Fotos: Reprodução/Sampa+Rural

Agricultora de horta urbana é atacada por interesses privados na Zona Leste de São Paulo 

Empresário usou tratores para destruir plantação. Protocolo de regularização da área existe desde 2013 e projeto, hoje, é parceria da prefeitura com a Enel 

Uma história de violência agrária na capital paulista. Em Aricanduva, bairro da Zona Leste, Nilda Pereira da Silva Saragó, de 59 anos, viaja 55 anos no tempo e mais de 700 quilômetros para contá-la. Em 1969, a família dela deixou o oeste paranaense, saindo do pequeno município de Terra Rica – hoje, com menos de 15 mil habitantes. Destino: São Paulo. “Meu pai era tupinambá (povo que habitava o litoral de São Paulo até a Bahia) e a minha mãe guarani (presente em São Paulo, Mato Grosso do Sul e nos estados da Região Sul) e tinham uma pequena propriedade rural”, recorda. A família foi expulsa da região pelo avanço da colonização agrária. 

Obrigado a se deslocar, o pai de Nilda veio trabalhar como caminhoneiro e motorista de ônibus da Companhia Municipal de Transportes Coletivos (CMTC). “Ele vivia aqui, mas tinha muito contato com as tribos de Iguape e Peruíbe (litoral sul paulista). Vira e mexe, passava uns dias lá”, lembra. 

Em meio ao cimento da metrópole, ela cresceu com pouco contato com a terra. Casou. Teve dois filhos. Trabalhou em diversos empregos, às margens da grande cidade. Foi auxiliar em escola infantil, técnica de raio-x e cabeleireira. A relação com a terra se resumia a vasos de plantas no quintal de casa.

Há dez anos, era dona de um salão de beleza, quando decidiu se aposentar, em razão de uma tendinite. Passou o estabelecimento para um dos filhos. Já separada, a solidão em casa avançou em poucos meses. Veio a depressão. 

Nilda, que agora enfrenta outra ameaça de expulsão de território, encontrou saúde e propósito na reconexão com a terra. Foto: Leonardo Fuhrmann

A cura encontrada por ela foi se reconectar com a terra e passar a trabalhar no terreno debaixo da linha de transmissão de energia no Aricanduva. Meses depois, começou a plantar no lugar que hoje ocupa, também embaixo da linha.

Debaixo das linhas de energia, o terreno, atendendo as especificações de altura do plantio, mantém uma área de plantas baixas em meio a prédios, casas, lojas e indústrias. O “mato” descuidado passou a dar lugar à horta, com produtos orgânicos. 

Agora, Nilda convive com o risco de ser expulsa de outro território. Uma empresa que constrói um galpão ao lado da horta a que ela se dedica há anos usou tratores para matar parte significativa das plantas. Depois, pesados caminhões foram manobrados ali, para completar o serviço. 

A disputa dela é, principalmente, com o empresário e “vizinho” Rubens Cândido Nunes Jordão, dono da incorporadora de empreendimentos imobiliários Barão de Mauá Empreendimentos e Participações, e construtor do galpão. Num dos episódios do conflito, o irmão de Rubens, o agente policial Roberto Cândido Nunes Jordão, chegou a prender Nilda, usando um carro particular, levando-a para uma delegacia a mais de sete quilômetros da horta.

Ela afirma que sempre ocupou regularmente a área. Apresenta um documento de 2013, com um carimbo de protocolo da AES Eletropaulo, empresa que precedeu a Enel, como prova do que diz. A companhia foi privatizada em 1998 e o negócio foi assumido pela transnacional estadunidense AES, que passou a gestão, em 2018, para a corporação italiana Enel. 

Agricultora possui documento de 2013, que mostra situação regular. Foto: Nilda Saragó   

A horta recebe periodicamente a visita de técnicos da empresa. Eles conferem se não há nenhuma planta com mais de dois metros que possa atrapalhar a fiação ou o acesso às torres. Porém, a Enel afirma que recebeu a solicitação de utilização apenas em 2023 e que Nilda terá de fazer as adequações requeridas para “a total regularização”.

A prefeitura de São Paulo também acompanha a situação, mesmo não tendo ingerência sobre o terreno, por ser uma área pertencente à distribuidora de energia. A administração municipal admite, em nota, que “a horta é uma das selecionadas como ‘piloto’ de uma parceria entre a Secretaria Municipal de Desenvolvimento e Trabalho, responsável pelo programa Sampa+Rural, e a Enel São Paulo, firmada em julho de 2023, que prevê a regularização das hortas já existentes nesses espaços, além da criação de até 50 novas hortas de linhão até dezembro de 2024”. O documento afirma, ainda, que o programa atende, atualmente, 23 hortas no linhão.

Pelo programa municipal, a horta recebe atendimento de Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater) da equipe de agrônomos e agentes ambientais, e tem duas vagas de trabalho do Programa Operação Trabalho (POT) – Agricultura, que oferece sementes de adubação verde e fez uma análise de solo para oferecer, no futuro, insumos para a correção do terreno, já que um dos problemas enfrentados por Nilda é a compactação da terra, o que prejudica a produção.

Vulnerável 

No entanto, a participação no programa tem sido insuficiente para assegurar o trabalho de Nilda. No dia 29 de março do ano passado, ela chamou a Polícia Militar para informar sobre a invasão do terreno pela incorporadora Barão de Mauá Empreendimentos e Participações, quando parte expressiva das plantas da horta foi destruída.  

Era o plantio de comida que ocupava a terra antes do ataque da empresa. Fotos: Nilda Saragó    

A empresa contragolpeou com a realização, no dia seguinte, de um boletim de ocorrência, registrado no 10º DP, de outro bairro, o da Penha, a mais de sete quilômetros do terreno. No B.O., um funcionário da Barão de Mauá alega que o local havia recebido uma visita da Vigilância Sanitária e que os fiscais e funcionários entraram no terreno para ver se havia focos de insetos.

O funcionário disse que após encontrarem “mato alto” e “tambores de ferro e uma caixa d’água lotados de água e larvas de insetos”, os fiscais teriam autorizado a “limpeza” do terreno, o que acabou resultando na destruição de parte da horta.   

Nilda argumenta que o relato do representante da incorporadora é inconsistente. O “mato” é, na verdade, o cultivo da horta. E os tambores e caixas d’água são a criação do peixe barrigudinho, espécie predadora do mosquito da dengue. 

Em maio do ano passado, foi a vez de Nilda fazer um boletim de ocorrência, no 69º DP, em Teotônio Vilela, contra a Jordan’s Empreendimentos e Participações, outra empresa pertencente a Rubens Cândido Nunes Jordão. O registro é uma continuação do que ela havia declarado aos policiais militares, em março. A diferença é que, agora, o nome da empresa, assim como o do proprietário, causadores da destruição de parte da horta, constavam do documento policial.

O conflito voltou a ser caso de polícia no dia 19 de setembro. No boletim de ocorrência registrado no 30º DP, no Tatuapé, os irmãos Rubens e Roberto acusam Nilda de invadir o terreno da empresa, agredindo a ambos. Foi então que Roberto, o irmão policial, algemou a mulher e a levou, em carro particular, para a delegacia, onde a agricultora foi acusada de desacato e ameaça. 

A testemunha que aparece no registro é um funcionário da empresa de Rubens. Roberto afirmou que levou Nilda algemada para o Tatuapé porque era a delegacia “mais próxima de seu conhecimento”.

A Polícia Civil afirmou, em nota, que “a sede do 41° Distrito Policial, Vila Rica, está passando por reformas, encontrando-se em fase final. Em decorrência disso, o atendimento está sendo realizado temporariamente no prédio do 70° Distrito Policial, na Vila Ema, situado na rua Otávio Alves Dundas, n° 390, Sapopemba”.

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A agricultora afirma que foi agredida pelos irmãos e que os policiais da unidade em que o caso foi registrado se negaram a levá-la para fazer um exame de corpo de delito. A assessoria de comunicação da Secretaria de Segurança Pública não se manifestou sobre o tema, nem prestou esclarecimentos sobre onde Roberto está lotado, qual a função exata dele e se estava de folga no dia do desentendimento.

Dois dias depois, Nilda foi ao Hospital Municipal Dr. Benedicto Montenegro, no Jardim Iva, onde recebeu tratamento das lesões ocasionadas no dia em que foi detida. Apenas no dia seguinte, ela conseguiu ser encaminhada à Seccional Leste do Instituto Médico-Legal, onde passou por exames que constataram lesões leves na região do olho e da orelha direitos e confirmaram a agressão sofrida por instrumento contundente.

Rubens e Roberto não foram encontrados para comentar a sucessão de conflitos.

17 cabem em uma?

Rubens é dono de 29 empresas, segundo os registros da junta comercial de São Paulo. Oito delas abertas em 2023 e outras cinco em 2022, incluindo a Barão de Mauá. Entre os negócios estão dois postos de gasolina, um parque e uma locadora de máquinas. As outras empresas são de administração de bens ou de empreendimentos e participações. 

Chama a atenção que, do total, 17 estão sediadas no mesmo endereço, apenas uma sala comercial a pouco mais de um quilômetro do 30º DP, a do Tatuapé, a “de conhecimento” do irmão policial. Há outras empresas de Rubens no mesmo prédio e mais três em outro número, na mesma rua. Ele tem a esposa como sócia em 14 dessas empresas.

Enquanto a matemática de Rubens soa esquisita, Nilda, além do prejuízo com a destruição de grande parte da horta, responde a um processo por desacato. Ela trabalha para que a terra volte a produzir como antes. E espera que a história de despejo violento de 55 anos atrás não se repita agora, em um terreno urbano na maior cidade do Hemisfério Sul.

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