Consea emite recomendação ao governo e ao Congresso para que restrições sejam definidas de forma igual a todos os brasileiros
O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) publicou uma recomendação para que as empresas de apostas sejam regulamentadas e que não sejam impostas restrições que estigmatizam as famílias em vulnerabilidade social. As orientações foram publicadas após o grande debate sobre os gastos bilionários com apostas de pessoas beneficiárias do Programa Bolsa Família, apontados pelo Banco Central.
De outro lado, o governo reafirmou, na última semana, que deve restringir o uso dos cartões de beneficiários para apostas. Segundo o Ministério de Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), a medida está em fase de testes.
De acordo com a Nota Técnica publicada pelo Banco Central (BC) no final de setembro, cerca de 5 milhões de pessoas beneficiárias do Bolsa Família teriam transferido aproximadamente R$ 3 bilhões, via pix, para empresas de apostas, conhecidas como bets. A publicação do BC é uma análise ainda preliminar sobre o mercado de apostas online no Brasil e o perfil dos apostadores.
Com a grande repercussão desses dados, o governo federal acelerou o processo de regulamentação das bets. Um dos pontos de preocupação é impedir que a renda transferida aos beneficiários do Bolsa Família seja utilizada para o pagamento de apostas.
O presidente Lula declarou, em reunião com ministros no dia 03 de outubro, que vai exigir que essas empresas arquem com o tratamento de viciados em jogos e apostas. O governo também tem traçado planos para evitar o superendividamento, como, por exemplo, a proibição do pagamento de apostas com cartões de crédito.
Além disso, o MDS criou, no dia 27 de setembro, um Grupo de Trabalho (GT) com a Rede Federal de Fiscalização do Bolsa Família e Cadastro Único, cujo objetivo é apresentar uma proposta sobre uso de recursos do cartão Bolsa Família com apostas online. O MDS informou que trabalha de forma integrada com Ministério da Fazenda, Ministério da Saúde, Advocacia-Geral da União e Casa Civil.
“O objetivo é proteger os beneficiários e garantir que o dinheiro seja usado para necessidades da população, como alimentação”, destacou o ministro Wellington Dias, no começo do mês, após reunião com Lula. Ele argumentou que o objetivo é proteger os direitos dos beneficiários.
A volta do debate sobre tutela
A divulgação da nota técnica do Banco Central reacendeu um debate ocorrido quando da criação do programa, há duas décadas, sobre a necessidade de controle pelo Estado dos gastos de valores recebidos por beneficiários do Bolsa Família.
“Muitas pessoas indagavam se o benefício seria utilizado para a compra de alimentos ou de bebidas alcoólicas, como a cachaça, por exemplo. Com a questão das bets, eu vejo se repetir o mesmo discurso discriminatório”, afirma Francisco Menezes, ex-presidente do Consea e analista de políticas da ActionAid, organização internacional de combate à pobreza.
“Em uma pesquisa nacional sobre o uso do benefício foi constatado que a maior parte era destinada para a compra de comida, transporte e material escolar, desmentindo essas falas preconceituosas”, aponta Francisco. Ele também chama atenção para o fato de o perfil do Bolsa Família ser majoritariamente de mulheres negras, que são o grupo populacional mais pobre do país, e também o mais discriminado por conta de raça/cor e gênero.
Na recomendação emitida na última semana, o Consea pede que o mercado das apostas online seja regulamentado de forma igual para todos os brasileiros e que não sejam impostas sanções que possam estigmatizar as famílias em situação de vulnerabilidade social. O documento foi encaminhado à Casa Civil da Presidência da República, ao Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, ao Ministério da Saúde, ao Ministério da Fazenda e ao Congresso Nacional.
No documento, que tem várias considerações, o Consea fez três sugestões. A primeira é que a implementação da regulação do mercado de apostas online seja realizada de maneira participativa e efetiva, sem que segmentos específicos, tais como os que vivem em situação de vulnerabilidade social, sejam estigmatizados. E que seja dada atenção especial para as normas de publicidade e propaganda por conta do risco potencial de geração de vícios em apostas que afetam a saúde mental e podem agravar ainda mais a insegurança alimentar e a fome.
A recomendação seguinte pede que “não haja vedações específicas para famílias em situação de vulnerabilidade social, titulares de programas de transferência de renda e outras políticas de proteção e seguridade social, ou seja, que as restrições impostas para evitar a drenagem da renda das famílias para as apostas online e jogos de azar se aplique a toda a população brasileira”.
E a terceira recomendação é de que sejam realizadas campanhas educativas para que a população possa ser informada sobre os riscos das apostas online, com destaque especial para a proteção de grupos vulneráveis, tais como crianças e adolescentes. Além de informar sobre os mecanismos de orientação e assistência para as pessoas que já estão viciadas em jogos e em situação de superendividamento financeiro.
Francisco Menezes entende que os dados sobre apostas levantam uma série de considerações.
A primeira é de que as pessoas beneficiárias do Bolsa Família estão entre os grupos da população dos mais pobres até os extremamente pobres, e muitas dessas famílias possuem outras fontes de renda além do benefício. Outra questão é que, do universo de 20 milhões de pessoas que fazem apostas online, a grande maioria está na faixa dos 20 a 30 anos e o relatório do Banco Central apresentou um fato alarmante sem esmiuçar suficientemente o perfil de apostadores.
Sobre o posicionamento do ministro da Fazenda, Fernando Hadadd de proibir o uso de cartões para o pagamento de apostas, ele concorda, pois essa medida também impede o superendividamento da população. “Na época da pandemia, em que o governo anterior adotou o auxílio emergencial, muitas famílias fizeram empréstimos consignados e também ficaram superendividadas.”
Um outro problema apontado por ele é o alto investimento em patrocínio dessas empresas de apostas em times de futebol, atletas de diversas modalidades esportivas, celebridades e veículos de comunicação. “A grande mídia pode ter dificuldade em questionar essas empresas para não abrir mão dos patrocinadores”, concluiu Francisco.
A regulamentação das bets
Liberadas em 2018 pelo governo de Michel Temer, as empresas de apostas online tiveram crescimento expressivo nos últimos anos. A quantidade de pessoas viciadas nesses jogos também cresceu, o que tem gerado um grande endividamento dessa população.
Ano passado foi instituída a Lei 14790/2023, que regulamenta o funcionamento das empresas de apostas e estabelece questões importantes para a população, como políticas corporativas obrigatórias, que vão desde o atendimento aos apostadores, até a prevenção de ludopatia (vício em jogos), fraudes, lavagem de dinheiro, financiamento do terrorismo e armas de destruição em massa.
Outro ponto importante é o valor máximo estipulado de R$ 30 milhões para concessão do título de outorga dessas empresas, considerando o uso de três marcas comerciais. E aregulação da publicidade e propaganda, com a proibição do marketing dirigido a menores de idade e de que as peças de divulgação contenham afirmações de personalidades conhecidas sugerindo que o jogo contribui para o êxito pessoal ou social.
Tramitam no Supremo Tribunal Federal (STF) duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) contra a Lei 14790/2023, que regulamenta as Bets. A primeira é a ADI 7721, protocolada pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) em setembro. Já a ADI 7723 foi registrada pelo partido Solidariedade no final do mesmo mês.
O Ministro Luiz Fux, relator das duas ADIs, convocou uma Audiência Pública para discutir o Impacto das apostas online (bets) no Brasil, justificando a necessidade da troca de informações sobre os assuntos que envolvem a proposição. “Diante da complexidade e da natureza interdisciplinar do tema, que envolve aspectos de neurociência, econômicos e sociais, considera-se valiosa e necessária a realização de Audiência Pública na presente ação direta, de sorte que esta Corte possa ser municiada de informações imprescindíveis para o deslinde do feito, bem como para que o futuro pronunciamento judicial se revista de maior legitimidade democrática”, explicou Fux.
A audiência pública sobre o impacto das apostas online (bets) será realizada no dia 11 de novembro.