Povo indígena venezuelano vive em condições muito precárias em espaço de acolhimento: a alimentação é insuficiente, não há quartos e o espaço é escuro, fechado e sem ventilação

Um copo de café com leite, quatro bolachas água e sal e uma laranja. Durante meses, foi isso o que cerca de cem indígenas do povo Warao comeram no café da manhã de um abrigo municipal em Belém. Essas pessoas começaram a chegar à capital paraense em 2018 fugindo da crise econômica na Venezuela. Para não viverem nas ruas, foram abrigados em um galpão na periferia da cidade.
Na semana passada, durante a COP30, o Joio visitou esse abrigo, onde falta água nos banheiros e que teve a cozinha comunitária fechada pela gestão do prefeito Igor Normando (MDB). Ao assumir em janeiro deste ano, o prefeito publicou um decreto para reduzir os gastos do município, o que afetou o orçamento da Funpapa (Fundação Papa João XXIII), que gere a assistência social na cidade.
Normando tentou renegociar os contratos das empresas que forneciam alimentos aos abrigos, mas quando elas não aceitaram, a prefeitura rompeu os acordos. Para resolver essa situação, a Funpapa escolheu outra empresa, a “Prospera Service” para entregar marmitas aos indígenas e outras pessoas em situação de rua. No total, os abrigos da cidade têm capacidade para receber 400 moradores, segundo a prefeitura.
O contrato, assinado sem licitação, custa aos cofres públicos R$ 4,2 milhões e tem duração de seis meses.

A descrição contratual do café da manhã que deveria ser servido nos abrigos mostra uma variedade alimentar que os moradores nunca viram. Cuscuz, tapioquinha, ovo e queijo minas frescal são apenas alguns dos itens que deveriam aparecer, conforme se pode constatar no trecho do contrato abaixo. Cada café da manhã custa à prefeitura R$ 13.

Café e bolacha
Mas o alimento que efetivamente chega é muito mais modesto. “Quando esse contrato foi assinado, imediatamente a qualidade e a quantidade da comida caíram muito”, afirmou o funcionário Rayme Sousa, que trabalha no abrigo onde vivem os Warao. “O café passou a vir acompanhado só da bolacha. E fruta às vezes vinha, às vezes não.”
No papel, Rayme é um dos educadores responsáveis por conduzir oficinas aos abrigados, mas como não há estrutura para isso, ele acabou se tornando um dos poucos servidores obrigados a fazer tudo no local. Ele cuida da administração cotidiana, encaminha os moradores a órgão públicos para tirar documentos e garantir benefícios, media eventuais conflitos e dá assistência em caso de acidentes. Depois do decreto de contenção de despesas, passou a sentir os problemas se avolumarem.
No dia 27 de junho, ele gravou um vídeo nas redes sociais denunciando o que chamou de “desmonte” da política de assistência social na cidade e o risco do abrigo fechar por falta de funcionários e de alimentação adequada.
Os servidores da Funpapa organizaram protestos e denunciaram o caso à Defensoria Pública do Estado, que propôs uma Ação Civil Pública contra a prefeitura em outubro. Nessa mesma época, a empresa passou a entregar pão com manteiga no lugar das bolachas.
A discrepância entre o que se lê no contrato e o que se observa na prática se repete também no almoço e no jantar, descritos com fartura no documento.
Por R$ 26 por marmita, a empresa deveria, segundo o contrato, entregar refeições com vegetais variados, três opções de proteína animal, sopa e açaí, entre outros produtos alimentícios. Na prática, o que se vê eé a repetição de um mesmo tipo de proteína por vários dias em marmitas com pouca variedade nutricional, conta Rayme. Até o ano passado, os alimentos chegavam aos abrigos e podiam ser preparados pelos cozinheiros ou pelos próprios indígenas, de acordo com suas preferências. Isso mudou com o fechamento da cozinha e a entrega das marmitas.
Os relatos são de que é comum a comida chegar fria ou com a aparência de ter sido preparada no dia anterior, problema que não existia quando a Prefeitura ofertava os alimentos e eles eram preparados na cozinha do abrigo, por cozinheiros ou pelos próprios moradores do local. “Você percebe pela temperatura e pela textura do peixe. A impressão que dá é que eles fritam no dia anterior pra facilitar a entrega das marmitas”, afirmou o servidor Alexandre Barbosa.

A reportagem visitou a sede da Prospera Service em Belém e constatou que no local funciona uma oficina mecânica e não uma cozinha industrial. A direção da empresa se recusou a conversar com o Joio para explicar a contratação.


Sede da Prospera Service, em Belém, onde funciona uma oficina mecânica e não há cozinha industrial. Foto: Adriano Wilkson
A Prospera ganhou o contrato milionário com a prefeitura, mas, de acordo com servidores ouvidos pela reportagem, não são os carros dessa empresa que entregam as marmitas aos abrigos e sim as de uma concorrente. No processo de dispensa de licitação para o contrato emergencial, a prefeitura precisou orçar os valores de mercado para os itens que exigiu. Três empresas enviaram propostas, a Prospera, a MWS Eventos e uma terceira. A prefeitura considerou a proposta da Prospera a mais vantajosa e a escolheu. Porém, de acordo com servidores, é um carro da MWS Eventos que entrega as marmitas.

Condições precárias
Alheios a essas nuances contratuais, os indígenas Warao dizem se sentir gratos por terem sido acolhidos em Belém. “Não vou reclamar da comida que nos dão porque nos ajudam”, disse uma senhora indígena que preferiu não ter seu nome publicado por temer se prejudicar. Mas eles enfrentam condições muito precárias no local, não apenas do ponto de vista alimentar. O galpão onde hoje 97 pessoas vivem é escuro, fechado e com pouca ventilação, o que torna impossível a permanência nas horas mais quentes do dia. Não existem quartos, e as tendas, improvisadas, não permitem privacidade.
Quando visitamos o abrigo, não havia água no banheiro masculino, e as fezes se acumulavam nos vasos. A sala de informática estava fechada pela falta de equipamentos e funcionários para operá-la. Na parte externa, as crianças Warao jogavam bola em torno de uma rede de vôlei. Nos fundos do terreno, um casal de idosos cozinhava em um fogareiro improvisado ao lado de um banheiro sem condições de uso.


Cozinha do abrigo também está em condições precárias. Foto: Lucy Silva/InfoRevolucao
O abrigo onde vivem os Warao é o maior da cidade, mas ele mesmo é fruto de um improviso. Antes de ser alugado pela Funpapa, o galpão era usado por uma transportadora de veículos. O pátio foi adaptado para receber tendas doadas pela ONU, mas como elas limitavam ainda mais a circulação de ar, acabaram sendo substituídas pelas atuais estruturas de metal e pedaços variados de tecido. O mictório usado pelos motoristas se tornou o local onde os Warao lavam suas roupas.
O projeto era que o abrigo funcionasse de maneira provisória até a estruturação de um local definitivo. Mas o improviso se mantém dessa forma há seis anos.
A Agência da ONU Para Refugiados (ACNUR) estima que existam 850 Warao vivendo em Belém. Oriundos da região do rio Orinoco, eles viviam da pesca e da agricultura quando tiveram que deixar a Venezuela por causa da crise econômica. Alguns conseguiram trabalho na capital, mas a maioria, por não dominar a língua e por xenofobia, acabaram precisando viver de doações.
Uma parte dos indígenas conseguiu acesso ao Bolsa Família e ao Bora Belém, um programa de transferência de renda instituído na cidade durante a pandemia e que estava em vigência até abril deste ano, quando foi extinto pela atual gestão.
A Justiça paraense marcou para 1º de dezembro uma audiência de conciliação na ação da Defensoria Pública que denuncia a insalubridade dos abrigos de Belém. “A ação coletiva foi movida diante do estado de abandono que encontramos, situação que compromete a alimentação e o desenvolvimento saudável dos indígenas Warao, especialmente crianças e adolescentes”, afirmou o defensor Carlos Eduardo Barros da Silva. “Diante desse cenário, tornou-se indispensável o ajuizamento da ação para garantir a proteção e a dignidade dessas pessoas.”
Procurada para comentar a discrepância entre a descrição das marmitas no contrato e aquelas que são efetivamente entregues, a prefeitura não respondeu até a publicação da reportagem.





