Como proporcionar as condições políticas à organização de um sistema alimentar alternativo, com democratização fundiária, inclusão e desmercantilização da comida
Embora a maioria dos candidatos e candidatas ao Poder Executivo, seja à Presidência da República, seja aos governos estaduais, não estejam preocupados em falar de alimentação, nossa prioridade é lembrar que o assunto, por mais óbvio que pareça, é fundamental e teria que estar no centro da agenda eleitoral.
Não deveria ser necessário recordar que a alimentação é vida, mas, quando a gente vê os postulantes ao cargo político mais alto do país – casos de Geraldo Alckmin, Jair Bolsonaro, Ciro Gomes e Marina Silva – ignorarem graves problemas relacionados ao assunto, como os crescentes índices de obesidade e de doenças crônicas não transmissíveis, excesso de agrotóxicos usados pelo agronegócio, péssimas condições de trabalho dos cortadores de cana e desertos alimentares, a nossa missão, mais do que falar, é gritar para engrossar o coro a respeito, lembrando que se alimentar é uma questão de Direitos Humanos.
Em um país onde a fome, dada por quase superada há poucos anos, ameaça voltar de forma alarmante, graças aos anos de má condução da economia pelos governantes, reportar sobre as condições alimentares da população é nossa obrigação.
E é aí que entra a temática que desejamos introduzir no debate eleitoral. Além de abordar a tragédia que é a falta de comida nas mesas das famílias mais pobres, vamos trazer histórias e análises sobre o Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA), que, em linhas gerais, é o direito das comunidades de ter acesso a uma alimentação saudável, sem distinção socioeconômica, racial ou de gênero, algo, inclusive, já previsto pelo direito internacional desde o século 20.
Para tanto, ganhamos um belo reforço: a parceria com pesquisadores do Direito e da Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), por meio da Rede de Estudo e Ações em Justiça Alimentar (Reaja), que se inicia agora, com um texto introdutório ao tema escrito por Leonardo Corrêa e Lucas Costa Oliveira, especialmente para O Joio e o Trigo.
Direito Humano à Alimentação Adequada: uma visão crítica
Por Leonardo Correa e Lucas Costa Oliveira
Ao longo do século 20, o Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) foi positivado em diversos textos normativos do Direito Internacional (art. 25 da Declaração Internacional dos Direitos Humanos; art. 11 do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – Pidesc; Comentário Geral (CG) nº 12 da Cúpula Mundial de Alimentação), bem como no Direito brasileito (Constituição da República, Lei Orgânica da Segurança Alimentar e Nutricional, entre outros).
O Direito Humano à Alimentação Adequada é conceituado como um direito ao acesso regular, permanente e irrestrito aos alimentos seguros e saudáveis, de acordo com as tradições culturais de uma comunidade. É, portanto, consensual a ideia segundo a qual contempla duas dimensões complementares: o direito de cada indivíduo estar livre de fome e, ao mesmo tempo, o direito de ter acesso ao alimento saudável. Em linhas gerais, é também classificado como um direito humano caracterizado pela ideia de ser universal e inerente à pessoa.
Porém, o conceito do Direito Humano à Alimentação Adequada colide frontalmente com a concretude da realidade. Atualmente, 850 milhões de pessoas passam fome no mundo. Nas Américas, 4,8 milhões morrem anualmente por doenças não transmissíveis, segundo a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas). Os números evidenciariam um grande abismo entre os atos normativos e a realidade de exclusão, fome e adoecimento. Nessa perspectiva, o problema do DHAA não seria sobre a fundamentação, mas sobre a concretização das normas.
A questão central é que devemos questionar a pertinência dessa cisão absoluta entre fundamentação e efetivação/exigibilidade. A ausência de uma reflexão crítica sobre a fundamentação do DHAA é problemática, pois impede o questionamento sobre temas essenciais. Ao considerarmos o DHAA como um direito inerente afirmamos que está ligado à própria natureza humana e, como tal, um direito que não se concretiza a partir do embate político.
O ponto essencial, então, é que antes de debatermos a efetivação do DHAA devemos dar um passo atrás e discutir o paradigma (epistemológico, político e jurídico) a partir do qual a fundamentação se consolidou no século 20, ou seja, a concepção hegemônica dos Direitos Humanos, que trata tais direitos a partir do reconhecimento jurídico, como ideais abstratos que se encontram além do contexto da vida que visam a regular.
Joaquín Herrera Flores, doutor em Direito pela Universidade de Sevilha, na Espanha, no artigo “A (re)invenção dos Direitos humanos”, expõe que classicamente os Direitos Humanos vêm sendo concebidos, ora como essência humana justificadora do injustificável e arma para a retórica conservadora, ora como suposta proposta utópica dirigida a propiciar a vingança dos afetados sobre aqueles que lhes exerceram dominação. Entretanto, ele afirma que, quando se analisa tais projetos frente à realidade material, se verifica que mais de 80% da população mundial passa por situações de miséria, exploração, marginalização e fome.
É evidente que o discurso hegemônico dos Direitos Humanos está, antes de qualquer coisa, tomado de abstrações e desconectado das práticas sociais reais em que se incluem todos os humanos, mesmo os que são invisibilizados pela concepção hegemônica de Direitos Humanos, encontrando-se do outro lado da linha criada discursiva e ideologicamente em prol de um tipo de dominação exercida na política, no mercado, e – por que não? – no Direito.
O professor e sociólogo português Boaventura de Souza Santos, no ensaio “Para além do Pensamento Abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes”, observa que esse Estado produz a ausência de humanidade, resultando em subumanidade moderna, como se o desenvolvimento de uma parcela de indivíduos só fosse possível a partir da exclusão de uma parte muito maior de pessoas.
É diante desse quadro de mundo que Joaquín Herrera Flores busca construir uma nova concepção de Direitos Humanos, em que eles sejam vistos como processos de luta e, portanto, consequências provisórias do agir humano em busca das satisfações dos sujeitos que objetivam alcançar bens materiais e imateriais necessários à vida; que permitam a quebra das distâncias que se estruturam de forma que alguns indivíduos tenham acesso mais fácil aos bens materiais e imateriais para uma vida digna.
Nesse cenário são realçadas as práticas sociais como formadoras do conteúdo jurídico dos Direitos Humanos, sempre provisório e em constante modificação. Não há espaços para abstrações, universalismos enlatados e importados pela cultura hegemônica e ocidental. Há espaço somente para os sujeitos reais, com demandas e desejos reais.
Neste ponto, podemos retornar ao debate central. Em que medida uma concepção crítica dos Direitos Humanos pode contribuir para a prática emancipatória do DHAA?
A primeira grande questão consiste em compreender que, apesar de a Organização das Nações Unidas (ONU), no comentário “O Direito Humano à Alimentação”, pretender delimitar elementos conceituais essenciais, o DHAA não pode ser entendido como uma formulação estática. De outro modo, uma visão crítica pode constatar que o significado do DHAA é fruto das permanentes disputas políticas. Diferentes atores buscam se apropriar e, consequentemente, atribuir diferentes sentidos a ele.
Assim, a simples positivação do DHAA nos textos normativos é importante, mas não suficiente para a erradicação da fome e da democratização de uma alimentação adequada, na medida em que tais normas jurídicas são apenas um ponto de partida no qual o embate político será travado. Uma teoria crítica não deve considerar o DHAA como um conceito estático. Ao contrário, é uma noção dinâmica e fruto de lutas políticas e discursivas que visam a legitimar uma determinada apropriação política e, consequentemente, a ressignificação jurídica do que seria a “alimentação adequada”.
Em segundo lugar, o reconhecimento de uma visão crítica de DHAA depende da rejeição da narrativa jurídica da universalização do homem como sujeito do direito. O véu da universalização oculta que a luta pela efetivação do DHAA se concretiza a partir de uma multiplicidade de rostos, memórias e subjetividades. Em contraponto à universalização do homem, deve ser interpretado à luz da história das lutas concretas dos movimentos sociais, a exemplo do esforço pela erradicação da fome e da pobreza, a luta pela democratização da terra, a batalha pela soberania alimentar e a promoção da saúde pública.
No lugar do homem como sujeito universal, uma visão crítica de DHAA deve reconhecer a centralidade dos sujeitos coletivos como elementos fundamentais na dinâmica conflituosa das demandas relacionadas ao direito à alimentação. Daí, a relevância de reconhecer a legitimidade – discursiva e jurídica – da pluralidade das formas de produção, circulação e produção de alimentos, tal como reivindicam a Via Campesina, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), indígenas, quilombolas, os extrativistas (seringueiros, quebradeiras de coco babaçu, os castanheiros, cipozeiros, piaçabeiros), ciganos, pescadores artesanais (caiçaras, marisqueiras, pantaneiros), famílias ribeirinhas.
Da mesma forma, a crítica ao universalismo constitui uma condição para a visibilidade das assimetrias de gênero, raça e classe relacionadas ao modo de reprodução do sistema alimentar hegemônico. Uma política de segurança alimentar e nutricional (SAN), fundamentada em uma visão crítica do DHAA, deve ser capaz de adotar uma perspectiva multidimensional e transversal da questão alimentar a partir do reconhecimento das demandas feministas, do movimento negro, sindical e dos trabalhadores rurais.
Além da universalização, a abstração constitui outra característica marcante de uma visão clássica dos Direitos Humanos. De fato, uma visão crítica deve reconhecer que a luta pela definição da noção de “alimentação adequada” é fruto de embates sociais reais.
Nesse sentido, o sentido de direito humano à alimentação adequada não é o resultado de uma definição estática da ordem jurídica, mas do produto de lutas concretas, caso da batalha contra a monopolização do comércio mundial de sementes, o debate acerca do avanço dos agrotóxicos, a liberalização da aquisição de terras pelos estrangeiros, a disputa dos modelos de rotulagem frontal, a guerra contra a taxação de bebidas açucaradas e o combate contra a limitação da propaganda dos ultraprocessados. São essas lutas concretas que moldam a definição jurídica do conceito de direito humano à alimentação adequada.
A principal contribuição de uma perspectiva crítica é compreender que a fundamentação do DHAA também é um objeto em disputa na sociedade. Ele pode ser apropriado e utilizado como um direito emancipatório ou como um direito reacionário. A narrativa do direito à alimentação adequada pode ser compreendida como uma noção exclusivamente centrada na escolha individual na qual as determinantes sociais não são consideradas e, consequentemente, reproduzir a naturalização de sistema alimentar assimétrico e injusto.
Por outro lado, o DHAA, se compreendido como nova gramática à luz das lutas e demandas reais dos movimentos sociais, o direito humano à alimentação adequada pode proporcionar as condições teóricas e políticas para a organização de um sistema alimentar alternativo orientado pela democratização fundiária, a inclusão produtiva e a desmercantilização da comida, como consta do Guia Alimentar para a População Brasileira.
* Leonardo Corrêa é Doutor em Direito Público pela PUC-MG. Professor da graduação e mestrado na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e coordenador da Rede de Estudo e Ações em Justiça Alimentar (Reaja).
* Lucas Costa Oliveira é mestrando em Direito e Inovação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e pesquisador da Rede de Estudo e Ações em Justiça Alimentar (Reaja).
* Os autores agradecem os comentários e sugestões da professora e pesquisadora Mariana Fernandes, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, do Campus Macaé.
Foto em destaque: Grupo Reaja