É normal que as pessoas estejam enfurecidas e frustradas. Mas tudo o que o candidato à Presidência propõe só fará piorar esse sentimento
Jair Bolsonaro é um sequestrador. Ele captou e raptou a raiva de milhões de pessoas que, com toda a razão, estão enfurecidas e frustradas – são 68%, segundo o Datafolha. Todos os dias somos forçados a dedicar nossas melhores energias a atividades que no mais das vezes não escolhemos. Tudo para arcar com compromissos que não fomos nós que criamos.
Enquanto isso, sentados na frente do computador ou viajando em aviões privados para destinos exclusivos, poucos homens desfrutam da riqueza criada pelo trabalho de todo o restante da humanidade. Sete deles controlam o mesmo patrimônio que 3,6 bilhões de pessoas, metade da população mundial.
Os dados são de um estudo recente da ONG britânica Oxfam. E, se você acha que a Oxfam é um agente petista a serviço do grande comunismo internacional, regido desde o inferno por Fidel Castro, esse texto não tem nada a te dizer. Mas, se você tem dúvidas legítimas e está aberto ao debate, talvez valha gastar os próximos minutos por aqui. Tudo o que está colocado nos próximos parágrafos pode ser checado por você com pesquisas simples na internet, o que é infinitamente melhor do que acreditar naquilo que te chega de fontes suspeitas via WhatsApp.
O que a Oxfam mostra é que 82% da riqueza criada no mundo no ano passado foi parar nas mãos do 1% mais rico. E essa fatia só está crescendo, o que não tem segredo: para bilionários ficarem ainda mais bilionários, nós temos de ficar mais pobres.
No Brasil, cinco caras têm a mesma riqueza que 100 milhões de pessoas – a metade mais pobre da população. E aqui vale a mesma constatação: não é à toa que sentimos a grana ficar cada vez mais curta. Essa não é uma questão de mérito. Esses caras viraram superbilionários com muito dinheiro público e muitos favores. É só entrar no site do BNDES, clicar na seção Transparência e começar a olhar os maiores beneficiários, sempre com taxas muito baixas, cláusulas contratuais vagas e prazos dilatados de pagamento.
Ah, mas eles criam empregos. Poucos, perto do dinheiro que pegam. E precários. A real é que a maior parte dessa fortuna se reproduz no mercado financeiro, em operações que pouca gente entende, quase ninguém rastreia e nada criam no mundo real. É dinheiro que entra numa nuvem virtual e nela ficará para todo o sempre, cada vez crescendo mais às custas de recursos do Estado e do desmonte das regras democráticas.
Mas o Lula não está nessa lista dos mais ricos, não? Não, meu velho, não tá. A ideia desse texto não é passar um pano nas enormes besteiras que o PT fez. Foram muitas. E tem razão quem se sente traído pelo partido. Mas, quando a gente olha a máquina como um todo, vê que os políticos são apenas uma peça importante da engrenagem que faz os bilionários virarem megabilionários. Traduzindo cruamente, muitos desses políticos são apenas funcionários muito dedicados à causa do patrão, e de fato muito bem pagos, ainda que não sejam os donos das maiores fatias.
E, sim, eis que surge Bolsonaro, que está há três décadas na política tradicional, tendo integrado o nada honroso PP e apoiado os governos Lula e Dilma. Em 2014, por exemplo, a JBS, envolvida em vários casos de corrupção, bancou metade da campanha dele. Se você for olhar para a atuação dele como deputado, vai encontrar um montão de casos em que essas empresas saíram favorecidas. Há levantamentos completos internet afora sobre o histórico parlamentar do candidato à Presidência.
Aqui é preciso bater a real: nem Bolsonaro, nem Fernando Haddad, nem ninguém da política pode tirar esse sistema das mãos dos bilionários. O máximo que se consegue é arrancar um quinhão maior em prol de políticas sociais. O máximo. Então, é para isso que seria bom direcionarmos nossa raiva: para uma mudança real do sistema político.
Você talvez esteja muito puto porque nos últimos anos perdeu emprego, renda, direitos trabalhistas, o sonho de um dia se aposentar. São perfeitamente compreensíveis a frustração e a irritação com o desmoronar de uma vida que parecia toda arquitetada em direção à tranquilidade. Milhões de nós estamos na mesma. Motoristas de Uber, desempregados, advogados fazendo bico para ganhar migalhas, universitários sem a menor chance de atuar na área, domésticas submetidas a condições terríveis e por aí vai.
Nesse caso, o Bolsonaro é a pior opção. O que ele propõe é aprofundar os erros do segundo mandato da Dilma Rousseff e do governo Michel Temer. Lembra que dois anos atrás muita gente, talvez você, saiu às ruas para “primeiro tirar a Dilma, depois tirar o resto”? Havia muita gente convicta de que o impeachment era o melhor caminho, de que não tinha como dar errado, de que “desse jeito não é possível ficar”.
Pouco depois, vários prefeitos foram eleitos com a promessa de varrer “tudo o que está aí”. E mais uma vez tinha muita gente convicta de que essa história daria muito certo. Alguns desses prefeitos abandonaram o cargo pouco tempo depois, e a única coisa que conseguiram acelerar foi uma grave crise de gestão municipal.
Será que o Bolsonaro não é a mesma ilusão? Será que não é hora de construirmos algo sólido, em vez de apostar na salvação da pátria?
É provável que sua vida estivesse melhor em algum momento no final da década passada. Um motivo central para isso é que o Estado marcou presença na vida das pessoas. Havia mais investimento na criação de empregos. Havia mais recursos para educação, saúde, segurança e tudo isso que te parece justo que o Estado forneça.
O que o Bolsonaro propõe é o contrário disso. E esse é um dos motivos pelos quais você não deve esperar dele nenhuma solução para o desemprego. Na verdade, nenhum presidente poderá resolver completamente a situação. Simplesmente porque nesse meio tempo a tecnologia passou a ameaçar dezenas de milhares de postos de trabalho. Será preciso descobrir um novo caminho. E isso não pode ser feito sozinho.
E também porque nesse período o mercado financeiro avançou vorazmente sobre a economia real. Lembra daqueles megabilionários lá de cima? Esses caras ganham muito mais especulando do que investindo em empregos. Por que criar uma empresa, arrumar funcionários, estruturar a logística, preocupar-se com as vendas se eu posso simplesmente reproduzir meu dinheiro num elaborado algoritmo dentro do computador? Esse dinheiro não vai voltar pra gente. Esquece. A menos que a gente junte a raiva em favor de algo produtivo: em favor de uma regulação global do mercado financeiro, por exemplo.
Na base do salve-se quem puder, que é o que propõe Bolsonaro, a gente sabe que só se salva quem tem dinheiro pra isso. Não sou eu. E não é você.
E aqui a gente precisa conversar sobre segurança. Essa história de distribuir armas aos “cidadãos de bem” pode parecer muito interessante num país com níveis bisonhos de violência. Mas você consegue se enxergar apertando o gatilho? Você mora em um castelo? De novo, quem pode pagar por essa segurança toda não somos nós. Nós seremos o alvo.
Se você é um homem negro e pobre, então, um presidente declaradamente racista só vai agravar uma política clara de extermínio. Em alguns estados, negros morrem até 300% mais que os brancos por homicídios. Os dados são do Mapa da Violência, documento que você pode baixar e checar.
Se você é uma mulher negra e pobre, o salve-se quem puder não te deixará em melhor situação. Um sujeito que já defendeu abertamente o estupro não irá ajudar a frear a violência sexual. Ele também é favorável a que mulheres ganhem menos, mesmo exercendo as mesmas funções. Nesse caso você pode pegar os dados do Dieese e ver que as mulheres estão no topo da escala de desigualdade do mercado de trabalho.
Ah, mas eu estou bravo porque tenho de pagar impostos por serviços públicos de má qualidade. Isso é porque a maior parte do orçamento vai para o pagamento do “serviço da dívida”, ou seja, para remunerar os nossos amigos bilionários. É nesse tipo de atividade que essa galera ganha dinheiro de verdade, e não criando empregos. De novo, nossa raiva estaria bem direcionada tentando entender como essa dívida se formou e como fazemos para transformar esses recursos em investimentos públicos.
A equipe econômica de Bolsonaro chegou a propor que todo mundo pague imposto igual, de 20%. Eu, você, os bilionários. O Instituto de Justiça Fiscal propõe vários caminhos para taxar o andar de cima. Ao menos R$ 58 bilhões ao ano entrariam nos caixas se cobrássemos um imposto maior sobre os lucros, que hoje respondem por uma tributação bem menor que o Imposto de Renda de Pessoa Física.
Isso é feito em países nada comunistas: a maior parte da Europa adota alíquotas maiores para os mais ricos. Não será o bilionário Paulo Guedes, ministro da Fazenda de Bolsonaro e megaespeculador, quem colocará um freio nessa história.
Se você está disposto a votar em Bolsonaro, posso imaginar que seja contra práticas corruptas, certo? Então, você vai votar num cara que já declarou que o certo é sonegar impostos? Que admitiu usar auxílio moradia para pagar prostituição? O cálculo é de que meio trilhão ao ano seja sonegado. Isso mesmo: R$ 500 bilhões. O número é do Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional, e mais uma vez pode ser checado. Esse pessoal entende como poucos por onde a grana entra, por onde sai, por onde deixa de entrar. E, pela última vez, vamos falar sobre raiva: é você quem sonega imposto?
A má notícia, em resumo, é que o Bolsonaro não é o cara que você está procurando para canalizar sua frustração, seu sentimento de que algo vai muito mal. Pelo contrário, ele só fará aumentar sua raiva. A boa notícia é que nas últimas semanas brotaram centenas de grupos autônomos que querem de verdade melhorar as coisas. Com certeza tem nesse meio gente com quem você se identifica. E com quem você pode somar essa raiva toda para fazer algo produtivo. Assim que o Bolsonaro topar devolvê-la, é claro.