos do cigarro (mau cheiro, por exemplo). 

A agência também lembrou, nos autos do processo, que a proibição de aditivos é uma recomendação da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco, ratificada por 181 países, entre eles o Brasil, e aprovada no Congresso Nacional. Segundo pesquisa Datafolha encomendada pela ACT Promoção da Saúde*, 70% da população é favorável à proibição dos aditivos. Foram entrevistadas 2.005 pessoas a partir de 16 anos, em todo o país, entre 10 e 14 de julho. 

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