Especialistas relatam que pais e usuários jovens negligenciam os riscos à saúde causados pelos cigarros eletrônicos; dados oficiais apontam que 290 mil pessoas entre 18 e 24 anos usam dispositivos
A estudante Ana Flávia*, 18 anos, começou a fumar cigarros eletrônicos há cerca de dois anos, ainda menor de idade. Na época, ela via pessoas usando os dispositivos em festas e decidiu experimentar. Hoje, a jovem os usa diariamente. “Eu acho horrível esse vício que tenho pelo cigarro eletrônico, mas não consigo abandonar”, lamenta. Ela quer parar porque sente que seu fôlego piorou, o que atrapalha atividades físicas.
“Acaba que, quando fico ansiosa ou me acontece qualquer coisa que não sei lidar, recorro a ele”, diz a estudante, que está no último ano do ensino médio de uma escola particular da região metropolitana de Porto Alegre. Ainda que queira parar, ela normalmente volta ao vape em época de prova ou quando há brigas – momentos em que a ansiedade piora, explica. O Joio está usando um nome fictício* a pedido dela.
Ana Flávia faz parte de um perfil de jovem – mais classe média, escolarizado e próximo das capitais – que normalmente não se tornaria dependente da nicotina por meio de cigarros convencionais, mas se viciou em vapes conforme o uso dos dispositivos se espalhou pelo país. Dados de pesquisas como o Vigitel, do Ministério da Saúde, indicam que o consumo é maior na faixa mais escolarizada entre os jovens adultos de 18 a 24 anos, ficando na casa dos 6%, contra 2% da população em geral. Em 2023, o levantamento indicava que 290 mil pessoas desta faixa etária usavam os dispositivos.
“Eles fumam [vapes] quando estão preocupados, tem prova ou há briga com namorada, e há uma estreita relação com ansiedade, depressão e morbidades relacionadas à saúde mental”, explica a psicóloga Larisse Cavalcanti, diretora de Atenção à Saúde do Estudante da Secretaria de Educação do Distrito Federal. A pasta começou a discutir cigarros eletrônicos em salas de aula neste ano, por meio do programa federal Saúde nas Escolas, que tem entre seus objetivos o combate ao tabagismo.
Ana Flávia, por exemplo, já experimentou o fumo comum e não gostou. No entanto, zera um pod de 8 mil tragadas em três semanas, o que na média equivale a cerca de 1,4 maços por dia só em nicotina. Especialistas entrevistados pela reportagem, contudo, ressaltam que a epidemia foi menos pior por aqui do que em países que não proibiram esses dispositivos, como Canadá e Estados Unidos.
De acordo com Cavalcanti, só em 2024, o projeto já passou por 15 escolas públicas e atingiu mais de 3 mil alunos. Destes, dez acabaram encaminhados ao Sistema Único de Saúde (SUS) para tratar tabagismo em decorrência do cigarro eletrônico. “A vivência na escola tá complicada para o diretor porque ele chama os pais do aluno que fuma, aí eles não aparecem. E, quando aparecem, banalizam porque não acreditam no malefício à saúde do filho”, relata.
Negacionismo tabagista persiste
Segundo os especialistas consultados pelo Joio, a falta de informação e a baixa percepção de risco, inclusive entre pais e docentes, é um desafio. “Já vi caso de uma criança de 12 anos que o pai, um professor, comprava vape para ela achando que era vapor d’água, como um brinquedo, pirulito”, conta a médica do trabalho Cristiane Tourinho, coordenadora do Ambulatório de Cessação de Tabagismo da Pneumologia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Ela também relata já ter atendido um adolescente que disse que seu pai achava “melhor ele fumar cigarro do que maconha”, por exemplo.
No consultório, Tourinho reparou que o cigarro eletrônico vicia muito mais rápido, mas que nem famílias ou usuários têm uma percepção adequada do risco do produto. “Hoje tenho paciente que começou a usar há um ano na festinha e agora dorme com vape debaixo do travesseiro, leva pra escola, trabalho, ou fuma escondido no banheiro”, afirma. Além do ambulatório, a médica também coordena o projeto de Educação Antitabaco (EAT) da Uerj, que leva estudantes de Medicina para falarem dos riscos dos DEFs em colégios. Desde 2022, já foram cerca de 15 sessões de conversas com alunos.
Pela experiência em sala de aula, é comum que os estudantes duvidem dos malefícios dos cigarros eletrônicos ou mesmo que eles sejam viciantes. Eles trazem exemplos da própria vivência: o colega que “só fuma em festa e não ficou viciado” ou relatos na linha de “li por aí que vape é uma alternativa para parar de fumar”.
“Eles tentam argumentar em cima, tanto como uma estratégia de autoconvencimento de que não é tão ruim, como também por não querer acreditar que o vape é como um cigarro”, relata a estudante de Medicina Amanda Sampaio, que participa do EAT com Tourinho e está no quinto ano da graduação na Uerj.
O lobby da indústria do tabaco, que propagandeia dispositivos eletrônicos para fumar como produtos “de risco reduzido”, e a enorme quantidade de sabores e cores contribuem para a falsa impressão. Além disso, muitos estudantes costumam comprar, misturar e experimentar líquidos de pods diferentes, relataram especialistas à reportagem. “A apresentação do cigarro eletrônico é suave, tranquila, o aroma é interessante e é difícil para o jovem entender que algo tão atrativo possa ser hostil à saúde dele”, diz Cavalcanti.
No caso de Ana Flávia, ela estima que a “maioria” de seus colegas do terceiro ano fazem uso diário de cigarros eletrônicos, muitos menores de idade, e se preocupa que “muitos não vêem problema, principalmente meninos (que usam)”. “De todas as pessoas do meu círculo que fumam, as meninas são as que mais pretendem parar e usam menos”, diz. “A escola está ciente, tenta minimizar e se descobrem alguém fumando chamam os pais, mas nunca conversaram conosco sobre os riscos”, conta a estudante.
Enquanto isso, relatos de mortes de jovens atribuídas ao cigarro eletrônico se avolumam nas redes sociais. Em outubro último, a designer Lia Araújo, esposa do ex-lateral direito do São Paulo Serginho, revelou que o vape foi uma das causas do falecimento de seu filho, Diego, que tinha 20 anos. O jovem contraiu uma infecção bacteriana generalizada devido a um furúnculo no ombro, que o levou a uma internação por sepse. Ao longo da recuperação, o jovem sofreu uma embolia pulmonar e morreu. Segundo a mãe, o pulmão do jovem não resistiu devido ao desgaste causado pelo vape.
Ao Joio, a Federação Nacional das Escolas Particulares (Fenep), que representa colégios como o de Ana Flávia, disse que “orienta as escolas a adotarem políticas claras de prevenção e combate ao uso de cigarros eletrônicos, além de promoverem campanhas educativas, envolvendo toda a comunidade escolar, incluindo pais, professores e alunos, para que todos compreendam os impactos negativos deste hábito”. Mas não citou nenhum exemplo concreto.
Uso em queda
Hoje, faltam números oficiais recentes sobre o uso de dispositivos eletrônicos para fumar entre estudantes brasileiros, já que a última Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE) é de 2019. No entanto, dados oficiais do Vigitel e do Covitel indicam que, desde então, o uso na faixa adulta mais jovem tem caído ligeiramente, ao contrário do que pesquisas do Ipec endossadas pela indústria do tabaco apontaram.
Em sua última edição, o PeNSE mostrou que quase 17% dos estudantes brasileiros entre 13 e 17 anos haviam usado cigarros eletrônicos alguma vez na vida, com índices mais altos justamente no Distrito Federal (30,8%), onde atua Cavalcanti, e no Paraná (27,6%).
De lá para cá, dados do Vigitel, do Ministério da Saúde, indicaram que o índice de jovens adultos entre 18 e 24 anos que fumam cigarros eletrônicos diariamente ou ocasionalmente vem caindo. Eles eram 364 mil em 2019; 341 mil em 2020; 309 mil em 2021; e passaram a 290 mil em 2023.
De acordo com o epidemiologista André Szklo, pesquisador do Instituto Nacional do Câncer (Inca) que fez os cálculos para o Joio baseando-se nos dados do Vigitel, essa queda se explica porque o adolescente que experimenta o cigarro eletrônico pode estar migrando mais tarde para o comum, que é um produto mais acessível. “O dispositivo eletrônico não consegue competir com o cigarro convencional absurdamente barato que temos”, explica Szklo. Hoje em dia, por exemplo, fumar está mais em conta do que era 2012.
Para fins de comparação, o preço mínimo do maço é R$ 6,50, enquanto o vape predileto de Ana Flávia custa em média R$ 100. A jovem, que usa a mesada para comprar os dispositivos, compra seus vapes “pelas lojas que tem no Instagram ou por conhecidos da cidade que vendem”. “Uma parcela dos usuários que estava nos dispositivos percebeu que pode manter a dependência da nicotina do jeito tradicional”, avalia Szklo. “É uma explicação econômica”, diz.
Em meio a esse cenário, os próprios usuários jovens também têm se mobilizado contra cigarros eletrônicos nas redes sociais. De uns tempos para cá, influencers têm viralizado no TikTok ao descartar seus pods com o objetivo de parar de fumar. Um vídeo de abril de uma jovem jogando seus vapes na água, por exemplo, atingiu 21 milhões de visualizações na rede social. Outro post de julho de mais um tiktoker fazendo o mesmo também viralizou, atingindo 6,4 milhões de visualizações.
A ação emula a campanha #DitchTheJuul (algo como #DescarteOJuul), que se popularizou no TikTok dos EUA por volta de 2020, quando adolescentes norte-americanos dependentes de vapes começaram a jogar seus pods da Juul na água. Por lá, a ação teve apoio de ONGs norte-americanas. Por aqui, a reportagem não identificou indícios de nenhuma ação coordenada nos posts revisados nas redes.
Ao Joio, o Ministério da Saúde disse que novos resultados do PeNSE serão divulgados em 2025. “A pasta considera extremamente importante falar sobre tabagismo no ambiente escolar, uma vez que tem-se observado as inúmeras estratégias dos fabricantes de produtos derivados de tabaco e nicotina para aliciar adolescentes e jovens com o intuito de aumentar o seu mercado consumidor”, disse em nota o ministério.
Leia a íntegra das notas do Ministério da Saúde e da Federação Nacional das Escolas Particulares (FENEP) enviadas ao Joio:
Ministério da Saúde
O Ministério da Saúde, em parceria com o Ministério da Educação, elaborou o Programa Saúde na Escola, que aborda 14 eixos temáticos com objetivo de desenvolver a cidadania, buscar melhorar a saúde dos educandos e reduzir a frequência por problemas de saúde. A prevenção ao uso de álcool, tabaco e outras drogas é um dos eixos temáticos do programa, que alcançou, no ciclo 2023/2024, recorde histórico de adesões com 99% dos municípios brasileiros pactuados, impactando mais de 25 milhões de estudantes da educação básica. Os níveis de ensino contemplados pelo Programa vão desde a educação infantil (creche e pré-escola), passando pelo Ensino Fundamental e Ensino Médio, até a Educação de Jovens e Adultos (EJA).
Cabe destacar que o Ministério da Saúde desenvolveu uma campanha de combate ao tabaco, focada principalmente na questão de cigarros eletrônicos, nos meses de Maio Junho de 2024. Também sempre são realizadas postagens em datas efemérides sobre as temáticas (como as datas Dia Mundial Sem Tabaco, Dia Nacional de Combate ao Fumo, Dia Nacional de Combate às Drogas e ao Alcoolismo, dentre outras). Concomitantemente a demais assuntos também são realizadas postagens de combate ao tabagismo, sempre associado a publicações orgânicas de temas como: saúde bucal, prevenção ao câncer, combate a drogas, dentre outros.
A pasta considera extremamente importante falar sobre tabagismo no ambiente escolar, uma vez que tem-se observado as inúmeras estratégias dos fabricantes de produtos derivados de tabaco e nicotina para aliciar adolescentes e jovens com o intuito de aumentar o seu mercado consumidor. Logo, torna-se urgente e necessário desenvolver ações de promoção da saúde e de prevenção ao uso de Tabaco e Dispositivos Eletrônicos para Fumar (DEF) nas escolas, possibilitando o conhecimento de forma segura e responsável. Pois sabe-se que a escola é um espaço de diálogo, acolhimento e orientação para se promover saúde e acesso à direitos. Uma nova edição da Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE) está sendo feita este ano e deve fornecer novos dados disponíveis em 2025.
Federação Nacional das Escolas Particulares (FENEP)
A Federação Nacional das Escolas Particulares (FENEP) manifesta sua preocupação com o uso crescente de cigarros eletrônicos, também conhecidos como “vape” ou “viper”, entre jovens e adolescentes nas instituições de ensino. Esse comportamento representa uma ameaça significativa à saúde dos alunos e ao ambiente educacional seguro e saudável que todas as escolas buscam proporcionar.
A FENEP apoia e incentiva práticas educativas e preventivas que conscientizem os alunos sobre os riscos associados ao uso de cigarros eletrônicos. Pesquisas apontam que esses dispositivos podem conter substâncias nocivas à saúde e levam a um risco elevado de dependência, comprometendo o desenvolvimento físico e psicológico dos jovens.
Sendo assim, a Federação orienta as escolas a adotarem políticas claras de prevenção e combate ao uso de cigarros eletrônicos, além de promoverem campanhas educativas, envolvendo toda a comunidade escolar, incluindo pais, professores e alunos, para que todos compreendam os impactos negativos desse hábito, sempre respeitando a autonomia administrativa das instituições particulares de ensino