Títulos e fundos do agro injetaram R$ 11,5 bilhões desde 2019; recurso é usado para pagar fornecedores com histórico de desmatamento
Esta reportagem foi produzida em parceria com a Rainforest Investigations Network do Pulitzer Center.
Pela PA-279, menos de 100 quilômetros separam a fazenda Primavera, em São Félix do Xingu, da unidade frigorífica da JBS mais próxima, a unidade Tucumã, no leste do Pará. O percurso foi feito por um caminhão de gado pronto para o abate em 2022, mesmo ano em que o frigorífico foi desativado e período de tempo em que 93 hectares de floresta dentro da fazenda vieram abaixo.
Em julho de 2021, a área de propriedade de Rafael Soares Campos ainda tinha cobertura florestal. Dois anos depois, uma clareira foi aberta no lado oeste da fazenda. O Ibama embargou parte da área, um total de 72,8 hectares, pela “constatação de destruição de floresta nativa”. O proprietário também foi autuado por desmatamento e multado em R$ 415 mil. O proprietário não possui documento de titulação da área, que está sobreposta a terras da União.
A conexão entre o gado ilegal e a JBS é resultado da análise de Guias de Trânsito Animal (GTAs) feita pelo Centro para Análise de Crimes Climáticos (CCCA, na sigla em inglês), uma organização sem fins lucrativos projetada para apoiar e ampliar a ação climática em todo o mundo.
Desmatamento na fazenda Primavera ocorreu entre 2021 e 2022; período é o mesmo de recebimento de gado de outras fazendas para engorda na Primavera e de fornecimento para a JBS (Fonte: Sicar e EO Browser).
A análise do CCCA foi feita a pedido do Joio, que investiga o fluxo de dinheiro do mercado de capitais para a compra de gado pela corporação. Segundo levantamento inédito de documentos financeiros de agosto deste ano, a JBS teve acesso, entre 2019 e 2024, a R$ 11,5 bilhões por meio de Certificados de Recebíveis do Agronegócio (CRAs), títulos de dívida emitidos pelas securitizadoras Virgo e Opea e oferecidos a investidores diretamente ou por meio do Fiagro, o Fundo de Investimento das Cadeias Produtivas Agroindustriais.
A fazenda Primavera não é fornecedora recorrente da JBS. Mas outras propriedades que também possuem histórico de desmatamento na região são clientes frequentes de outras unidades frigoríficas da empresa, como é o caso da fazenda Rio da Paz.
Entre 2018 e 2023, a Rio da Paz enviou 13.139 cabeças de gado para a unidade da JBS em Santana do Araguaia, uma média de 2.189 animais por ano. A propriedade pertence à Brusqui Agropecuária, empresa da pecuarista Rosana Sorge Xavier que acumula R$ 21,2 milhões em multas do Ibama em São Félix do Xingu e em outra área da Amazônia Legal, em Vila Bela da Santíssima Trindade, no Mato Grosso.
Em nota, a JBS informou que as duas fazendas citadas tiveram o fornecimento bloqueado pela empresa e que possui uma política que “proíbe a compra de gado de fazendas que apresentem desmatamento ilegal”. A empresa ainda declarou que “na época das compras, as duas propriedades estavam em conformidade com a política de compra responsável da empresa”.
Nos termos de securitização, documento obrigatório para emitir títulos de dívida no mercado de capitais, a JBS declara que utiliza os recursos bilionários para compra de gado e subprodutos de suas indústrias, sem especificar quais fornecedores são pagos por essa fonte.
“Securitizar” significa transformar uma dívida em títulos negociáveis no mercado de capitais. Em geral, os títulos de dívida têm como garantia os créditos que a empresa emissora tem a receber, que no caso da JBS podem ser os valores de contratos com grandes redes de supermercado para fornecimento de carne embalada.
Pessoas físicas e empresas brasileiras e estrangeiras podem comprar cotas de Fiagro a partir de R$9, contribuindo para atividades que causam desmatamento na Amazônia. Parte desses títulos serviu de ativos para dois Fiagro. Entre eles está o CRAA11, da Sparta Fundos de Investimentos, que figura na lista dos mais rentáveis na Bolsa de Valores do Brasil (B3) em julho deste ano.
Os juros pagos pela JBS para os títulos são revertidos em dividendos aos investidores. No último mês, investidores do CRAA11 receberam R$ 1,59 por cota que possuem do fundo. A Sparta teve sucesso no lançamento deste Fiagro, tendo anunciado a terceira oferta de cotas em junho. Esta última captação de recursos rendeu ao fundo mais R$ 187,5 milhões para investir em empresas do agro, como a JBS.
O Fiagro do Banco do Brasil, o BBGO11, também já aportou suas captações em um ativo do frigorífico. O fundo adquiriu um CRA da empresa no valor inicial de R$ 148,8 milhões, vencido recentemente.
Os CRAs, principais ativos do Fiagro, têm prazo de vencimento que variam, em geral, de cinco a dez anos para o devedor. A JBS, no entanto, tem títulos que dobram o prazo de vencimento praticado pelo mercado: a empresa tem títulos a vencer até 2044. Os juros da operação são revertidos em remuneração para investidores destes produtos financeiros.
Perguntamos às empresas de securitização se possuem critérios ambientais para definir ou filtrar clientes. A Opea respondeu em nota que possui um processo de “auditoria legal” para analisar dados de todas as empresas, incluindo informações ambientais, mas que, no caso da JBS, o assessor legal não fez observações que impedissem a estruturação do título pela empresa. A Virgo não retornou até a publicação da reportagem.
O longo prazo da dívida é vantajoso para os negócios, mas não mais que a liberdade de comprar gado de qualquer fornecedor, incluindo desmatadores, já que o mercado de capitais não obriga a empresa a descrever a origem dos fornecedores de boi gordo que são pagos com esses recursos.
Há casos de emissões em que a JBS declara destinar os recursos para suas próprias subsidiárias, como a JBS Confinamento LTDA, mas a maior parte das emissões não possui descrição de produtores rurais pagos com esses recursos.
Com dinheiro dos CRAs, a única exigência é que a empresa devedora envie relatórios semestrais com dados de aplicação dos recursos ao agente fiduciário, um agente privado que declara não ter conflito de interesses no exercício da função e em relação aos outros participantes da emissão. Os documentos tratados entre empresa e agente fiduciário são sigilosos e não há previsão legal de auditoria ambiental destes registros e documentos.
Ou seja, ao conseguir crédito por meio do mercado de capitais, a JBS passa longe do filtro de bancos comerciais que, pela lei, deveriam barrar desmatadores da cadeia de fornecedores.
Do banco comercial para o mercado de capitais
Uma empresa da envergadura da JBS, com capital aberto na B3 e com planos de listagem na Bolsa de Valores de Nova York (NYSE), ainda se interessa, e muito, pelo mercado de securitização brasileiro, que emite os CRAs.
Outras empresas do grupo, como a Flora, fabricante de produtos de limpeza e cosméticos das marcas Minuano, Francis e Neutrox, lançou dois CRAs no valor de R$ 150 milhões para a compra de sebo bovino. Já a Seara emitiu, neste mês, mais um CRA no valor inicial de R$ 1,5 bilhão.
Em breve, o CRA da Seara pode figurar na carteira de ativos de um Fiagro, que receberá esforços robustos de grandes bancos para distribuí-lo entre investidores, como fez a XP Investimentos com as operações da Sparta e do Banco do Brasil.
A direção financeira da JBS tem se voltado para o mercado de securitização nos últimos anos. Em 2020, a empresa descrevia, pela primeira vez, a emissão de CRAs em suas demonstrações financeiras. A empresa detinha 4% de sua dívida vinculada a este produto financeiro, enquanto empréstimos feitos por bancos tradicionais respondiam por 13%. Outros títulos e empréstimos, com capital em reais ou dolarizados, totalizavam 83% do crédito recebido pela corporação.
Em 2024, a fonte de crédito da gigante da carne se inverteu. As dívidas por CRAs subiram para 11%, contrastando com a queda dos empréstimos de bancos tradicionais para 3%. Outros títulos, os bonds, que têm estruturas parecidas com o CRA por estarem vinculados à securitização de dívidas, ocupam a maior fatia do crédito adquirido pela JBS, 86%.
Não é qualquer empresa que tem acesso ao mercado de dívidas por meio de CRAs. Em geral, pequenas empresas ou produtores do agro ficam reféns dos empréstimos bancários pelo alto custo de emissão de títulos, o que faz do mercado de securitização uma opção de financiamento para produtores e empresas rurais de médio e grande porte.
Segundo simulação do Manual Operacional de Títulos do Agronegócio do Sistema Ocepar, uma emissão hipotética de R$ 119 milhões teria, só de gastos fixos como taxas e despesas iniciais, um custo total de R$ 2,6 milhões. Ao ano, e somadas as despesas mensais para manter a estruturação da dívida até o seu vencimento, os custos de um CRA podem corresponder a cerca de 20% do valor da emissão, ou seja, do recurso disponível ao tomador do crédito.
Mesmo assim, grandes empresas não deixam de marcar presença no mercado de securitização, afirma Fernanda Mello, CEO da Vert Securitizadora.
“Se você é o diretor financeiro de uma empresa, você não aposta todos os ovos numa cesta só. Só ter dívidas no mercado de capitais e não ter histórico com bancos; ou só ficar na mão dos bancos, porque assim eles vão te cobrar mais. Naturalmente, uma empresa que tem acesso ao mercado de capitais vai ter melhores condições nos bancos, porque tem um competidor a mais, tem mais gente que está disposto a emprestar para essa empresa”, explica Mello.
Gado ilegal mais vantagem financeira
Segundo a própria JBS, a empresa emitiu o CRA com o maior prazo na história do mercado de capitais brasileiro. Lançado ao mercado em maio deste ano, o CRA CORP JBS VI, estruturado pela Virgo Securitizadora, depositou R$1,8 bilhão na conta da JBS S.A., com parcelas a vencer só em maio de 2044.
A emissão, com prazo de vencimento para daqui a 20 anos, pode contribuir significativamente com o desmatamento da Amazônia, já que as zonas potenciais de compra de gado dos 24 frigoríficos da empresa incidem sobre 72% da região da Amazônia Legal, segundo estudo do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon).
Na declaração de registro da terceira tentativa da empresa de se listar na Bolsa de Valores de Nova York , em março deste ano, a JBS cita os CRAs como instrumentos financeiros de capital e se posiciona como uma empresa que busca dívidas cada vez mais estendidas.
“Nossa estratégia financeira tem sido e será, nos próximos anos, estender o vencimento médio de nosso endividamento pendente”, diz o documento, o que inclui a “emissão de títulos de dívida de prazo mais longo”, como os CRAs de duas décadas de vencimento.
Segundo o consultor de finanças do agronegócio Ademiro Vian, grandes empresas fazem emissões de CRAs não só para levantar dinheiro novo e aumentar o fluxo de caixa, mas também para remodelar dívidas de longo prazo.
“A empresa tem recebíveis [créditos a receber], precisa de dinheiro, o balanço no banco já está todo ferrado, o banco não vai dar crédito ou quer muitas garantias e a empresa não quer dar essas garantias, quer deixá-las livres. Então ela emite um CRA, onde pode dar outras garantias, oferecer aquele recebível ou o fluxo de caixa”, explica Vian.
Outra vantagem financeira importante das emissões de CRAs são os benefícios fiscais. CRA e Fiagro são isentos de imposto de renda para o investidor, o que impacta diretamente no bolso do tomador, que pagará menores taxas de juros pelos empréstimos.
Falta de fiscalização
As declarações da JBS afirmando respeitar a legislação socioambiental brasileira estão em todos os documentos financeiros, seja na emissão de CRAs, incorporados em Fiagros da Bolsa de Valores, seja nas propostas de listagem em NYSE.
Nos termos de securitização de CRAs, é obrigação da devedora, isto é, da JBS, respeitar “a Legislação Socioambiental, de modo que a utilização dos valores objeto dos CRA não implicará na violação da Legislação Socioambiental”, com punição de vencimento antecipado da dívida em caso de violação.
No entanto, nenhuma fiscalização ambiental é feita nos documentos enviados periodicamente pelos emissores aos agentes fiduciários. A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) fiscaliza algumas operações por amostragem, pela perspectiva financeira, mas não climática.
Já na declaração de registro em Nova York, a JBS declarou à comissão de valores mobiliários norte-americana (SEC, na sigla em inglês) que possui um sistema de monitoramento próprio para rastrear fornecedores com imagens de satélite e dados georreferenciados de fazendas para não comprar gado de áreas com embargos do Ibama, desmatamento, terras indígenas, unidades de conservação ou de fornecedores cujos nomes constem na lista do trabalho escravo do Ministério do Trabalho. Segundo organizações da sociedade civil, os compromissos da empresa não são postos em prática.
“A JBS é uma empresa que parece não ter nenhuma intenção de melhorar. Faz uma promessa, depois não cumpre, diz que vai fazer rastreamento e não faz, que vai investir em tecnologias para reduzir as emissões de metano, mas não investe”, declara Merel van der Mark, coordenadora da Coalizão Florestas e Finanças, organização que acompanha a listagem da JBS no mercado dos Estados Unidos. “É uma empresa que mente”, completa.
Várias organizações pressionaram a comissão de valores mobiliários norte-americana para checar as declarações de políticas socioambientais da JBS, entre elas a Mighty Earth, uma organização de defesa da vida no planeta.
“Em última análise, um lugar na Bolsa de Valores de Nova York permite que a JBS tenha uma enorme vantagem em termos de investimento disponível. E, obviamente, com esse investimento, a empresa deve aumentar ainda mais suas operações”, alerta Gemma Hoskins, diretora sênior da Mighty Earth no Reino Unido.
Risco climático
Apesar de não descrever nos documentos financeiros de CRAs a destinação do recurso das emissões, parte do dinheiro para compra de gado da JBS foi utilizada em transações com fazendas irregulares.
Do conjunto de 1.325 propriedades que venderam gado para a JBS entre 2022 e 2024, rastreado pelo CCCA, 18 tinham o Cadastro Ambiental Rural (CAR) cancelado, o que significa que parte ou o total das informações declaradas por estes proprietários são “falsas, enganosas ou omissas”, ou que não houve cumprimento de ações no prazo determinado por notificações de órgãos fiscalizadores, segundo o protocolo de análise do Sistema Nacional do CAR (Sicar).
Ao lado de outras empresas do setor, como a concorrente americana Tyson Foods e as brasileiras Marfrig e Minerva, a JBS é a única com taxa de risco ESG severo na avaliação da Sustainalytics, indicando que a empresa tem a pior nota de comprometimento com ações ambientais, sociais e de governança.
O risco ambiental e climático que a empresa oferece não é considerado pelo mercado de capitais brasileiro, e pode ser potencializado caso a empresa consiga sua tão sonhada listagem na bolsa de Nova York. Esse aceite significaria a diminuição da percepção de risco da empresa para investidores, explica Paulo Barreto, pesquisador associado do Imazon.
“Além de ter acesso ao capital, estar listado aumenta o valor da empresa. Estar na bolsa é como um selo que atesta que esta empresa atende padrões rigorosos contábeis, de gestão, governança, controle de risco”, afirma Barreto.