Banana Buffet

A Flor que é chef, feminista negra e o que mais ela quiser

Militante em várias frentes, a carioca Thallita Flor faz da alimentação saudável ativismo e profissão, e defende que a mulher deve ter espaço em todos os ambientes, inclusive na cozinha

Thallita Floripes Xavier Torres prefere ser chamada de Flor. O nome combina com o perfil da jovem. Ela atua. Faz graça. Espalha sabores. É atriz e palhaça. E esculpe pratos, porque é cozinheira, das boas. Nascida e criada em áreas suburbanas do Rio de Janeiro, hoje mora no município fluminense de Niterói, no Morro do Caramujo, onde é dona e chef de cozinha do Banana Buffet, estabelecimento que possui uma particularidade: serve comida vegana nos eventos de que participa. Muita informação em um parágrafo? Não nesse caso. Faltou falar do mais importante. A moça conta que é “feminista, negra e favelada”.

O buffet presta serviços para casamentos, festas de aniversários infantis e de 15 anos, chás de bebê e encontros de empresas. Também faz eventos em parceria com restaurantes, organizando almoços temáticos veganos.

“Meus pais sempre trabalharam com eventos. Meu pai é DJ e minha mãe é garçonete. Eu acompanhava, ajudava. Então, a área de eventos não é estranha para mim”, explica Thallita.

– Por que o buffet é vegano?, pergunto.

Resposta dada, descubro que o veganismo, primeiro, veio como posição pessoal. Os negócios, depois.

Ela conta que descobriu o movimento vegano quando estourou o caso do Instituto Royal, aquele que, em 2012, foi flagrado fazendo experiências com cachorros para as indústrias de cosméticos e de limpeza.

Quando as notícias foram divulgadas, várias pessoas do círculo social de Thallita Flor ficaram indignadas. Eram cachorros que estavam sendo explorados. Não que ela não tenha se indignado, mas também questionava: por que que as pessoas estavam tão revoltadas se comiam animais todos os dias? “Indignação seletiva”, pensava. Vacas, porcos e galinhas não mereciam a mesma compaixão.

“Procurei respostas e acabei encontrando informações sobre o veganismo. Depois de ter me tornado vegana, resolvi abrir meu próprio negócio de culinária. Aí, veio a vontade de abrir um buffet vegano, que não existia aqui no Rio de Janeiro, algo em que os veganos pudessem ter tranquilidade com a procedência e a qualidade dos alimentos, que tivesse tudo de que um vegano precisa”, lembra a chef.

O lado artístico, do qual brotou “a Flor” do nome, está em ciclo universitário desde 2014, quando passou no vestibular de artes cênicas, na Unirio. A paixão maior de Thallita é a arte. Talvez por isso é que o Banana Buffet esteja bem. A atriz da cozinha dá vazão à criatividade, que se materializa em pratos saborosos e belos.

E o feminismo, cadê, repórter? A moça não sabe exatamente quando se deu conta de ser feminista, porém recorda precisamente de uma série de detalhes que a fizeram entender a necessidade da luta como mulher negra.

“Quando entendi a dor da mulher negra, entendi o meu lugar. Entendi quais eram as minhas dores. Foi, inclusive, quando encontrei o feminismo negro, é importante esse recorte. A ficha caiu quando percebi que sofria preconceito pelo meu cabelo, pela minha pele. Precisava me unir a outras mulheres negras. E, quando me dei conta, estava no rolê”, diz.

O resultado dessa combinação foi mais uma articulação. Flor é uma das fundadoras do Movimento Afrovegano (MAV), do Rio de Janeiro.

“Foi a união de duas necessidades, de duas lutas. É preciso mostrar que existem negros veganos, negros preocupados com uma alimentação saudável”, enfatiza.

Conta mais, Thallita. A voz é sua aqui em O joio e o trigo.

Feminismo e mulher na cozinha

“Há maneiras diferentes de olhar para isso. A cozinha pode ser um lugar muito empoderador para uma mulher. Mas a questão é: por que existe essa gourmetização da comida atualmente? Porque o homem começou a cozinhar. Homens foram consagrados como chefs de cozinha. Então, a mulher tem é que brigar pelo espaço de chefia na cozinha. Claro que estou falando do mundo capitalista em que vivemos, de uma visão comercializada, mas acredito que a gente não pode deixar de brigar por esse espaço”, reflete a cozinheira.

Sobre relacionamentos amorosos e afazeres domésticos, Thallita comenta, sem titubear: “Tem que dividir as tarefas, porque é saudável cada um fazer uma parte. É saudável estar junto na cozinha e cada um fazer uma parte do processo”.

No entanto, quando o “lado cozinheira” dela predomina, a moça revela que tem algumas manias. “Ah, aí, eu não quero ninguém na minha cozinha. Mas também não é difícil, né?. É só a outra parte fazer serviços diferentes na casa”, avisa.

Para a chef (que é a voz mais alta neste momento da conversa, dentre os papeis que Thallita exerce), cada família ou relação tem uma dinâmica. Se um quer cozinhar sozinho, o outro tira o lixo, arruma a sala, limpa o banheiro.

“Isso, quando a mulher realmente gosta de cozinhar. Porque a gente tem de fugir do estereótipo de que é a mulher é quem faz todo o trabalho doméstico. Cozinhar é um deles. Posso não gostar de passar o pano de chão na casa e o cara é quem faz a faxina. A partir do momento que se quebra esse estereótipo, a gente consegue aceitar a ideia de que o lugar da mulher é onde ela quiser, seja na cozinha ou longe dela”, ressalta.

Com tudo isso, Flor ainda toma alguns cuidados. Não sai pelo Morro do Caramujo agitando bandeiras. Ainda vê riscos em assumir escancaradamente que é feminista: “Para quem me pergunta se sou feminista ou se tenho de ajudar outra mulher, eu falo, mas não saio gritando por aí. O meu tato com o homem favelado é maior, pois ele tem muito mais contextos que o colocam perto do machismo do que um homem branco rico. Onde moro, falo com os caras, dou conselhos, tento analisar a situação como um todo, claro que não tirando a culpa dele, mas o contexto que é dado a um homem negro favelado é muito mais propício ao machismo do que a um não favelado”

Ato político

O lado ativista vegano da jovem desperta quando a questão ética e política de comer é tocada. Ela indaga: “É ético ser racista?”.

“O racismo deve ser repudiado. É certo que a gente ainda tem dificuldade com isso, pelo racismo institucionalizado, mas, de modo geral, muita gente percebe que não é ético. Por exemplo, matar uma pessoa porque ela é negra não é ético, mas matar um animal é visto com normalidade. Quando eu digo que não é ético comer animais, é nesse sentido, porque eles também são ‘raças’ de seres vivos”, defende.

Ela explica que muitos momentos construíram a visão política que tem da alimentação. E indica o documentário Engrenagem, um curta de pouco mais de 16 minutos, recheado de animações. Informações fortes, de um modo rápido. Um vídeo que traz perspectivas ambientais, animais e econômicas, e que, na opinião da ativista, deveria chegar a muita gente.

Porém, a voz de Thallita ecoa mais longe, numa fala contundente, que remexe a gente por dentro, veganos ou não. Adianta optar por não comer carne sem estar bem com a própria espécie?

“Para que você se preocupe com os animais não humanos, no mínimo, você já tem que estar bem com a sua própria espécie. Não faz sentido você procurar libertar alguém diferente porque você teve empatia, mas você não tem empatia por quem é igual a você. O número de pessoas que lutam pela humanidade já deveria ser o mesmo de pessoas veganas,  mas ainda não é assim. Todos os veganos deveriam estar inseridos em lutas pela humanidade. Fiquei surpresa no veganismo, pois muitas pessoas que são veganas odeiam seres humanos. Isso é uma coisa conflitante”, aponta.

Fora de moda

A quase onipresença da indústria alimentar não é encarada de modo simplista por Thallita Flor. Para a chef, a alimentação de hoje praticamente não é mais vista como “ato de sobrevivência”. Ou seja, se alimentar para ter energia, para continuar de pé e viver um dia após o outro saiu de moda.

“A nossa alimentação foi para um rumo completamente diferente e isso se dá pelo fato de que o ser humano, até onde eu sei, o ser humano é o único animal que busca comida por prazer. A nossa alimentação não se restringe a comer alimentos que são necessários, também tem a ver com o que a gente gosta. E, por gostar de comer, por querer sabores diferentes, a gente começou um processo de ter que Inovar o tempo todo e nem sempre a inovação acelerada traz coisas boas. Nem sempre alimento novo vem para te fazer bem”, analisa.

Lembremos dos biscoitos cheios de açúcar e gordura. Ou dos refrigerantes. Tem sabor agradável? Para alguns, sim. Thallita vê mais à frente: “A gente discute se um alimento faz bem ou não, mas a pergunta também é: ele é útil para você? Um biscoito, um salgadinho, são úteis para o seu organismo?”

A indústria na perifa

Segundo a chef, quem sofre mais as consequências do que ela chama de “loucura alimentícia” é a periferia. Buscar coisas novas o tempo todo, o consumismo – não importa se vai fazer mal à saúde. Parcela significativa do pessoal da favela vai atrás do que está na moda.

“O pessoal da periferia acaba influenciado a ir atrás. Existe a discussão de que nos mercadinhos da favela os produtos industrializados são piores. Por exemplo, aqui, no Caramujo, é muito comum ver marcas de refrigerantes que você não vê em grandes mercados do centro. Você vê marcas regionais, um refrigerante de cola menos conhecido do que a Coca-Cola. Não sei dizer qual é pior em termos de nutrientes, mas vejo outra situação: a questão social, o fato do refrigerante não ser conhecido, o que faz com que o status dele diminua. Não é só uma questão de ser ruim, mas do que significa como status social. Isso é uma coisa muito forte na periferia. Sempre que a pessoa tem uma oportunidade de comprar alguma coisa de marca, ela compra, para poder se sentir melhor. Seja na forma como se veste ou com o que come, a pessoa quer mostrar que não está por fora”, acrescenta.

Boa parte das pessoas da comunidade do Caramujo sabe que a alimentação mais saudável não é necessariamente mais cara, de acordo com a cozinheira. A maioria tem ciência de que se alimentar de vegetais é mais barato. O assunto complica quando as pessoas não sabem o que é comida saudável.

Thallita tem mais a falar sobre a relação indústria/periferia. De acordo com ela, as corporações alimentares estão “se lixando para a alimentação e saúde”.

“Quem mora aqui não sabe que existem vegetais que têm os nutrientes necessários para a vida. Falta informação, no sentido de conhecer mais sobre a alimentaçao vegana. Tem gente que me pergunta, mas só isso que você come te sustenta?”, pontua.

Pelo pique de Thallita, é claro que sustenta. Vamos relembrar: chef de cozinha e atriz. Ativista triplamente: feminista, negra, vegana.

“O maior trabalho é desmistificar isso, de que não sustenta. Outra coisa a ser combatida é de que o preço é alto em qualquer circunstância. Quando eu vendia quentinhas vegetarianas aqui, vendia a R$ 10 cada, a um preço acessível”, garante.

O que a moça não concorda de jeito maneira é que subestimem a inteligência de quem mora na comunidade.

“Sempre digo que a gente não deve subestimar a capacidade do pobre de pensar. O pobre pode ter empatia por animais, parar de comer carne. O que é crucial é que a mídia, quem tem o poder de espalhar a informação, diga ao pobre que comer vegetais não é frescura, que é um caminho mais saudável. Que, se for comer industrializados, a pessoa escolha os que não contêm tanto sódio, que não contêm tanto açúcar”, sugere.

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Breves histórias

Está em falta

“A gente também come muita porcaria porque não tem tempo, a gente não tem tempo de cuidar da vida pessoal, da saúde. O pobre chega cansado, quer comer um miojo, tomar um banho e dormir. Isso vai consumindo a nossa vida. Precisaria mudar a relação de trabalho. Muita mudança seria necessária para a gente cuidar melhor da alimentação”, frisa.

Orgânicos: tabu?

Se o acesso a vegetais não é tão difícil do ponto de vista econômico, comprar ingredientes orgânicos ainda é caro, normalmente. Mesmo na rotina pessoal, a chef confessa que tem de buscar lugares com descontos, mas que, em geral, não compra esse tipo de produto, porque os preços são impeditivos.

“Arrisco dizer que pobre não consome produto orgânico, a não ser que tenha uma horta em casa. Fora disso, dificilmente um pobre tem condições de consumir orgânicos”, assegura.

Na favela, orgânicos são vistos como coisa de gente “fresca”, ela diz. A visão, em muito, se dá por um ciclo negativo. A minoria que pode comprar produtos orgânicos pagam preços altos pelos itens, o que a ativista enxerga como “elitização da comida saudável”.

Veganos modinha

Thallita diz que há muitas pessoas vendendo “alguma coisa vegana por aí”.

“Sou um pouco chata, mas pessoas que não têm nada a ver surgem com uma tara por vender coisas veganas e fico incomodada. Por um lado, é bom ver surgir negócios veganos, mas tem negócio vegano surgindo com pessoas que não queriam ter aquele negócio. Elas criam reputação, ganham dinheiro e depois abandonam a gente. Fora a qualidade do alimento, que nem sempre é boa”, adverte.

Todo mundo é nutricionista

Dizem que uma dieta vegetariana ou vegana não é completa. A artista acha graça nisso.

“É até engraçado. As pessoas, geralmente, não estão preocupadas com a alimentação, mas, quando o outro fala que é vegetariano, todo mundo vira nutricionista. Pessoas que têm mania de sanduíches do McDonald’s criticam a alimentação vegetariana ou vegana”, diverte-se.

O que viraliza

Ativa também no ambiente virtual, Thallita tem forte presença na internet, com o blog Sim, sou vegana e feminista preta! No Facebook, a página do projeto já possui mais de 5 mil seguidores (fora os quase 4 mil que a seguem na página do Banana Buffet). Além disso, ela usa muito o Instagram.
“O que viraliza mais, creio, são as coisas de conteúdo mais específico, temático, seja no Instagram, no Facebook ou no blog. O Instagram, eu dedico um pouquinho mais para coisas do dia a dia, mostro a minha comida no café da manhã, coisas assim. Mostro quem sou, “gente como a gente”, para as pessoas verem que não tem mistério em ser vegana, periférica e negra”, diz.

Uma das criações do Banana Buffet e parceiros é o sanduíche de hambúrguer de acarajé, sem itens de origem animal | Foto: Banana Buffet

Constrangimento na Globo

Em setembro do ano passado, Thallita recebeu um convite do programa matutino Encontro, da Rede Globo, apresentado por Fátima Bernardes. A pauta incluiria a discussão sobre o tema da redução do consumo de carnes e a ativista poderia explicar, também, as experiências como mulher negra e da periferia. Não foi o que aconteceu.

A produção havia combinado que ela falaria sobre veganismo e o movimento afrovegano. Quando o programa foi ar, ela se viu sozinha em meio a pessoas que ou eram “adoradoras” de carne ou consumiam “de vez em quando”. Para piorar, durante a exibição houve uma operação conjunta do Exército e da polícia na favela da Rocinha, o que interrompia constantemente a atração.

“As coisas mudaram, o assunto acabou ficando raso. Não conseguia me aprofundar no tema da alimentação, de ser periférica, negra. Quase não consegui falar. Meu microfone ficava muito tempo desligado e, quando abriam, tinha um monte de questões que os outros convidados tinham levantado e eu mal conseguia responder, pela falta de tempo. Algumas situações me deixaram constrangida. Por exemplo, quando eu ia falar, um dos debatedores dizia: “Ah, mas você é toda magrinha”. Como se isso fosse um problema causado pela minha alimentação. Sempre fui magra, nada a ver com ser vegana”, conclui a ativista.

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