Coca-Cola é investigada por esquema bilionário para não pagar impostos

Transbordante, vazando altas cifras e nomes poderosos aos litros, um conjunto de denúncias teve efeito efervescente num gabinete da Receita Federal, no centro de Santa Maria, interior do Rio Grande Sul, no dia 9 de outubro de 2018. Depoimentos chegaram preparados para desnudar operações fiscais bilionárias (e suspeitas) embaladas pelo rótulo de uma das marcas mais conhecidas e influentes do planeta: a Coca-Cola.

Naquela data, o órgão fiscalizador recebeu testemunhos e documentos reveladores sobre misteriosas transações que envolvem o Imposto sobre Produtos Industrializados, o IPI, e a maior fabricante brasileira do concentrado de Coca-Cola, a Recofarma Indústria do Amazonas Ltda. Sim, o “xarope de Coca”, considerado o principal insumo da “receita mágica e secreta” do refrigerante que vende 1,7 bilhão de latas, copos ou garrafas por dia no mundo, também é produzido na Amazônia, mais precisamente na Zona Franca de Manaus.

O “Intercept” e O Joio e o Trigo conseguiram acesso aos documentos internos da Receita Federal em que constam depoimentos realizados nos anos de 2017 e 2018. Neles, ao menos duas testemunhas fizeram declarações e apresentaram material de denúncia do superfaturamento de preços de produtos do sistema Coca-Cola e evasão fiscal.

Há anos, auditores da Receita suspeitam de superfaturamento no preço do xarope fabricado em Manaus. Inicialmente, o concentrado era produzido pelas próprias engarrafadoras, empresas que diluem o xarope em água e gás, colocam nas embalagens e distribuem os refrigerantes. Porém, incentivos fiscais criados na década de 1990 abriram a brecha para que as corporações de bebidas açucaradas instalassem fábricas no estado do Amazonas – uma operação que dá mais dinheiro, já que são muitas as isenções tributárias. Com sede de lucros, a Recofarma começou a operar por lá em maio de 1990, centralizando a fabricação do concentrado e deixando as envasadoras com as outras etapas produtivas.

Em média, as engarrafadoras pagam entre R$ 140 a R$ 200 pelo concentrado da Recofarma, enquanto o mesmo produto é exportado a outros países por 22 dólares, em torno de R$ 70, no máximo.

Essa é a origem da suspeita da Receita Federal: como as engarrafadoras da Coca são tão competitivas (a megaempresa lidera a participação de mercado de refrigerantes no Brasil) pagando preços tão altos pela principal matéria-prima? Quando o auditor fiscal responsável por tomar os depoimentos em Santa Maria despejou o conteúdo das denúncias, ele encaixou uma importante peça nesse quebra-cabeças, um exemplo específico de manobras das quais a equipe do órgão fiscalizador só suspeitava até aquele momento.

No esquema, quanto mais a empresa inflaciona artificialmente o valor do xarope no mercado interno, maior o volume de créditos de IPI revertidos para as transações do sistema Coca-Cola. Esse valor, bilionário, se considerado todo o universo de franquias da corporação, pode ser usado para pagar outros tributos federais.

De acordo com os depoimentos, somente uma das envasadoras e a fabricante do xarope da Coca-Cola cometeram, em um ano, irregularidades com o IPI que resultaram no valor de pelo menos R$ 21,5 milhões. O esquema opera com o que a Receita Federal chama, no Plano Anual de Fiscalização 2018, de “planejamento tributário abusivo“.

R$ 35 do seu bolso para a Coca-Cola

Tudo gira em torno dos subsídios fiscais da indústria. As fabricantes de refrigerantes recebem de R$ 0,15 a R$ 0,20 do governo para cada lata consumida. Em garrafas de dois litros, o valor fica entre R$ 0,45 e R$ 0,50. Todo contribuinte brasileiro, tome ou não Coca-Cola, repassa à indústria R$ 10 ao ano só em IPI. Entre o que deixa de entrar nos cofres públicos e o que sai, cada brasileiro arca com R$ 35 anualmente em incentivos transferidos especialmente às gigantes de bebidas Coca-Cola, Ambev e Brasil Kirin, que possuem fábricas de xaropes na Zona Franca.

Isso ocorre porque a Constituição determina que as empresas não paguem um imposto mais de uma vez entre uma etapa e outra da industrialização. Para evitar um efeito em cascata, o poder público cria uma compensação sobre o imposto que foi pago na etapa anterior. Na prática, isso significa que, se a engarrafadora compra o concentrado de Coca-Cola a R$ 100 a uma alíquota de 20%, tem direito a R$ 20 em créditos.

O problema é que o IPI é zero na Zona Franca de Manaus. Ainda assim, as engarrafadoras que compram o xarope da Recofarma cobram o crédito em cima do imposto cheio, o que, por si só, já é uma distorção tributária, de acordo com a legislação brasileira e avaliações da equipe da Receita.

Coca e Ambev recebem a maior parte dos R$ 2 bilhões saídos só do IPI dados anualmente a quem compra concentrados de refrigerantes, chás e sucos na Zona Franca. Esse não é o único incentivo: essas indústrias têm isenções de pelo menos outros quatro impostos. Em uma estimativa conservadora, elas deixam de recolher, por ano, mais de R$ 7 bilhões.

A peça que faltava

Os depoimentos realizados em Santa Maria mostraram em detalhes como a Recofarma e a engarrafadora CVI Refrigerantes, pertencente à Companhia Vontobel de Investimentos e franqueada da Coca-Cola no Rio Grande do Sul, superfaturaram os créditos. A denúncia dá exemplos práticos de como o superfaturamento na venda do concentrado e a consequente inflação artificial dos benefícios tributários são mantidos sem que a envasadora tenha prejuízos ou que o sistema de preços da Coca-Cola Brasil entre em colapso.

De acordo com os documentos aos quais tivemos acesso, ocorre um “acerto por fora” entre a Recofarma e a CVI, o que garante que todas as partes envolvidas ganhem – menos o consumidor e os cofres públicos, claro. Por meio de uma expressão contábil que aparece nos depoimentos como “encontro de contas bancárias”, é descrito que a CVI e a Coca-Cola inflacionam os créditos de IPI via notas fiscais superfaturadas pela fabricante do xarope, a Recofarma.

A CVI, na outra ponta, recebe as notas fiscais como se fosse uma operação normal. Mas não as paga de fato (total ou parcialmente), já que o dinheiro retorna por meio de transferências bancárias, garantindo a devolução da grana que a compradora “pagou” a mais pelo xarope.

Os denunciantes dizem que as empresas dividem meio a meio os créditos gerados artificialmente com o IPI. Segundo a denúncia, a manipulação financeira é coordenada pela Recofarma e, geralmente, envolve quantias milionárias, transferidas sistematicamente no dia 20 de cada mês. “O repasse é realizado sem emissão de qualquer NF. Apenas uma planilha transmite a composição dos valores”, disse um dos depoentes à Receita. As empresas simulariam a entrada de recursos como reembolso de despesa de propaganda e até manutenção de geladeiras e freezers, de acordo com os depoimentos. “Essa sistemática, com certeza, é realizada por todo o sistema Coca-Cola no Brasil”, enfatiza uma testemunha.

Recofarma se instalou confortavelmente na Zona Franca de Manaus. (Foto: Reprodução/Google Street View)

A CVI é uma das menores fabricantes da marca no Brasil em termos de volume produzido e faturamento entre as 42 operadas por 16 grupos empresariais franqueados, todos coordenados pela Coca-Cola Indústrias. Ou seja: há a possibilidade de esse esquema ser muito maior.

A denúncia abriu uma nova linha de investigação na Receita. A partir da transação entre Recofarma e CVI, os auditores agora querem analisar as demais operações da Coca-Cola no Brasil.

Por dentro da fábrica de créditos

As planilhas anexadas às declarações, denominadas de “espelhos de lançamento contábil”, compreendem quase 12 anos, de agosto de 2002 a abril de 2014. Elas contabilizam o “encontro de contas Recofarma x CVI” em vários períodos. Somente a mais recente, de maio de 2013 a abril de 2014, torna cristalina a dimensão dos valores desse “ajuste”. O cruzamento de dados que fizemos mostra que a empresa gaúcha recebeu mais de R$ 21,5 milhões em apenas 12 meses no “caixa 2” do IPI.

As transações são investigadas ao menos desde 19 de novembro de 2017, data de um depoimento fundamental. Nele, o auditor fiscal perguntou a um dos denunciantes qual o parâmetro de determinação dos valores reembolsados e recebeu a afirmativa de que a base é calculada de acordo com “o volume proporcional de compras de concentrado realizadas pelos franqueados junto da Recofarma”. É o indício que evidenciou o tipo de relação da empresa com a franqueada.

Mas uma parte do diálogo entre o fiscal e o depoente chamou atenção. Perguntado como os recursos do esquema são usados pela fabricante, a testemunha revelou que “uma vez que os recursos foram recebidos pela CVI, ela tinha total liberdade para dispor deles como melhor lhe aprouvesse”.

A Coca-Cola Brasil respondeu à reportagem. Foi econômica, mas admitiu a existência da investigação. Por meio da assessoria prestada pela Agência Textual, a megaempresa afirmou que, em 28 anos na Zona Franca de Manaus, “mantém a mesma política de preços, e a forma de operação segue o modelo estabelecido por lei para todas as empresas do Polo de Concentrados”. Segundo a empresa, “o caso mencionado está na esfera administrativa, em fase de recurso”.

O responsável pela contabilidade da CVI, Vicente Piccinini, se comportou de forma ainda mais sucinta e evasiva: “esta demanda [as perguntas da reportagem] foi respondida ontem, pela Textual, agência do Sistema Coca-Cola Brasil”, disse.

Tráfico de influência

A CVI não tem exatamente um bom histórico quando se trata de tributos. Em 2012, foi citada num escândalo de tráfico de influência na Receita Federal. Documentos obtidos com exclusividade pela revista Época indicavam irregularidades cometidas dentro do órgão. O autor dos desvios de conduta era o auditor fiscal Pedro dos Santos Anceles, que hoje não trabalha mais na Receita.

Anceles foi demitido no final de 2011 por ter repassado informações sigilosas a empresas. A demissão por improbidade administrativa partiu do então ministro da Fazenda Guido Mantega, no primeiro ano de mandato da presidente Dilma Rousseff.

Pedro Anceles dava palestras e cursos e chegava a se ausentar do trabalho para dar consultorias ao setor privado, além de participar, como funcionário da Receita, do julgamento de um recurso movido contra multas recebidas por um cliente a quem prestava serviços. E lá estava a CVI, acusada de envolvimento num dos casos mais graves de que o ex-auditor participou. Em 2007, a fabricante de refrigerantes do Rio Grande do Sul havia sido autuada em três processos distintos por sonegação de tributos, incluindo PIS e Cofins.

Segundo a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, a PGFN, Anceles prestou consultoria para a empresa. “Constata-se que a natureza do trabalho prestado é incompatível com o cargo de auditor fiscal e de delegado de julgamento, haja vista que foi verdadeira consultoria tributária, atividade que configura patente conflito de interesses”, ressaltaram os procuradores. Nessa época, Anceles era delegado de julgamento do Fisco justamente no município de Santa Maria.

Nas bases de dados da Receita, a empresa também não está bem na foto. Em registros deste ano, do dia 29 de março, a CVI constava da lista da dívida ativa federal como uma das maiores devedoras de ICMS da décima região fiscal, com mais de R$ 15 milhões não recolhidos, que estavam na fase de discussão judicial.

Recofarma: sinônimo de Coca-Cola e lobby

A Coca-Cola Brasil é uma subsidiária da matriz americana, a The Coca-Cola Company. Atuante por meio de uma divisão nacional, ela controla o sistema da marca no país e possui duas fábricas engarrafadoras próprias, a Coca-Cola Indústrias Ltda e a Recofarma Indústrias do Amazonas Ltda, produtora de xarope que abastece todas as fabricantes no Brasil e também Argentina, Colômbia, Paraguai, Venezuela, Uruguai e Bolívia.

No Brasil, nomes de peso da política são parte do sistema. O segundo maior engarrafador de Coca por aqui é o senador tucano Tasso Jereissati, atrás apenas da própria Coca-Cola. A empresa dele, Solar, figura também entre as 20 maiores envasadoras da marca no mundo, graças ao monopólio que exerce no Nordeste.

Por influência ou não de políticos como Jereissati, a Coca tem conseguido manter os incentivos à compra de concentrados da Zona Franca. Para que se tenha uma ideia, a receita da Coca na América Latina em 2015 foi de US$ 1,023 bilhão – cerca de R$ 3 bi, segundo a cotação atual.

Em 2018, o governo federal aprovou um decreto para reduzir de 20% para 4% as alíquotas de IPI – na prática, a medida daria fim à farra dos créditos. Mas os senadores, não à toa, atuaram firmemente para revogar a medida – em 11 de julho, aprovaram um projeto para tentar restituir os subsídios públicos à indústria.

A iniciativa foi encabeçada por três senadores do Amazonas – Vanessa Grazziotin, do PCdoB, Eduardo Braga, do MDB, e Omar Aziz, do PSD, eliminando a divisão por legendas e criando, por motivações nada nobres, um bloco suprapartidário que unificou parlamentares conectados à Zona Franca de Manaus e às corporações de refrigerantes. Na Câmara dos Deputados, o projeto chegou a avançar, mas foi arquivado após votação contrária na Comissão de Finanças e Tributação.

O caso é um novo episódio de um ano complexo para a empresa. No mundo todo, impostos sobre bebidas adoçadas foram adotados para coibir o consumo de refrigerantes e foram acumuladas mais e mais evidências dos danos à saúde provocados pelo produto carro-chefe da The Coca-Cola Company. O Brasil ofereceu uma temporada particular de dissabores.

Agora, o verão promete ser quente para a Coca.

Por Moriti Neto

É editor e repórter. De preferência, repórter.

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