Duas décadas depois do início do Nafta, pobreza não caiu, obesidade explodiu, diabetes se transformou em principal causa de mortes e condições laborais pioraram
Continência à bandeira dos Estados Unidos, encontros diversos em Washington e Nova York, ligação de primeira hora de Donald Trump: em meio a inúmeras dúvidas, o alinhamento à Casa Branca é uma das certezas do governo Jair Bolsonaro. O futuro ministro da Fazenda, Paulo Guedes, quer buscar novos acordos de comércio e não esconde o desprezo pelo Mercosul, que sequer parece conhecer.
Se é bom para os mercados pelos quais Guedes pretende zelar, um alinhamento comercial com os Estados Unidos pode não ser bom negócio para a população. É sempre bom olhar para o México, e para além dos sinais meramente econômicos.
Qual é o papel dos acordos de livre comércio na explosão dos índices de obesidade? Uma indagação de difícil resposta, mas que precisa ser colocada na mesa. É inegável que a derrubada de fronteiras nacionais desde os anos 1990, garantindo a livre circulação de corporações (e não de pessoas), globalizou o acesso a alimentos não saudáveis.
A conhecida representação gráfica da organização não governamental Oxfam, que mostra que a quase totalidade do que comemos vem de dez corporações, é a melhor síntese desse processo. De lá para cá, compartilhamos no mundo de um mesmo destino: a explosão dos índices de obesidade.
O trabalho do fotógrafo estadunidense Gregg Segal, divulgado pelo jornal Folha de S. Paulo, também dá uma síntese breve dessa história. Crianças nas mais diferentes partes do mundo comendo o mesmo tipo de porcaria – e engordando igual.
Alguns trabalhos acadêmicos têm lançado luzes sobre a associação entre livre comércio e obesidade. Um livro recém-lançado nos Estados Unidos vai a fundo nas consequências nefastas do Tratado Norte-americano de Livre Comércio, o Nafta. O título não deixa dúvidas do lado adotado pela autora, Alyshia Gálvez: Eating Nafta. Trade, food policies and the destruction of Mexico [Comendo Nafta: comercio, políticas alimentares e a destruição do México].
Mas o desenrolar das 260 páginas vai bem além das expectativas. A primeira impressão é de que a grande consequência do Nafta para o México foi a inundação de comida-porcaria. E isso é verdade. Porém, a sacada de Alyshia, que é professora de Estudos Latino-americanos no Lehman College, da Universidade da Cidade de Nova York, é dar uma análise sistêmica ao problema. Ela mira as consequências econômicas, mas também aspectos sociais e culturais relacionados ao acordo.
“Em certo momento achei que seria uma loucura olhar para tantos aspectos. Mas vi que era necessário. Não é possível separar o que colocamos na mesa em casa do sistema alimentar, das decisões dos ministros da área econômica, do ideal de modernidade que se vende”, ela nos contou em bate-papo por telefone.
“Há uma visão da necessidade de modernizar a economia, não importa a que preço. Não importam a saúde, o trabalho, os aspectos sociais. É um trato com o diabo. Em troca dessa promessa de prosperidade, que não se cumpre, muda-se tudo. A cultura, a estabilidade do campo, a estrutura familiar. A migração, a perda da família, o aumento da violência, a precariedade, a pobreza e as doenças crônicas são vistas como um preço a pagar.”
E é nisso que a pesquisa de Alyshia pode ser extrapolada a outros países. Sim, o México tem uma peculiaridade: ser vizinho dos Estados Unidos não é para qualquer um. Mas o enfraquecimento da agricultura familiar, a desvalorização do conhecimento tradicional, a impossibilidade de adotar políticas de proteção de empresas nacionais e regionais, a precarização da força laboral e a perda de renda são aspectos comuns a vários países – esse conjunto soa familiar?
Bolsonaro declarou a intenção de reforçar os retrocessos da reforma trabalhista de Michel Temer, e citou como exemplo os Estados Unidos. Alyshia aborda o tema, mostrando como os imigrantes mexicanos, submetidos a péssimas condições de vida, acabam também expostos a uma série de doenças.
“Nós podemos ver que o balanço do Nafta não é apenas um sistema alimentar modificado, mas uma mudança da relação entre o Estado e seu povo. O Nafta não é um simples contrato entre nações para regular o comércio, mas um acordo entre signatários com ideias calcadas no mercado como solução dos problemas da sociedade”, diz o livro. A partir da perspectiva do Nafta, argumenta Alyshia, tudo é colocado sob a sorte do mercado. E, no mercado, vire-se quem puder.
Os resultados são desastrosos. O sobrepeso chega a 71,3% da população, com 32,8% de obesos. A obesidade entre mulheres cresceu 270% desde o início do Nafta, em 1994. Segundo a pesquisadora, 80 mil mexicanos morrem de diabetes tipo dois por ano. A doença avançou em média 2% ao ano nas últimas duas décadas, e agora é a principal enfermidade causadora de mortes no país, seguida por problemas cardíacos e renais, igualmente associados à alimentação.
“Os mesmos grupos sociais vistos na época colonial e no período pós-independência como incapazes de assumir responsabilidades como cidadãos acontecem de ser os culpados por sua própria suscetibilidade a doenças relacionadas à alimentação”, escreve a autora.
Enquanto isso, a promessa de prosperidade não se cumpriu. 55,1% dos mexicanos vivem na pobreza. E a precarização avançou a olhos vistos: a média salarial aumentou apenas 4,1% ao longo dos últimos vinte anos.
Os motores do atraso
Eating Nafta começa pelo campo. É na área rural que tem início um efeito-dominó desastroso. Um ex-ministro contou à autora que a migração forçada de 500 mil camponeses foi prevista como efeito de primeira hora do acordo de livre comércio. Para isso, foi criada uma narrativa de uma agricultura atrasada, improdutiva, responsável pelos problemas sociais do país.
A suposta baixa produtividade do milho mexicano serviu de argumento para criar um “déficit” que só podia ser resolvido com a abertura total ao grão produzido nos Estados Unidos. É aqui que a ode ao livre mercado dá o primeiro tropeção: os agricultores do outro lado da fronteira, fortemente subsidiados, chegaram arrasando a agricultura ao sul do rio Grande. Um desastre que levou à perda de um elemento central da cultura mexicana desde muito antes da invasão europeia. Um milho de alta qualidade e com melhor valor nutricional.
“Apresenta-se o campo como um obstáculo à modernidade. Há que descampesinar o campo e integrá-lo à economia industrial. Vende-se um ideal de modernização do campo sem pessoas. Essa ideia é errônea. Foi o pequeno agricultor quem subsidiou a economia do país por muito tempo”, questiona Alyshia. Para ela, a narrativa da eficiência anula aspectos muito importantes para os produtores rurais, que enxergam a relação com o milho como algo muito além do meramente econômico.
Se falta milho, faltam tortilhas. Aqui o Nafta surfa numa onda iniciada algumas décadas antes, quando desde o Estado se criou a ideia de que a tecnologia poderia melhorar esse item fundamental da mesa mexicana, apresentado como algo antiquado. O resultado foi a perda dos modos tradicionais de produção, hoje sabidamente melhores em termos nutricionais – sem falar no sabor.
É então que Alyshia dá mais um passo importante. Ela observa a gourmetização da culinária mexicana em nível global. “Eu me dei conta de que é um processo paralelo. Um viabiliza o outro. Um chef não pode cobrar um preço altíssimo para um prato se esse prato está em cada esquina da cidade. Esse valor econômico deriva em grande parte de que esses produtos vão se tornando escassos. Chefs podem vestir um sombrero de salvadores, de quem reivindica essa tradição, essa culinária, e assim podem cobrar muito.”
Precarizados, os imigrantes mexicanos nos Estados Unidos e os mexicanos que ficaram trabalham longas jornadas, moram longe de casa, ganham pouco. E já não encontram ingredientes frescos. Assim, manter uma culinária que demanda dedicação e acesso a bons alimentos, antes baratos e agora caros, vira um desafio.
Em simultâneo vêm outras duas construções narrativas. A de que a tecnologia libertou as mulheres do trabalho doméstico. E a de que cozinhar é algo antiquado. Mais um momento em que a história do México tanto se parece com a nossa. Os conhecimentos tradicionais sobre alimentação são desacreditados, e cria-se uma hierarquia na qual ultraprocessados são colocados no topo, como sinônimos de status.
Se a narrativa é individual, conseguir comprar esses produtos para a família é indicador de sucesso. “Isso nos leva a perguntar se a alimentação tradicional mexicana será reduzida a uma elite, uma experiência de luxo para alguns, ou preservada para todos”, indaga o livro.
O corpo humano é transformado, então, em depósito dos excedentes, como diz Alyshia. Da carga excedente de trabalho. Do excedente de produção alimentar. E cada indivíduo precisa ser educado devidamente para se tornar um bom consumidor: saber comprar, saber comer, saber se manter saudável.
“Em vez de vermos uma discussão mais ampla entre os dois países sobre a necessidade de regular alimentos hiperpalatáveis, que agora, cada vez mais próximos de seu momento ‘indústria do cigarro’, são inequivocamente associados com consequências deletérias para a saúde, vemos a promoção e o patrocínio público do yoga, da zumba, da meditação, e educação nutricional para ‘ensinar’ os pobres a serem saudáveis”, resume o livro.
Em destaque: ONG El Poder del Consumidor promove prisão simbólica de mascotes de corporações alimentícias.