Pesquisa indica contaminação severa de restos de cigarro em ambiente urbano no Brasil, que não tem regulação específica de descarte para o resíduo; outros países apontam caminhos
“Você vê latinha de alumínio na rua?”, indaga Ronei Alves da Silva, catador de recicláveis em Brasília-DF. “Você não vê porque todo mundo junta”, responde ele, em seguida. A latinha mal vai parar nas cooperativas de recicláveis, conta, porque a indústria da reciclagem tem interesse no material e remunera quem se dá ao trabalho de separar o resíduo.
O mesmo está longe de acontecer com a bituca de cigarro.
O resíduo da indústria tabagista é um toco de papel e plástico de uso único. Pode conter espumas naturais ou sintéticas, geralmente feitas de acetato de celulose. Depois do uso por um fumante, todos esses materiais absorvem e diluem na água as substâncias do cigarro, aponta uma pesquisa lançada em novembro deste ano, que analisou 4.321 bitucas em áreas urbanas do município de Guarujá, no litoral de São Paulo.
O mau cheiro, contaminação e inutilidade comercial viram fonte de toxinas nos centros urbanos, calçadas, canteiros de árvores e flores, bueiros. A bituca não tem mobilidade na cidade, mas a água da chuva, sim. Basta que fique úmida para liberar os compostos químicos do cigarro já queimado por alguém. A bituca não interessa a ninguém, mas devia.
O estudo da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) em parceria com a estadunidense Johns Hopkins University apontou que uma única bituca de cigarro pode tornar tóxicos mil litros d’água. A água contaminante da bituca está para o cigarro como o chorume está para o lixo. A diferença é que, do lixo orgânico, o chorume ainda pode virar fonte de nutrientes para o solo. No caso da bituca, os resíduos químicos poluem.
As substâncias liberadas “podem exceder os padrões estabelecidos pela Diretiva de qualidade de água em vigor na União Europeia”, descreve a pesquisa sobre as quantidades máximas de substâncias tóxicas permitidas na Europa para assegurar a salubridade e limpeza para o consumo humano. No estudo de caso do Guarujá, foram encontradas altas concentrações de naftaleno e dos respectivos metabólitos, compostos químicos – e tóxicos – liberados em contato com a água.
A forma de descarte das bitucas ainda contém o fator “inflamável”. Bitucas acesas podem atear fogo em materiais, o que faz com que muitos fumantes, de forma inadequada, as descartem no chão. Pelo tamanho pequeno, a varrição pública não dá conta de recolher todas as pequenas bitucas de milhares de fumantes que as lançam nas cidades e praias.
No Brasil, não há regulação para dar destino correto às bitucas. Iniciativas mundo afora dão alguns exemplos de políticas envolvendo resíduos de tabaco e limpeza pública, já que há um tempo a indústria tabagista, além de objeto das pesquisas em saúde, também é observada nos estudos ambientais.
Países como o Irã, Alemanha, Japão, Uruguai, Tailândia e Marrocos já possuem evidências sobre os impactos ambientais das bitucas nas cidades e no mar. Ítalo Braga Castro, coordenador do estudo brasileiro lançado em novembro deste ano, compara a bituca ao plástico, que se decompõem em microplástico e já acumula pesquisas sobre os efeitos danosos à saúde humana e ambiental.
“Só que a bituca é muito pior que o plástico. Além de causar impactos com substâncias próprias do material, ela ainda libera mais de sete mil substâncias do cigarro, das quais pelo menos uma centena é reconhecidamente tóxica”, afirma Castro, que também é biólogo e professor da Unifesp.
Severo veneno
O filtro não protege o fumante das milhares de substâncias tóxicas presentes no cigarro nem na hora de fumar, nem depois de descartado.
Para a coordenadora de pesquisa do Institute for Global Tobacco Control da Escola de Saúde Pública Johns Hopkins/Bloomberg, Graziele Grilo, o filtro é uma ferramenta de marketing, prática que a reportagem do Joio conhece bem. “É só mais uma maneira da indústria do tabaco promover produtos”, alerta.
Dezenas de pesquisas científicas citadas no estudo lançado em novembro mostram que as bitucas e os filtros dentro delas causam a lixiviação de contaminantes. A lixiviação ocorre no processo de contato do resíduo com a água: outro material “escorre” ou “deriva” do material original.
“Não há nenhuma dúvida de que a bituca deveria receber um tratamento como os resíduos tóxicos, ser separada dos demais tipos de lixo”, afirma Ítalo Castro, da Unifesp. “A bituca deveria ter um tratamento na categoria do lixo hospitalar, de tão tóxica”, emenda.
A lixiviação da bituca é a última forma de poluição ambiental da cadeia produtiva do cigarro. Antes dela, a produção de tabaco utiliza expressivas quantidades de agrotóxicos, contaminando o solo, a água e causando graves doenças à saúde de agricultores. Essa produção também contribui para emissão de gases do efeito estufa.
Vários compostos químicos, além de elementos como o arsênio, cobre, chumbo e cobalto, foram encontrados em testes com bitucas. Os índices de contaminação por lixiviação das bitucas foram testados em uma escala de cinco níveis, que varia de “muito baixa poluição” a “poluição severa”. O estudo concluiu que, no município do Guarujá, a poluição por bitucas de cigarro é severa.
Compostos químicos liberados pela bituca de cigarro em contato com a água
Naftaleno
C1- Naftaleno
C2- Naftaleno
Acenaftileno
Acenafteno
C3- Naftaleno
Fluoreno
Fenantreno
Antraceno
Fluoranteno
Pireno
C1-Pireno
Benzo[a]antraceno
Cryseno
Benzo[a]pireno
Fonte: estudo
“A manutenção da biodiversidade é o motivo pelo qual existe qualquer política ambiental. Dos cinco motores de perda da biodiversidade, que são as mudanças climáticas, a modificação de habitats, a exploração exagerada de recursos ambientais, a poluição e as espécies invasoras, a indústria do tabaco está ligada a quatro deles”, destaca Castro, indicando que a cadeia produtiva do cigarro é isenta apenas do último motor.
A poluição severa por bitucas tem lugar e renda. A coleta em nove diferentes regiões do Guarujá apontou que as bitucas ficam concentradas em áreas com menor densidade demográfica, ou seja, mais perto de ruas comerciais do que residenciais.
Já nas áreas residenciais, a renda média de pessoas com maiores salários nas famílias foi considerada na coleta. Os dois grupos com maior ocorrência de bitucas nas regiões de moradia são os de renda baixa, que recebem até R$ 1.530 por mês, e os de renda alta, com salários superiores a R$ 5.100 mensais.
O fato de o Guarujá ter um dos melhores índices de limpeza urbana do Brasil não atenuou a contaminação severa por bitucas.
“É um produto pequeno que não tem viabilidade econômica de ser recolhido, mas o passivo ambiental que a bituca deixa é muito grande”, explica Ronei Silva, que além de conhecer as ruas pelo trabalho de catador de recicláveis, é membro do Movimento Nacional de Catadores de Recicláveis (MNCR).
No índice de densidade de bitucas, que calcula a quantidade do resíduo por metro quadrado, o Guarujá é mais poluído (índice em 0,18) que Niterói-RJ (0,08). Ainda assim, o município litorâneo paulista controla melhor a limpeza pública de bitucas que a vizinha Santos (0,25), a cidade japonesa Ueda (0,70) e Berlim (2,70), na Alemanha.
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Em território nacional, as iniciativas de destinação adequada das bitucas acendem, mas apagam rápido, como o projeto de lei federal de 2012 que propôs obrigar empresas fabricantes e vendedoras a prover pontos de coleta e multa ao fumante que descarta bitucas na via pública.
O texto do projeto de lei inspirou outra proposta, desta vez na Câmara de Vereadores de São Paulo, em 2015. Também não vingou.
Três anos depois, uma lei para incentivar o destino correto dos filtros de cigarro até passou, mas não tem fiscalização suficiente para entrar em prática. A regulação municipal obriga restaurantes, bares e instituições de ensino superior a instalarem bituqueiras em frente ao imóvel, de forma a manter o passeio público livre de bitucas.
O pingue-pongue de quem deve assumir a responsabilidade recaiu mais uma vez sobre o fumante, com outro projeto de lei de 2019 para multar quem atirar bitucas nas ruas da cidade.
Fora do país, porém, as propostas de regulação são mais elaboradas. Envolvem cálculos dos custos de limpeza pública e miram na receita da empresa poluidora, ou seja, jogam a conta para as corporações do cigarro.
A prefeitura da cidade de Baltimore, a 62 quilômetros de Washington DC, entrou com uma ação inédita na Justiça estadunidense exigindo uma reparação das empresas pelos danos ambientais causados. Seis delas, dentre as quais a Philip Morris e a British American Tobacco (BAT, antiga Souza Cruz), que atuam no Brasil, foram citadas no processo.
Segundo a ação, os prejuízos do descarte inadequado das bitucas na cidade são caros. A cadeia produtiva do tabaco onera os cofres públicos, já que os governos têm de investir mais recursos com a limpeza de cidades, incluindo horas de trabalho de funcionários públicos. A alta concentração de bitucas nas ruas causa a desvalorização de imóveis da região, o que envolve um bem comum essencial: a contaminação de bitucas no solo e nas águas encarece o tratamento para tornar a água potável ao consumo humano.
A segunda cidade mais populosa da Espanha, Barcelona, também definiu que as empresas tabagistas são responsáveis pela poluição urbana causada por bitucas. Um relatório calculou que a Catalunha amontoa mais de 2.700 toneladas de bitucas por ano, o que custaria, por habitante contribuinte de impostos, entre US$ 13 e US$ 22 anuais em limpeza pública. É esse custo que a cidade quer transferir para quem gera o resíduo, obrigando as indústrias de cigarro a fazer a coleta desde janeiro de 2023.
A União Europeia ainda incluiu as bitucas de cigarro no grupo dos dez plásticos de uso único, que muitas vezes também são de uso rápido – entre segundos a minutos, o material perde a utilidade -, e poluidores do meio ambiente. Do grupo de 10 produtos que contêm plástico na composição, como sacolas, lenços umedecidos e recipientes de comida, a bituca é o segundo mais encontrado nas praias da UE.
Um documento de recomendação para os países-membros indica a responsabilização da indústria do tabaco pela obrigação dos fabricantes de cobrirem os custos da limpeza do lixo, assim como os custos de “instalação das infraestruturas específicas para a recolha dos resíduos pós-consumo dos produtos do tabaco, como recipientes adequados nos pontos públicos de recolha de lixo”.
Estes são casos de responsabilização da indústria, mas há também modelos que pesam sobre o consumidor.
A cidade litorânea de São Francisco, nos Estados Unidos, cobra uma taxa de US$ 1,25 por carteira de cigarro vendida. O dinheiro arcado pelo fumante é revertido na limpeza pública da cidade, que inclui as praias, onde milhares de bitucas são descartadas. O valor é periodicamente atualizado.
De quem é a responsabilidade?
De cada 100 cigarros encontrados pelos pesquisadores em áreas urbanas do Guarujá, 35 eram da BAT; 22 da Philip Morris Brasil; e quase 15 cigarros da empresa Quality In, ou falsificados desta marca, já que a identificação ocorreu com base nas características físicas da bituca, copiadas nos processos de falsificação. As três principais marcas encontradas de cada fabricante foram a Rothmans, a Marlboro e a Gift, respectivamente.
O Joio questionou as três empresas mais poluentes da pesquisa. Perguntamos às empresas se têm tomado medidas para reduzir os danos ambientais causados por bitucas de cigarro nas cidades, se possuem um plano de logística reversa de bitucas e se contribuem financeiramente, a partir de parcerias público-privadas, com a limpeza das cidades, já que boa parte do resíduo urbano recolhido é de bitucas de cigarro.
A Philip Morris Brasil respondeu que possui uma campanha global para conscientizar a população sobre o descarte correto e responsabilizou os fumantes pela poluição por bitucas: “Consideramos que o principal desafio para o descarte de bitucas está na mudança de hábito por parte dos adultos fumantes.” A empresa não respondeu se possui ou se tem planos futuros de instituir um programa de logística reversa. A nota completa pode ser lida aqui.
A maior poluidora, a BAT Brasil, e a terceira maior, a Quality In, não responderam ao nosso pedido de informação.
Pega muito bem para empresas, midiaticamente falando, apoiar ações de sustentabilidade. Não à toa as corporações se preocupam em publicar relatórios de ações e parcerias ambientais. A Philip Morris, por exemplo, já patrocinou limpezas de praia como estratégia de redução do plástico no mar e de propaganda verde.
“É muito mais barato financiar ONGs que mobilizam a comunidade para tirar um passivo ambiental, que é de responsabilidade dessas empresas, do que mudar o seu sistema produtivo e investir em logística reversa”, advertiu Lara Iwanicki, da Oceana, em audiência pública sobre Poluição Plástica e Produtos Nocivos à Saúde na Câmara dos Deputados.
No que diz respeito à legislação, o Brasil terá, em breve, um decreto federal para combater a poluição por plástico, que institui o sistema de logística reversa desse material. Fazer logística reversa significa que a embalagem ou produto que fez o percurso de ida pela cadeia de produção, distribuição, venda e consumo fará o caminho inverso, ou seja, todos estes atores – do consumidor ao fabricante – se tornam responsáveis por encaminhar o resíduo ao descarte ambientalmente adequado. Isso já ocorre com embalagens de agrotóxicos, por exemplo, além de lâmpadas e pilhas, cujos pontos de coleta estão em supermercados e outros estabelecimentos.
Porém a mesma legislação não está em vias de ser aprovada para as bitucas de cigarro.
Para dar um destino adequado ao produto é necessário classificá-lo nas categorias de resíduos. O que faz necessário responder à pergunta: A bituca é um plástico de uso único, que pode ser objeto de logística reversa, ou é um resíduo perigoso, que deve receber tratamento químico em aterros especializados?
Cientistas, como Ítalo Castro, consideram o cigarro uma “bomba química” e, portanto, perigosa. No entanto, a bituca também contém componentes plásticos de uso único, como o acetato de celulose. Por enquanto, a bituca é nem-nem, considerada um rejeito qualquer que vai para o aterro sanitário comum se não se perder numa praia ou bueiro por aí.
“Uma regulação de logística reversa para as bitucas poderia ocorrer por meio de decreto ou por um acordo setorial, entre empresas. Se esse sistema fosse implementado, empresas e consumidores se tornam responsáveis”, explica Konstantin Gerber, advogado especializado em regulação sanitária.
Gerber destaca que não basta apenas regular o sistema em si, mas o motivo dele existir. “Da mesma forma que o consumidor tem direito à informação dos riscos do cigarro à saúde, não haveria também de ter direito à informação ambiental sobre o descarte adequado?”, questiona.
Parte da sociedade civil já entendeu que as bitucas são um problema ambiental e, logo, mais uma vez, são um problema de saúde, para além dos malefícios do cigarro [ao corpo humano] “A gente precisa lutar por um ar e água de qualidade”, reivindica Natalia Zafra Goettlicher, idealizadora do movimento Mundo Sem Bitucas.
A administradora de empresas percorre todos os dias a avenida Paulista em São Paulo para ir trabalhar. Foi olhando para o chão que a quantidade expressiva de bitucas lhe chamou a atenção.
“A indústria do tabaco lucra bastante com o cigarro, mas quem paga os custos somos nós, indivíduos fumantes e não fumantes. A indústria devia arcar com os custos não só de saúde pública, mas também com os de saúde ambiental.”