Levantamento inédito do Joio mapeou pontos de venda de fumo em todo o país e encontrou lojas que vendem, ao mesmo tempo, brinquedos e cigarros pertinho de crianças e adolescentes

Descendo a ladeira Geraldo Fraga, no Jardim São Luís, bairro da zona sul de São Paulo, é possível avistar a placa de uma tabacaria. Os leds anunciam narguilés durante o dia. Ao cair da noite, são os vapes – proibidos no Brasil desde 2009 pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) – que ganham destaque. A vitrine envidraçada expõe, em amarelo vibrante, dezenas de artigos de fumo. Na calçada estreita em frente à loja, adolescentes com mochilas vêm e vão na troca de turnos da Escola Estadual Luiz Gonzaga, a 70 metros dali. Uma cena urbana trivial à primeira vista, e cada vez mais comum. Só na cidade de São Paulo, 60 tabacarias se avizinham de escolas.
As tabacarias se tornaram uma febre nos últimos anos. De 2010 a 2025, foram mais de 198 mil CNPJs abertos para estabelecimento de venda de fumígenos no Brasil. O ápice da multiplicação se deu entre os anos de 2017 e 2021, quando mais de 130 mil tabacarias foram registradas no país, 65% desse total.
Depois de décadas de campanhas de conscientização e regras para reverter os índices de tabagismo na população brasileira, o boom das tabacarias é um dos fatores que tem contribuído para a renormalização do fumo no país. A oferta em diferentes pontos de venda, como bancas de jornal, bares e pequenos comércios de bairro, é uma das táticas da indústria do fumo para expor continuamente seus produtos, capturando a atenção das pessoas e conquistando novos públicos.
Tamanha ascensão das tabacarias não passaria longe de escolas e estudantes. Um mapeamento inédito de O Joio e O Trigo identificou mais de 1,5 mil pontos de venda de fumo a menos de 100 metros de escolas em todo o território nacional.
Onde estão as tabacarias
Para descobrir quantas tabacarias estão a menos de 100 metros de escolas, utilizamos três bases de dados. Por meio da última edição do Censo Escolar feito pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) em 2024 e da biblioteca geocodeBR que busca dados da base de Cadastro Nacional de Endereços para Fins Estatísticos (CNEFE), obtivemos a listagem das escolas, assim como informações sobre sua latitude e longitude. Já no caso das tabacarias, utilizamos a API do Google Places – uma interface de programação que permite o acesso a grandes volumes de dados dos estabelecimentos disponíveis no Google Maps. Cruzamos todos esses dados e chegamos a 1.530 pontos de venda de fumo a menos de 100 metros de escolas em todo o Brasil.
No total, são 828 escolas públicas e 702 privadas. As públicas se dividem em 522 escolas municipais, 300 estaduais e seis federais.
Apenas cinco estados concentram 80% das tabacarias próximas a escolas. São Paulo está no topo, com 486 tabacarias. É seguido por Paraná (257), Santa Catarina (183), Rio de Janeiro (169) e Rio Grande do Sul (140).
No ranking das cidades, São Paulo se destaca novamente com a maior concentração. São 60 correspondências de tabacarias a menos de 100 metros de escolas. A capital paulista é seguida por Rio de Janeiro (49), Curitiba (32), Porto Alegre (30) e Joinville (24).
“Ô tio, deixa eu dar um push?”
No bairro Jardim São Carlos, na zona sul da cidade de São Paulo, fica a Escola Estadual Professor Dogival Barros Gomes, que tem estudantes do 6º ano do ensino fundamental ao último ano do ensino médio. Em um raio de 500 metros no entorno do colégio, existem quatro tabacarias.
O Joio conversou com estudantes e funcionários para entender como o tabagismo tem afetado a vida escolar. Os relatos dão conta de que cigarros eletrônicos – mesmo proibidos – são amplamente utilizados entre menores de 11 a 17 anos.
Roberto* tem 17 anos e já se considera um ex-fumante. Começou com narguilé, aos 15. “Tossi bastante na primeira tragada, mas você vai se acostumando, criando uma certa experiência. Aí depois que você não tosse mais, se sente tranquilo. Não vou dizer que eu precisava fumar para me sentir vivo, mas fumar me dava uma certa sensação de paz”.
O primeiro contato com o fumo foi escondido dos pais, mas rapidamente Roberto abriu o jogo. Mesmo com a rejeição dos familiares, resolveu comprar seu primeiro narguilé. Não demorou para que o consumo se intensificasse e mais um produto entrasse na sua vida. Ele começou a fumar pods, os cigarros eletrônicos descartáveis. Tinha 16 anos.
“Eu comprei por curiosidade. Durou 18 dias, eu estava começando a fumar, aí fumava um pouquinho e a pressão já caía, dava uma dorzinha de cabeça, a nuca gelada”, descreve. Seu primeiro pod era da marca Ignite e tinha capacidade para 5 mil puffs, o equivalente a tragadas no universo dos dispositivos eletrônicos. Não existe uma conversão direta de puffs para tragadas, já que a quantidade de nicotina nesses produtos variam.

Roberto conta que a evolução foi rápida. “O segundo [pod] que comprei já tinham 10 mil puffs. O de 10 mil começou a acabar mais rápido, pois eu comecei a fumar mais frequentemente. Aí foi seguindo, até que eu comprei o último, de 45 mil puffs. Durou exatamente uma semana.”
O adolescente parou de fumar em julho de 2025. Sua motivação veio do esporte: Roberto começou a participar de competições de artes marciais e o fumo passou a atrapalhar seu rendimento.
Os gastos com a vida de fumante eram relevantes. O rapaz afirma que gastava toda semana R$ 150, em média, com cigarros eletrônicos ou essências para narguilé da marca Ziggy. “Normalmente eu comprava os packs, gastava R$ 90 e vinham dez essências. Comprava carvão, que custava entre R$ 25 e R$ 35 a caixa”, calcula. Já o pod de 45 mil puffs da marca BLVK, fabricado pela empresa norte-americana Element Vape, custava de R$ 120 a R$ 150.
No início, essas compras eram feitas presencialmente em tabacarias. “Nem pediam documento nem nada”, observa. Como o consumo foi ficando mais frequente, Roberto começou a comprar por WhatsApp pods e packs de essências fechados. “Quando alguém sabe que você fuma costumam compartilhar os contatos que têm preços bons. Normalmente é pelo WhatsApp ou Instagram”, revela.
Roberto se arrepende de ter começado a fumar e se diz surpreendido pelo cenário atual de tabagismo na escola, principalmente depois que foi abordado por um menino de uns 12 anos que pediu um trago do seu cigarro eletrônico. “Do nada veio um moleque assim bem pequenininho. ‘Ô tio, deixa eu dar um push?’. Eu falei ‘não, você é doido?’. E ele: ‘Ah, o meu é mais da hora’ e, do nada, mostrou um pod pra mim”, relembra abismado.
Vapes “no corredor, na saída da escola e até na sala de aula”
Segundo a última edição do Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (Lenad), divulgada em junho de 2025, 78,4% dos adolescentes de 14 a 17 anos compraram tabaco por vias formais (lojas, bares, padarias, lanchonetes, supermercados). A pesquisa é realizada pelo Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) a pedido da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas e Gestão de Ativos do Ministério da Justiça e Segurança Pública (Senad/MJSP).
O Lenad entrevistou 16.608 brasileiros de 14 anos ou mais e mostrou que 80,7% dos jovens relataram acesso fácil ou muito fácil aos dispositivos eletrônicos. Ainda de acordo com a pesquisa, 26,1% dos fumantes começaram a fumar antes dos 14 anos – um “início precoce fortemente associado à continuidade do consumo na vida adulta”.
Para Clarice Sandi Madruga, coordenadora desta edição do Lenad, a normalização de produtos derivados do tabaco no contexto infantil é muito preocupante. “Faz parte de uma lógica de que é interessante [à indústria] que esteja vendendo ao lado do carrinho e dos jogos. É perverso”, critica. Segundo ela, evidências científicas mostram que quanto maior a quantidade de pontos de venda, maior é o consumo dos produtos fumígenos.
Janaína* completou 18 anos em abril e estuda na Escola Estadual Professor Dogival Barros Gomes, a mesma de Roberto, desde os 11. Ela conta que não é fumante, mas já experimentou. A primeira vez foi após seu aniversário, quando cedeu à pressão dos colegas, pois era a única entre os amigos que não fumava. No colégio, ela percebe um aumento vertiginoso na circulação de pods entre os estudantes.
“Depois da pandemia ficou mais livre o acesso, muita gente fumando. Agora você vê em todo lugar: no corredor, na saída da escola, até na sala de aula”, conta.

A estudante conta que colegas a partir dos 12 anos fumam com frequência, a grande maioria cigarros eletrônicos. Fumos com aditivos frutados e adocicados como melancia ou tutti frutti são os mais consumidos pelos adolescentes ali. O fumo está totalmente normalizado nesta escola no Jardim São Carlos, em que a tabacaria mais próxima fica num raio de 320 metros.
Para Clarice Madruga, os adolescentes já têm a percepção dos riscos e malefícios associados ao tabagismo. “Fazer uma comunicação sobre malefícios não é efetivo para prevenir o uso. Eles sabem que faz mal, mas usam porque é normativo, porque é aceito, por pressão dos pares e mil outras razões. É para onde devemos olhar”, avalia a pesquisadora.
Funcionária da Dogival Barros Gomes, Andrea* conta que frequentemente apreende cigarros eletrônicos dos estudantes e que a orientação da direção da escola nesses casos é recolher os produtos e entregá-los à Polícia Militar (PM). Não é incomum, mas ela ainda se surpreende quando encontra pods com adolescentes de 11 anos. Quando chama pela família há casos e casos.
“Quando pega, a gente sempre chama os pais para fazer uma orientação tanto do estudante, quanto dos pais. Algumas vezes os pais nem sabem que o filho faz uso. Mas tem pais que chegam aqui e falam ‘eu que comprei pro meu filho’, principalmente o eletrônico”, relata Andrea.
Sandra Silva Marques, coordenadora do Programa Estadual de Controle do Tabagismo de São Paulo, ligado à Secretaria de Saúde do estado, relata o mesmo problema. “A escola chama [os pais] e eles falam: ‘Fui eu que comprei pra ele, qual é o problema?’.”
Pensando nos jovens, ela acredita que a abordagem para combater o tabagismo nessa faixa etária de forma mais efetiva precisa ser multidisciplinar. “A nicotina funciona hoje como auto-medicação, principalmente entre os jovens. Então é preciso de uma abordagem conjunta com o tratamento psicológico. Não adianta tratar a dependência de tabaco se não tratar a ansiedade e a depressão, porque o paciente vai recair”, avalia.
Mas, para Sandra, o maior gargalo é a fiscalização. “Tem que ampliar as ações de fiscalização. Onde mais eles [os jovens] compram [cigarros eletrônicos], onde mais têm acesso? Nas tabacarias.”
No Brasil, essas ações são coordenadas pela Anvisa, que atua em parceria com estados e municípios por meio do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS). Estabelecimentos na cidade de São Paulo, por exemplo, são fiscalizados pela Coordenadoria de Vigilância em Saúde da Secretaria Municipal de Saúde que, por sua vez, é orientada pelo Centro de Vigilância Sanitária da Secretaria Estadual de Saúde.
Em suas recomendações, o Lenad de 2025 apontou a necessidade de uma melhor articulação federativa, com estados e municípios alinhando metas, procedimentos e penalidades.

ao ensino médio. Foto: Bruno Borges/O Joio e O Trigo
Procurada, a Secretaria estadual de Saúde de SP informou que “em todas as inspeções realizadas, prioriza a orientação e a conscientização” e que essas atividades acontecem em conjunto com as unidades de ensino, “promovendo a capacitação de agentes e a disseminação de informações, de modo que sejam repassadas a todos os estudantes vinculados.”
Já a Secretaria estadual de Educação(Seduc-SP) respondeu que “desenvolve ações permanentes de conscientização sobre saúde e bem-estar nas escolas da rede estadual, com foco na prevenção ao uso de substâncias nocivas, como o tabaco e os cigarros eletrônicos.” E que, em caso de apreensão desses dispositivos, “as escolas seguem as diretrizes do Protocolo 179, que prevê acolhimento e orientação aos estudantes, comunicação imediata aos responsáveis e, quando necessário, acionamento das autoridades competentes, como o Conselho Tutelar”.
Leis ainda não protegem o entorno das escolas
No Brasil, uma lei de 2003 proíbe a venda de fumígenos dentro de ambientes de ensino, mas não há leis que resguardem o entorno desses espaços. No Congresso Nacional, um projeto de lei (PL) apresentado em 2019 pelo deputado por Pernambuco Fernando Rodolfo (a época PR, hoje PL) propõe proibir a venda de cigarros e derivados do tabaco em um raio de 100 metros de instituições de ensino, da pré-escola ao ensino superior.
O projeto recebeu parecer favorável na Comissão de Desenvolvimento Econômico (CDE) na Câmara dos Deputados em 4 de setembro de 2025, mas aguarda ser pautado para votação.
A justificativa do PL é a de que a comercialização próxima às escolas “facilita o acesso da criança e do adolescente a essas substâncias maléficas”. Também fala que é dever do Estado preservar a saúde da criança e do adolescente, e lembra que a Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica o tabagismo como doença crônica.
Em outras partes do mundo, há exemplos de regras nesse sentido. Em Utah, nos Estados Unidos, existe regulamentação que proíbe tabacarias a menos de 300 metros de escolas e outras localidades como bibliotecas, parques e igrejas. Já no Catar, país do Oriente Médio conhecido pelo uso habitual do narguilé, uma lei de 2016 proíbe a venda de tabaco ou seus derivados a menos de mil metros de distância de escolas e demais instituições de ensino.
Tabacaria, brinquedos e tudo mais

Uma característica recorrente de muitas tabacarias é que elas se misturam com outros tipos de estabelecimentos, indo muito além da venda de artigos de fumo. São bares, adegas e lojas de conveniência. Lotéricas. Barbearias, perfumarias, papelarias e lojas de brinquedo.
Os estabelecimentos mistos são uma parcela representativa do mapeamento feito pelo Joio: 455 no total, quase 30% de todas as tabacarias a menos de 100 metros de escolas.
A reportagem visitou estabelecimentos mistos, além de identificar outros vários por meio do Google Street View. Os achados são preocupantes e evidenciam como artigos infantis dividem espaço com artigos de fumo.
Em um raio de 50 metros do colégio particular Adventista em Viamão, região metropolitana de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, vemos o exemplo mais emblemático de estabelecimento misto, de brinquedos à tabacaria. A loja de brinquedos, presentes e tabacaria está nesse endereço pelo menos desde 2023. Na fachada, as mochilas dividem espaço com imagens de santos, relógios e anúncios de essência para narguilé. Desde 1996, é proibido fazer propaganda de produtos fumígenos no Brasil.


Além disso, em 2018 a Anvisa determinou que produtos fumígenos devem ser expostos o mais distante possível de balas, gomas de mascar, bombons, chocolates, gelados comestíveis e brinquedos, já que tudo isso facilita a visibilidade por crianças e adolescentes.
A Secretaria Municipal de Saúde de Viamão, no entanto, não vê nada de errado com a tabacaria que vende brinquedos e presentes. Em nota, o órgão informou que “o estabelecimento em questão encontra-se dentro das regularidades previstas pela legislação vigente” e que “uma vistoria foi realizada recentemente pela equipe de vigilância, não sendo identificadas irregularidades durante a inspeção”.
Casos parecidos são o que não faltam. Em Araraquara, interior de São Paulo, a um minuto de caminhada da entrada do SESI da cidade fica uma tabacaria que também é papelaria. Ela existe há pelo menos 30 anos e, segundo funcionários do estabelecimento, desde o início das atividades foi desta forma: tabacaria e papelaria. Mudou de endereço nos últimos anos, mas sempre esteve no entorno da escola. O ambiente é compartilhado por pessoas que buscam acessórios para fumo e alunos que procuram por material escolar. Procurada, a Secretaria de municipal de Saúde não se manifestou até a publicação da reportagem.

Nem todos os estabelecimentos nascem assim. Na maioria das vezes, eles vão se moldando para atrair mais público. Uma loja de conveniência em São José, Santa Catarina, estampava em sua placa até 2021 palavras como destilado, carvão e descartáveis. Mas com o avanço das tabacarias em todo o território nacional, não escapou da tendência. O estabelecimento fica a cinco metros do Colégio Estadual José Matias Zimmermann, bastando atravessar a rua.

O levantamento feito pelo Joio é uma amostragem. Muitas tabacarias não estão listadas no Google Maps. Outros estabelecimentos podem omitir a venda de fumígenos e vendê-los mesmo assim. A base de dados do Inep, por exemplo, não dispõe sempre de endereços precisos. Das 215 mil escolas da base, não foi possível geocodificar mais de 106 mil que, por isso, ficaram de fora do mapeamento. Ou seja: a realidade pode ser ainda pior.



