Ilustração: Ronald Ferro

E esse milhinho assado? Tem sem ser transgênico?

Entre riscos à saúde e à biodiversidade, pequenos agricultores resistem ao domínio do milho modificado com o cultivo de sementes crioulas e práticas agroecológicas

Dente de Burro, Sabugo Fino, Sol da Manhã, Batité, Landrês, Cateto, Cateto Kiriri, Eldorado, Branco de Angola, Catingueiro, Branco do Egito, Pontinha, Jaboatão e Roxo Peruano. Você já ouviu esses nomes antes? São alguns nomes de milhos orgânicos, de diferentes cores, preservados e produzidos por organizações brasileiras hoje.

Cada um deles é fruto de um processo que envolve agroecologia, mudança de manejo, agricultura familiar e resistência produtiva. Uma pesquisa identificou, aliás, 29 tipos diferentes de milho cultivados no Brasil e no Uruguai, todos cultivados justamente por pequenos agricultores.

Milhos crioulos de diferentes cores produzidos pelo Movimento Camponês Popular (MCP).  Foto: MCP

A pergunta que fica é: porque estamos comendo apenas milho amarelo e transgênico ao invés de diversos outros tipos de milhos — roxo, vermelho, branco, preto, azul e rajado -, e agroecológicos? Antes de mais nada é importante entender como e porque o milho amarelo se tornou o queridinho. As justificativas são muitas: é cultivado em abundância desde o período da escravatura nos Estados Unidos, tem alto teor de amido, serve também como alimento para animais, fabricação de xarope, combustível, óleo etc. É ainda fácil de manipular geneticamente, o que muitos adjetivam como melhorias: essas são algumas das justificativas encontradas neste artigo da Embrapa, para o sucesso do milho amarelo. Mas a maior delas é a produtividade. É pela produtividade que deixamos para trás milénios de evolução, sabores diferentes, distintas regiões de plantio e épocas do ano para colheita.

A boa notícia é: tem gente fazendo diferente.

Do outro lado dessa moeda estão, por exemplo, as sementes agroecológicas produzidas pelo Movimento Camponês Popular (MCP) no Brasil, em especial em Pernambuco e Sergipe e da CoopBorborema, na Paraíba. As duas organizações têm como foco espalhar as sementes e o manejo agroecológico para pequenos produtores dos estados. “Que os camponeses tenham capacidade para produzir alimento para alimentar a nação”, diz Sandreildo Santos, dirigente do MCP Pernambuco.

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Corredores agroecológicos

O Brasil tem em seu banco de sementes mais de 4 mil variedades de milhos. Mas o milho que compramos na feira, o cuscuz, a pipoca e os derivados que estão em alimentos ultraprocessados, tudo isso vem basicamente de um punhado de espécies que caberia na mão. É graças a iniciativas como as do MCP e CoopBorborema que temos a conservação de sementes crioulas.

“O nosso foco é produzir semente, então em vez da gente transformá-la em grão, a gente está priorizando produzir para distribuir”, conta Sandreildo Santos. “No momento”, diz Gizelda Beserra da CoopBorborema, “temos uma campanha Não plante transgênicos para não apagar a nossa história”.

Processo da transformação do grão de milho em cuscuz, na agroindústria da CoopBorborema. Imagem: Túlio Martins.

As sementes crioulas de milho do MCP são produzidas em corredores agroecológicos, uma tecnologia que beneficia não apenas os grãos de milho, mas também outros grãos. Uma ação aplicada nos corredores para o controle de insetos, por exemplo, é explicada por Sandreildo: “no caso da formiga, a gente controla com o próprio gergelim. Porque o fungo produzido pelo gergelim é tóxico para as formigas”. E essas são estratégias apresentadas para os agricultores espalhados pela zona da mata, região metropolitana, agreste e sertão de Pernambuco.

Na CoopBorborema, existe uma Comissão de Sementes, que tem o papel de fortalecer os processos de mobilização e articulação. Uma troca de conhecimento que acontece através de seminários e de oficinas municipais, estaduais e regionais. Hoje, mais de 100 famílias estão envolvidas na produção do milho. A Coop também atua no beneficiamento de outros grãos.

Uma das famílias é a de dona Cícera Teixeira, 55, que mora na zona rural da cidade de São João, Agreste meridional de Pernambuco. “Graças ao MPC a gente tem milho para vender nesse São João”, diz ela. Foi construído um corredor agroecológico no sítio de dona Cícera, propriedade de 2 hectares, e lá acontece o beneficiamento de sementes crioulas de feijão, tomate, cebola e milho. Junto do seu marido, Alberto Teixeira, do filho, Lúcio, e dos treinamento do MCP, os três produzem de forma autônoma.

Mas nem tudo são flores — ou milho agroecológico.

Quem explica é Ana Maria Guimarães, da direção do MCP Sergipe: “Primeiro é tudo investimento, depois vem a colheita. Então, olhando para a realidade social dos camponeses hoje no Brasil: quem é que tem recursos suficientes para bancar toda uma roça e esperar lá na colheita, que, inclusive, pode não vir?”

O trabalhador rural tem pelo menos duas formas para subsidiar os custos da plantação: arcar com todos os custos ou pegar empréstimo com o governo ou com a iniciativa privada. Segundo Ana Maria, para cada hectare de milho plantado, investe-se em torno de R$ 6 mil. Os créditos de financiamentos disponíveis estão ligados ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), nos bancos BNDES e no Bando do Nordeste.

“O programa com mais políticas voltadas para os pequenos agricultores é o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA), [programa foi extinto no governo Temer em 2016 e foi recriado em 2023 pelo governo Lula]. A maioria dos bancos que financiam repasse de crédito para pequenos agricultores, incorporaram o modelo da agricultura das commodities do agronegócio. Então se um pequeno agricultor quiser acessar o crédito, vai precisar comprovar que comprou fertilizante, que comprou a semente transgênica, que comprou o abudo e o veneno”, explica Ana Maria.

Outro fator que dificulta a produção é que a polinização do milho se dá através do vento, ou seja, se houver uma plantação de milho transgênico a menos de 500 metros, a não transgênica será contaminada. “Só para ter ideia”, diz Sandreildo, “em 2021 nós testamos 20 agricultores na região do Pajeú [Pernambuco], e a contaminação foi de 91%”. Outro fator observado pelo MCP para a alta taxa de contaminação foi que quando se utiliza os mesmos equipamentos no manejo de transgênicas e nas livres, um trator, por exemplo, as sementes livres também se contaminam.

O armazenamento depois dos grãos colhidos, a seleção das melhores sementes que serão plantadas no futuro, a comparação com os lucros dos agricultores que plantaram transgênicos e a falta de políticas de incentivo são outros fatores apontados pelos entrevistados como dificultadores de uma maior adesão por parte de pequenos agricultores ao manejo agroecológico. Assim como do motivo para não estarmos beneficiando outros tipos de sementes crioulas de milho. Enquanto isso, a Embrapa cria um “milho roxo para aguentar o calor do Nordeste”.

Dona Cícera, agricultora de São João, Pernambuco, conta que ainda não conseguiu financiamento por parte do Pronaf. “Meu sítio tem quase 2 hectares de terra. A gente produz pouco, em comparação a outras pessoas. Apesar de vendermos nossos produtos, não somos um negócio para lucrar”, diz ela. “Nosso objetivo é cuidar da terra, comer do que ela dá e produzir sem depender de ninguém no nosso canto”.

As sementes crioulas, preservadas e cultivadas por agricultores ao longo de gerações, segundo Kauane Batista, técnica agrícola do MCP-SE: “são importantes nesse momento da história [que estamos vivendo]. Elas têm a capacidade de se adaptarem às mudanças climáticas, de solos e a escassez de chuva”, além do potencial nutricional para alimentação humana, como no caso do Jaboatão, cultivado na Paraíba e disso tudo funcionar como freio para o colapso climático.

Cuscuz não modificado ganha espaço nas prateleiras

Ilustração: Ronald Ferro

A preocupação da maioria dos brasileiros em manter uma alimentação saudável se reflete no aumento das vendas de produtos orgânicos no Brasil. Mãe Terra, Native, Só o Ouro, Empório Fit, São Braz, Mundo Verde, Korin e Coopernatural são alguns exemplos de marcas que vendem orgânicos. O cuscuz é um dos alimentos que estão na lista de procura e no escopo de produtos das marcas Mãe Terra, a Só o Ouro e a São Braz. Mas nem tudo que é orgânico é agroecológico.

O termo agroecológico vem da necessidade de reafirmar que para além do respeito com o meio ambiente — a terra, uso de sementes crioulas, o não uso de herbicidas, fertilizantes e sistemas de irrigação irresponsáveis, por exemplo — é preciso pensar nas outras dimensões do processo.

“A gente usa mais o termo agroecológico porque existe uma diferença importante do orgânico”, explica Kauane Batista, técnica agrícola do Movimento Camponês Popular Sergipe (MCP-SE). “Hoje, grandes empresas produzem orgânicos e elas podem não necessariamente respeitar outras condições, uma delas é a questão do trabalho. O trabalho digno e a remuneração justa são importantes para nós nesse processo”.

As empresas citadas não disponibilizam seus processos de produção, mas estão presentes em supermercados, lojas especializadas e no e-commerce em todo o país. As organizações que disponibilizam os seus processos são a Copirecê, localizada em Irecê, Bahia, o Movimento Camponês Popular de Sergipe (MCP-SE), o assentamento Normandia, em Caruaru, Pernambuco e a CoopBorborema, em Lagoa Seca, na Paraíba. Todas essas produzem o seu próprio milho dentro do manejo agroecológico e beneficiam o cuscuz.

A Cooperativa Agropecuária Mista Regional de Irecê (Copirecê) surgiu com o propósito principal de ampliar a produção de alimentos livres de veneno na região do sertão baiano. É a pioneira na fabricação de cuscuz agroecológico, de milho crioulo, produzido na própria agroindústria. Mas, segundo Zene Vieira, presidente da Copirecê, “as grandes empresas estão tratorando” eles. 

A Copirecê, na Bahia, é pioneira na produção de cuscuz agroecológico. Imagem: divulgação.

“Hoje tem algumas lojas que deixaram de comercializar o nosso produto para comercializar produtos de grandes empresas por conta de preço”, continua ela. Através do site deles é possível localizar um revendedor mais próximo e eles estão espalhados em diversas cidades do país.

Quando Zene diz que “as grandes empresas estão tratorando a gente”. Ela mesma explica como: “estão chegando nas gôndolas de supermercados, de lojas grandes, estão fechando acordos para ter exclusividade, ter exclusividade no produto, eles entregam bonificação, coisa que a gente não consegue”. Essa bonificação, na prática, funciona através de descontos, produtos adicionais ou créditos oferecidos pelos fornecedores aos varejistas. 

“Ah, aniversário da loja, aí você tem que bonificar. Ah, dia das mães, dia dos namorados, você tem que bonificar, eles não compram, a gente bonifica”, diz Zene se referindo a tentativas de acordos com grandes supermercados. Apesar desse cenário, a Copirecê funciona como ponto de apoio para outras organizações do Nordeste. 

“A gente selecionava o milho, depois levava para lá [Copirecê] e voltava com o nosso cuscuz prontinho para Sergipe”, diz Ana Maria, uma das diretoras do MCP-SE. A parceria com a Copirecê viabilizou que o milho agroecológico produzido em Sergipe pudesse ser transformado em cuscuz. Hoje, o MCP-SE está na fase de captação de recursos para montar uma agroindústria própria. “O prédio está em fase de finalização. E a gente vai partir para uma outra fase, que é a aquisição dos equipamentos para o beneficiamento [do cuscuz]”, continua Ana Maria.

Hoje, o cuscuz agroecológico produzido pelo MCP-SE é com ajuda de terceiros, como a Copirecê. “Ter a nossa própria agroindústria aqui dentro do estado para baixar o custo de produção”, ela ainda conta que a ajuda para o custos com as produção tem vindo de parcerias políticas, como com o deputado federal João Daniel (PT-SE). O produto é vendido em feiras agroecológicas e no Recanto Camponês em Aracajú — SE. 

Um dos cuscuzes feitos pelo MCP-SE em parceria com a Copirecê é da variedade Sol da manhã. Esse, explica Kauane Batista, é um milho alaranjado, logo, o cuscuz também é. “Mas isso sempre causa um estranhamento das pessoas, porque não estamos acostumados a comer cuscuz que não seja amarelo”, continua ela. No processo de pesquisa desta reportagem, esse vídeo apareceu. É do chef de cozinha Rodrigo Rodrigueira, desinformando um cuscuz de cor bastante arroxeada. Na legenda ele diz: “[vocês] não imaginam o aroma que tomou conta da casa”. Existe uma lista de pontos físicos de vendas.

A unidade de beneficiamento do cuscuz da CoopBorborema fica no sítio Quicé, no município de Lagoa Seca, na Paraíba. Flocão para o cuscuz, xerém, fubá e o milho do munguzá são os produtos produzidos de maneira autônoma por eles com a colaboração de mais de 100 famílias envolvidas diretamente na plantação do milho crioulo e na transformação dele em produtos alimentícios, uma iniciativa que faz o dinheiro circular entre eles mesmo.

No povoado Tanque em Lagarto, Sergipe, integrantes do MCP-SE escolhem espigas das plantas que atendem às características mais desejadas. Imagem: MCP – SE.

A não necessidade de transportar o milho para outra localidade e lá beneficiá-lo, explica Gizelda Beserra, garante uma maior venda e rentabilidade para os produtores. A venda acontece dentro e fora do polo da Borborema, que é uma rede de sindicatos de trabalhadoras e trabalhadores rurais da Paraíba. “Dentro do polo”, diz Gizelda, as vendas acontecem “nas feiras agroecológicas, nas quitandas da Borborema e em pontos fixos em dois municípios [Soledade, Areia] e uma quitanda regional”.

As vendas também acontecem no Instituto Baru e Instituto Chão, em São Paulo, e no Espaço Agroecologia em Recife. Assim como pelas redes sociais da Rede Borborema. Outro movimento que acontece é outras organizações encomendarem os produtos para venderem em seus estados de origem. O assentamento Normandia de Caruaru, também produz e vende cuscuz agroecológico através de encomendas por telefone.

Como a produção do cuscuz começa na plantação do milho: “A dificuldade que nós enfrentamos hoje aqui no território é a situação climática e hídrica”, conta Gizelda. A falta de água é sempre um fator decisivo na hora da colheita. Assim como linhas de créditos que possibilitem a instalação, por exemplo, de tecnologias sustentáveis de irrigação, melhoramento da infraestrutura das organizações, para compra de equipamentos e investimento em pesquisas que garantam a saúde da semente que será beneficiada no cuscuz.

Empresas como a São Braz, que produz o seu cuscuz não-transgênico na cidade de Cabedelo, na Paraíba, 150 km de Lagoa Seca, já conta com toda essa infraestrutura e relações comerciais com supermercados, por exemplo, estabelecidas. Por isso, a concorrência é desigual, uma vez que produzem em larga escala, e organizações como as citadas, não, havendo uma diferença no preço final.

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