Não existe nível seguro de exposição à fumaça do tabaco, que pode trazer danos à saúde mesmo em espaços abertos; ao todo, foram 6,2 mil mortes em 2019
Por que importa?
• O fumo passivo matou 6.281 brasileiros em 2019, cerca de 17 pessoas ao dia.
• A fumaça que sai da ponta do cigarro e se espalha pelos ambientes contém até 50 vezes mais substâncias cancerígenas do que a inalada diretamente pelo fumante.
• Além de causar danos à saúde em espaços fechados, fumaça do cigarro traz riscos também em locais abertos; não há nível seguro de exposição.
• Indústria do tabaco negou danos do fumo passivo; Abifumo, associação que reúne algumas das maiores empresas do setor, já publicou relatório que dizia que “incômodo” contra a fumaça do cigarro era questão “emocional”.
O fumo passivo matou 6,2 mil brasileiros em 2019, uma média de 17 ao dia, segundo uma tese de doutorado defendida pela enfermeira Bibiana Wanderlei Flores e aprovada no início de junho junto à Universidade de Santiago de Compostela, na Espanha. A maioria das mortes foi causada por cardiopatia isquêmica, uma doença no coração que pode levar a infartos e à insuficiência cardíaca.
Essas vítimas incluem pessoas com 35 anos ou mais que adoeceram por causa da exposição à fumaça do tabaco, o “fumo de segunda mão” ou “passivo”, seja em casa, no trabalho ou em outros espaços. Esse total soma tanto os próprios fumantes – que também podem adoecer pelo contato com a fumaça do próprio consumo – como não fumantes ou ex-fumantes.
“O cigarro tem mais de sete mil substâncias químicas e mais de 70 são carcinógenas, então a pessoa que está exposta à fumaça também pode estar ingerindo isso”, explicou Bibiana ao Joio. “Por isso o tabagismo passivo é considerado mortal.”
De acordo com o Instituto Nacional do Câncer (Inca), a fumaça que sai da ponta do cigarro e se espalha pelos ambientes contém até três vezes mais nicotina (a substância viciante no fumo), três vezes mais monóxido de carbono (que atrapalha o transporte de oxigênio pelo sangue) e até 50 vezes mais substâncias cancerígenas do que a inalada diretamente pelo fumante.
“Não há nível seguro de exposição ao tabagismo passivo e a única maneira de proteger adequadamente fumantes e não fumantes é eliminar completamente o tabagismo em ambientes fechados”, alerta o Inca.
A análise de Bibiana partiu de dados da última Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), publicada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2019. A enfermeira cruzou esses números com os cálculos atualizados de risco à saúde associados ao tabagismo passivo de uma ampla revisão publicada na prestigiada revista Nature Medicine em 2024.
Os resultados indicam que, no total, foram 6.281 mortes no Brasil, sendo a maior parcela (60%) entre homens. Esses números, no entanto, são incapazes de dizer quantas dessas vítimas não fumava e adoeceu por causa do tabagismo de terceiros. “Muitos estudos não diferenciam a relação do consumo da pessoa”, explica a pesquisadora. “São calculadas pessoas que estão expostas ao tabagismo passivo sem diferenciar se é fumante, ex-fumante, ou nunca fumante”, diz.
Fumo passivo também é ameaça em espaços abertos
Além de analisar os dados da PNS de 2019, a enfermeira também calculou as taxas de mortalidade com foco nas capitais brasileiras a partir dos levantamentos sobre tabagismo do Vigitel, levantamento anual do Ministério da Saúde. Os números disponíveis cobrem de 2009 a 2021.
Com isso, Bibiana estimou uma queda de 37,5% em mortes nas principais cidades do país ao longo desses 12 anos. Em 2009, cerca de 6.290 brasileiros morreram somente nas capitais em decorrência da exposição à fumaça do tabaco. Em 2021, o número caiu para 3.931.
Parte dessa queda pode ser atribuída à aprovação, em 2011, da lei federal de ambientes livres de tabaco. A norma proibiu fumar em quaisquer locais fechados de uso coletivo, sejam públicos ou privados, como bares, boates, casas de shows e hotéis. A restrição inclui ambientes “parcialmente fechados”, que são abertos, porém podem estar bloqueados em parte por paredes, tetos ou toldos porque estes atrapalham a dispersão da fumaça.
Em outros países, no entanto, as regulações já visam restrições ao fumo em espaços abertos e mais amplos, como parques e praias. No fim de maio, a França decidiu banir o tabaco de todos os espaços públicos que possam ser frequentados por crianças. A restrição não inclui cigarros eletrônicos, que estão liberados no país. No Brasil, quaisquer restrições ao fumo convencional em locais fechados também se aplicam aos eletrônicos, que foram proibidos pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
“Já foi comprovado que mesmo que a fumaça se dissipe mais fácil e rápido em um ambiente aberto, mesmo assim – principalmente se a pessoa estiver a menos de cinco metros, ela segue exposta ao tabagismo passivo”, diz Bibiana Flores. “É mais difícil medir essa exposição em um ambiente aberto, mas ela existe.”,
Apesar da redução na mortalidade, só na cidade de São Paulo, por exemplo, ainda há mais de duas mortes diárias causadas pelo fumo passivo, de acordo com os cálculos da pesquisa.
Segundo dados do último Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (Lenad), publicado neste mês de junho, quase metade dos fumantes (48%) diz fumar em casa, o que perpetua “a exposição de familiares e visitantes à fumaça de segunda mão”, de acordo com o relatório.
Indústria negou danos do fumo passivo
Ainda que hoje haja consenso de que o fumo de segunda mão mata, causa danos à saúde de todos e que políticas públicas devem proteger cidadãos da fumaça do cigarro, nem sempre foi assim. Desde os anos 70, quando os primeiros estudos mostrando os danos do tabagismo passivo foram publicados, a indústria do tabaco passou a lançar dúvidas sobre os achados científicos.
Um maior consenso em torno da escala desses danos surgiu em 1986, quando autoridades de saúde dos Estados Unidos publicaram o relatório As consequências à saúde da exposição involuntária à fumaça do tabaco, que recomendou a criação de ambientes livres de fumo para se preservar a saúde de não fumantes dos vários problemas ligados à exposição a cigarros.
A reação do setor, no entanto, foi imediata. No ano seguinte, de olho nas repercussões aqui no país, a Associação Brasileira da Indústria do Fumo (Abifumo), que reúne empresas de cigarros como Philip Morris e British American Tobacco (a BAT, antiga Souza Cruz), traduziu e publicou um relatório produzido pelo setor nos EUA chamado Fumaça Ambiental Proveniente do Cigarro.
O documento negava que o tabagismo passivo fosse perigoso e indicava que não havia “base física” na “irritação e incômodo” causados pela fumaça do cigarro em não fumantes. Segundo o relatório, “tudo leva a crer que o mero fato de ver ou sentir o cheiro da fumaça é capaz de produzir forte reação nos indivíduos que sentem profunda aversão ao fumo” e que “reações extremas à exposição à fumaça do cigarro podem ter uma base emocional ou psicológica”.
Além disso, em 1988, nos Estados Unidos, as empresas de cigarros secretamente financiaram a criação do Center for Indoor Air Research (ou Centro de Pesquisas do Ar em Interiores), que passou a patrocinar uma série de estudos enviesados com o objetivo de lançar dúvidas sobre os impactos que o fumo passivo tem na saúde.
A organização contou com a contratação de pesquisadores brasileiros e, na América Latina, recebeu o financiamento de BAT e Philip Morris.
Até 2001, mais de 15 anos após ter sido sedimentado o consenso científico de que o fumo passivo era mortal, a BAT ainda mantinha em seu site uma guia com “informações” que negavam que a “fumaça ambiental do cigarro” fosse “fator de risco ou causa de doenças em não fumantes”.
As multinacionais de cigarros deixaram de negar abertamente os danos do fumo passivo a partir de 2006, quando a Justiça norte-americana condenou as principais empresas de cigarros do país, como a Philip Morris e outras que hoje são subsidiárias da BAT, por organização criminosa. Na época, o juiz federal Gladys Kessler condenou as empresas por terem mentido e enganado o público por décadas a respeito dos danos que seus produtos causam à saúde, inclusive em relação ao fumo de segunda mão.
Leia a íntegra da tese de Bibiana Wanderlei Flores



