Moradores do Jardim Ibirapuera plantam legumes e verduras sem agrotóxico como alternativa à pobreza de nutrientes identificada em estudo inédito conduzido pela comunidade
Debaixo dos trilhos do metrô de São Paulo, quatro agricultores urbanos observam o lento crescimento de mudas de milho cuidadosamente organizadas em um canteiro montado com restos de construção civil. Alguns metros adiante, pés de alface, couve, banana e erva-cidreira dividem terreno com uma vaca que pasta displicente.
Ao caminhar em meio ao verde, por um momento você até poderia supor que saiu da capital paulista, mas o frenesi do trânsito da avenida Guido Caloi, que dá acesso à Marginal Pinheiros, logo chama à realidade. Essa é uma das vias mais movimentadas e caóticas de São Paulo. Mas é ali, no meio de um conjunto de favelas chamado Jardim Ibirapuera, que os moradores decidiram construir uma alternativa à pobreza alimentar que assola a comunidade.
Dos 41 mil moradores do bairro, 13 mil, ou 31%, passam fome. Tecnicamente, essas pessoas vivem em “insegurança alimentar grave”, o que significa que a falta de renda as impede de fazer todas as refeições que gostariam. Essa taxa é maior do que a registrada no município de São Paulo como um todo, onde 12% da população passa fome, de acordo com o “Primeiro Inquérito de Segurança Alimentar do Município de São Paulo”, um estudo de 2024 desenvolvido por uma parceria entre o Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional de São Paulo, o Observatório de Segurança Alimentar e Nutricional da Cidade de São Paulo e pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e da Universidade Federal do ABC (UFABC).
A conclusão consta em uma pesquisa inédita feita pelo Observatório Ibira30, um braço do Bloco do Beco, organização não governamental que atua no Jardim Ibirapuera desde 2003. Durante seis meses, entre janeiro e junho de 2025, pesquisadores do observatório bateram de porta em porta para entrevistar moradores e investigar seus hábitos alimentares.
As 382 entrevistas revelaram a presença da fome não apenas na ausência de alimentos, mas também no avanço de ultraprocessados e de opções menos nutritivas entre os moradores. Por exemplo, 86% dos entrevistados disseram já terem precisado trocar alimentos saudáveis por opções mais baratas e menos nutritivas.
A situação piorou durante a pandemia, quando muitos moradores perderam renda e precisaram contar com doações para sobreviver. Biscoitos, bebidas açucaradas e alimentos instantâneos se tornaram então ainda mais comuns nas despensas do bairro. Segundo a pesquisa, dois em cada três deles disseram que seus hábitos alimentares pioraram com a chegada da covid.
Foi após esse cenário de crise que um cozinheiro pernambucano viu em um terreno abandonado a chance de produzir comida de qualidade.
Parece impossível Sebastião Neto esconder o orgulho que viu brotar dentro de si enquanto cresciam na terra os pés de couve e maracujá da horta Cantinho do Céu, no meio da Favela da Felicidade, uma das comunidades do Jardim Ibirapuera. É nesse pequeno espaço que ele tenta construir, junto com os vizinhos, uma alternativa limpa e natural para substituir o avanço dos ultraprocessados.
A ideia surgiu na pandemia, quando os moradores resolveram dar função a alguns terrenos abandonados que tinham virado depósito de lixo ou abrigo para usuários de drogas. Nesses terrenos não é possível construir nada porque abaixo deles passam dutos de gás da Transpetro. Mas, em contato com os técnicos da empresa, os moradores descobriram que as raízes das hortaliças não afetariam os dutos. Com o apoio do Bloco do Beco e com a ajuda de um engenheiro agrônomo, receberam autorização para cultivar a terra.
Hoje as três hortas do bairro produzem verduras, legumes, frutas e plantas para chá, dos quais a população faz uso medicinal.
“Eu me considero hoje outra pessoa mexendo com a terra, trabalhando no ritmo da natureza e sabendo exatamente o que tem no alimento que eu como”, afirma Neto, que, assim como os demais agricultores, não usa agrotóxico na produção e adota princípios da agroecologia para fazer a gestão de pragas. “Demora mais, às vezes a gente erra, mas vale a pena porque é saudável.”
Essa nova rotina foi uma mudança inesperada na vida do pernambucano de Camutanga, um município de 8 mil habitantes na Zona da Mata, que até pouco tempo atrás trabalhava como salgadeiro em restaurantes e padarias de São Paulo. O trabalho na horta acabou conectando-o com suas memórias mais antigas, da época em que trabalhava na roça com os parentes em Pernambuco.


Ele não parece ser o único. A etnografia do observatório identificou que no Jardim Ibirapuera 29% dos moradores têm origem no Nordeste e três em cada quatro são pessoas pretas ou pardas. Para muitas delas os hábitos alimentares refletem a cultura e as tradições que a vida e a rotina em uma cidade como São Paulo ainda não foram capazes de apagar.
“Na São Paulo urbana e formalizada, as gôndolas dos mercados podem até ocultar as origens dos ingredientes”, escreveu Marcelo Zarzuela Coelho, o Lelo, um dos coordenadores do estudo. “Mas nas periferias, o cuscuz de milho ainda é memória nordestina em estado sólido, o leite de coco ainda carrega o sopro da diáspora africana, o azeite de dendê resiste ao embranquecimento do paladar urbano, e a mandioca segue sendo mais que raiz: é símbolo de autonomia e continuidade.”
Autonomia era um dos objetivos da cearense Patrícia Alves quando ela perdeu o emprego no mercado de seguros e resolveu transformar em horta um lixão que havia perto de casa. Quando atuava como securitária, trabalhava muito, ganhava pouco e precisava de oito medicamentos diferentes para tratar de sua saúde mental.
“Era remédio pra dormir, remédio pra acordar, remédio pra ficar acordada… eu vivia mesmo à base de remédio”, conta. Nas sessões de terapia, Patrícia comentava com a psicóloga o conforto que sentia ao visitar sítios do interior, onde o marido, peão, a levava para montar cavalos. Por isso ela gostou quando sua comadre a convidou para trabalhar na horta da favela. Então, aprendeu o que era possível vendo vídeos na internet, mas também teve aulas sobre agroflorestas na Universidade de São Paulo e, depois de muita tentativa e erro, conseguiu cultivar as primeiras hortaliças.
Hoje, ela acorda todo dia nas primeiras horas da manhã para regar tomates, berinjelas, jilós, alfaces e muitos outros vegetais, que ela come, vende ou doa aos vizinhos.
“O que eu faço aqui é hortoterapia”, diz ela tocando as plantas cultivadas com o adubo orgânico que ela mesma preparou e que agora estão prontas pra colher. “Eu cuido delas porque sei que elas vão cuidar de mim.”
As hortas urbanas do Jardim Ibirapuera só funcionam porque são iniciativas coletivas, pensadas a partir das necessidades e possibilidades dos moradores e tocadas por eles mesmos. Mas elas também são um retrato da capacidade de articulação da comunidade junto ao poder público e às empresas que margeiam o bairro.
O apoio técnico do Bloco do Beco permitiu aos agricultores vencerem a burocracia e garantirem recursos do Sampa+Rural, uma parceria da prefeitura com o instituto norte-americano Bloomberg Philanthropies, que mapeia e financia ações de agricultura e turismo sustentável na capital. A prefeitura também paga bolsas equivalentes a um salário mínimo do Programa Operação Trabalho para três agricultores. E as hortas já receberam recursos da Fórmula 1, que todo ano faz seu Grande Prêmio no autódromo de Interlagos, a alguns quilômetros do bairro.
Mas esse apoio não é suficiente para tornar as hortas sustentáveis, e os agricultores ainda precisam tirar do bolso para comprar equipamentos necessários ao plantio. Patrícia, por exemplo, conseguiu comprar uma pequena roçadeira apenas depois de levantar recursos com uma rifa de cosméticos.
Além de fazerem doações, os agricultores vendem uma parte da produção para financiar a safra seguinte, mas, como as hortaliças orgânicas são mais caras do aquelas disponíveis nos mercados do bairro, a maioria dos moradores do Jardim Ibirapuera não consegue comprá-las. Um dos objetivos do Observatório é justamente criar uma rede capaz de levar a produção das hortas até o prato dos moradores.
“Nosso sonho até 2030 é construir um tripé”, explica Luiz Claudio de Souza, articulador institucional do Observatório. “Potencializar as hortas, criar um banco de alimentos, também com a contribuição de mercados e hortifrutis do bairro, e construir uma cozinha comunitária que possa manipular esses alimentos junto com a comunidade. Mas pra isso precisamos de parceiros.”
Enquanto esse sonho não se concretiza, os agricultores urbanos colhem das hortas frutos que não se resumem aos vegetais que crescem ali. São valores intangíveis que se espalham pela comunidade como sementes levadas pelo vento.
Um deles é a camaradagem, um senso de solidariedade visível no acolhimento que os agricultores oferecem ao jardineiro e podador de árvores Dorgival Duarte, que em janeiro perdeu o braço quando um ônibus o atropelou na avenida Guido Caloi, perto do canteiro de mudas de milho. Ele também perdeu trabalhos por causa da deficiência, mas agora vê uma nova possibilidade de renda na atuação coletiva na terra, contando com auxílio dos amigos agricultores.
Outro é uma certa pedagogia pelo exemplo que mobiliza moradores do Jardim Ibirapuera a também cultivarem o próprio alimento, apesar dos desafios. Enquanto caminhavam entre uma horta e outra em uma segunda-feira recente, os agricultores foram abordados por um vizinho que tentava plantar mudas de hortaliça em um pequeno barranco ao lado da quadra poliesportiva da favela. Ele se via às voltas com uma infestação de ratos, que toda a noite devastavam a plantação. Mas não se mostrou desanimado: “É seguir tentando, uma hora a gente vence.” Os agricultores concordaram.







