O Joio e O Trigo

O mercado financeiro quer tudo dos serviços de água e esgoto. Isso não é uma boa notícia

Fundos de investimentos e Banco Mundial forçam a mão no argumento de que só o setor privado poderá resolver os problemas de saneamento no Brasil


“Pescadores de águas turvas” é uma série de cinco reportagens do Joio sobre a Medida Provisória 868. Ao longo das últimas semanas, reviramos documentos, conversamos com várias pessoas, assistimos a horas e horas de debates e audiências públicas



“As empresas privadas hoje têm boa condição de captar recursos no mercado para investir no setor”, avisou Percy Soares Neto, da Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon). “Quem está discutindo a MP, todos nós já conversamos com bancos, com fundos de investimentos. Há um interesse grande do mercado pelo setor de saneamento no Brasil. Esse é o setor de infraestrutura que não passou por um ciclo de investimento estruturado.”

Ninguém pode reclamar de falta de sinceridade em 2019. A Abcon poderia tentar esconder o apetite dos fundos de investimento pelo setor de saneamento. Mas quis declarar em alto e bom som que o capital especulativo espera a aprovação da Medida Provisória 868 para entrar com tudo.

Já sabemos que a MP surgiu de um pedido da Abcon ao governo Michel Temer. E que essa associação representa os grandes grupos privados de saneamento. Também sabemos que, mantido o texto inicial, os municípios seriam forçados a consultar as empresas privadas sobre o interesse em prestar os serviços de água e esgoto. E sabemos melhor ainda que o mercado financeiro gosta de retornos rápidos. E cada vez maiores.

Assim, nada melhor que uma medida que force os municípios a entregar os serviços de água e esgoto ao setor privado. Que force as pessoas a pagarem pelo serviço de esgoto, utilizem ou não, tenham condições ou não. Que passe por cima das câmaras de vereadores para converter contratos firmados com o poder público em contratos com o setor privado, sem licitação. É uma agressividade típica do mercado financeiro.

No ano passado, como senador, Roberto Muniz (PP-BA) foi uma figura-chave na negociação dessas questões. Antes da MP, ele estava com pressa. Coube a ele o Projeto de Lei 1, de 2018, apresentado no primeiro momento do ano legislativo com o intuito de alterar a Lei Nacional de Saneamento Básico. A ideia central era a criação dos Certificados de Recebíveis de Saneamento (CRS), um título de crédito lastreado no mercado financeiro, nos moldes do que ocorre em outras áreas.

Na visão dele, era a medida necessária para “dinamizar” o saneamento. “Não bastam os bons fins. Necessário é que tenhamos os bons meios. A melhora do saneamento básico só pode ocorrer por meio do aumento do investimento público, se houver recursos para isso, e por meio do aumento do investimento privado no setor.”

As empresas privadas já atuam nos serviços de água e esgoto de 320 municípios, chegando a 15% da população. Os maiores grupos, controlando a quase totalidade do serviço, são BRK Ambiental, Aegea Saneamento e Participações, Grupo Águas do Brasil, Iguá Saneamento e GS Inima Brasil.

A BRK era da Odebrecht. Com a Lava Jato, a empreiteira vendeu a participação acionária para a Brookfield, fundo canadense que administra ativos em várias áreas. Outro sócio é o fundo japonês Sumitomo Mitsui. Ambos têm muito apetite.

A segunda do mercado, Aegea, tem história similar. Hoje, é controlada pela Grua Investimentos, com 48,09% das ações, e por uma profusão de siglas que entenderemos a seguir: FIP, com 10,56%, GIC, com 27,56%, e IFC, com 7,14%.

A FIP Saneamento integra a Infra Asset Management, um fundo de investimentos. GIC é o Fundo Soberano de Cingapura, cuja agressividade precede o nome. Do IFC nós já falaremos.

Financiador, acionista, braço amigo

Marcos Thadeu Abicalil, especialista sênior de Água e Saneamento do Banco Mundial, participou da segunda de três audiências públicas realizadas pela Comissão Especial da MP 868 no Congresso. É difícil imaginar um debate sobre saneamento no Brasil que não convoque Abicalil, no banco desde 2007.

Na audiência pública, ele deixou claro que o orçamento da instituição no Brasil é pequeno comparado ao dos órgãos federais, mas disse que há uma atuação importante em diálogo e assistência técnica. “Nós, do banco, temos total clareza de que o setor público não será capaz de gerar superávits fiscais suficientes para compor o investimento necessário aos três desafios: déficit, clima e envelhecimento da infraestrutura. Precisará haver outra solução que não o recurso fiscal. Até porque o recurso fiscal, além de escasso, tem que competir com outras demandas, como saúde, educação, segurança. Então, o setor tem que buscar mecanismos de financiamento que independam cada vez mais do orçamento fiscal dos três níveis de governo.”

Ele destacou que as tarifas mais elevadas são a chave para bancar os investimentos necessários. E disse que as pessoas pagam a conta de luz por medo de corte, mas procrastinam no pagamento da água porque o corte não se dá com rapidez. “A mudança de cultura corporativa é muito interessante e tem a ver com uma questão de perda. Seguramente uma gestão mais eficiente vai focar em redução de perdas, tanto nessa perda aparente, comercial, e aí o privado tem uma história muito significativa.”

O que Abicalil apresenta como “mudança de cultura corporativa” é também conhecido como “ficar sem água na torneira”. Uma medida aparentemente didática. Se você ganha R$ 800 por mês, pode escolher entre ficar sem água, sem luz e sem comida. Quem disse que as pessoas não têm liberdade de escolha?

Qual o interesse?

O IFC, acionista da Aegea, “é a maior instituição de desenvolvimento global voltada para o setor privado nos países em desenvolvimento”. Trata-se de um braço do Banco Mundial que financia investimentos mundo afora, sem se importar se o endereço dos empreendimentos financiados são paraísos fiscais.

Então, quando o Banco Mundial fala, é como acionista de empresas privadas de saneamento ou como coformulador de políticas públicas?

Por aqui, o IFC diz ter financiado 409 projetos. Há alguns interessantes. Em 9 de maio de 2017 liberou recursos com teto de US$ 20 milhões para a Bozano Investimentos. Essa é (ou era) a empresa de Paulo Guedes, ministro da Economia, hoje diretamente envolvido no debate sobre saneamento – e sobre praticamente qualquer tema de interesse do Banco Mundial.

Segundo a página do IFC, outros US$ 84 milhões foram investidos na Aegea para “ajudá-la a se expandir através do país”, incluindo as regiões Norte e Nordeste, aquelas que apresentam os maiores desafios nos serviços de água e esgoto. Se em 2013 a empresa atendia 2 milhões de pessoas em 29 municípios, agora já são 7 milhões em 50 municípios.

E essa é a questão a se examinar quando se fala em alto e bom som do interesse do mercado financeiro no setor de saneamento. Mundo afora, os investimentos especulativos têm desestruturado serviços e mercados. Saúde, habitação, transporte. Esses fundos dispõem de recursos exorbitantes que tornam impossível que empresas municipais ou até mesmo estaduais tenham força para competir em licitações – desejo explícito da Abcon.

Como acontece no caso da Uber, esses fundos têm condições de manter um negócio no vermelho por um tempo, praticando tarifas mais baixas até quebrar a concorrência. Depois disso, o Estado que se vire para negociar com empresas muito maiores do que ele.

Na apresentação dos resultados financeiros realizada em 5 de abril, o presidente da Aegea, Hamilton Amedeo, afirmou estar “bastante otimista” com as chances de aprovação da MP 868. “É natural que haverá alterações no texto, alguns aspectos que estão incomodando as empresas públicas tendem a ser abrandados. A posição da Aegea é uma posição muito pacífica em relação a essa necessidade. Nós não vemos problemas em que se faça ajustes no texto para atender a algumas expectativas ou alguns problemas que o texto atual da MP possa causar as empresas públicas.”

Dez dias depois, o ministro do Desenvolvimento Regional, Gustavo Canuto, foi ao Congresso prometer uma acomodação exatamente nesses moldes. Em vez de um dispositivo que obrigue os municípios a entregar os serviços ao setor privado, uma estrutura que estimule as empresas estaduais a subdelegar às privadas. A fala de Canuto deixou clara a ideia de que todos saiam ganhando em termos financeiros. Só não é fácil entender como os cidadãos e o saneamento se beneficiarão desse ganha-ganha.

Não é preciso futurologia para entender esses arranjos. A Sabesp já opera com esse tipo de parceria em vários municípios. Com a BRK Ambiental mantém o Aquapolo, apresentado como maior empreendimento de água de reuso da América do Sul. Ao todo, segundo o último relatório aos investidores, são seis iniciativas assim. Em PPPs a Sabesp contava ao final do ano passado com investimentos de curto prazo de R$ 137 milhões, mais que o dobro de 2017.

Em agosto de 2017 a Assembleia Legislativa paulista autorizou o governo estadual a criar uma “sociedade controladora” para a Sabesp, ou seja, a vender os 50,3% que lhe restam. A operação só não foi adiante porque chegaram os ventos eleitorais. Mas não há muita dúvida da disposição de João Doria em carregar a pá de cal.

Atualmente, a empresa tem 31,4% das ações cotadas na Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa) e 18,3% em Nova York. Se alguém quiser saber a opinião do mercado financeiro sobre a MP 868, as ações da Sabesp contam a história melhor do que mil palavras. No ano passado, os papéis na Bovespa estavam cotados em torno de R$ 30.

Em 28 de dezembro valiam R$ 31,50. Veio a caneta de Temer. Em 2 de janeiro, a alta foi de 9,11%, com um volume de negociações três vezes maior que o da sessão anterior. Depois, as ações chegaram a R$ 37, R$ 40, R$ 42. Em Nova York o movimento foi similar.

Pontas juntas

Em julho de 2017 o Water Resources Group (WRG) firmou um acordo de cooperação com a Secretaria de Recursos Hídricos e Saneamento do governo de São Paulo, responsável pela Sabesp (agora convertida em Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente). No mesmo mês o WRG estabeleceu um escritório na capital paulista, coordenado por Stela Goldenstein, uma consultora socioambiental com bom trânsito entre os setores público e privado.

O WRG é mantido pelo IFC, que por sua vez integra o Banco Mundial, e por grandes empresas interessadas nos negócios das águas em geral, da garrafinha de água mineral à água da torneira.

Pedimos ao governo paulista, por Lei de Acesso à Informação, todos os documentos que integram esse acordo. Não tivemos muito calor na acolhida ao pedido. Segundo o que foi divulgado pelo WRG, a ideia é “apoiar o governo e o setor privado a estabelecer uma plataforma de diálogo sistemático que possa identificar prioridades e desenvolver soluções para desafios locais em água”.

Cinco meses mais tarde, novo acordo de cooperação, dessa vez com a Associação Brasileira de Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib), organização altamente interessada na MP 868. O contrato prevê o intercâmbio de boas práticas no uso de recursos hídricos (sem especificar o que são as tais “boas práticas”), com foco claro em políticas públicas, modelos de gestão e eficiência. Prevê-se o desenvolvimento de projetos-piloto para “facilitar a transformação do setor” e a criação de “redes de atores estratégicos (públicos e privados) para a troca de conhecimentos e boas práticas”.

O tema é tão importante para a Abdib que a organização foi a responsável pela captação de recursos para o 8º Fórum Mundial da Água, realizado em 2018 em Brasília e um conhecido espaço de diálogo estratégico entre público e privado. Altamente criticado por movimentos sociais, o evento é realizado a cada três anos pelo World Water Council, que promete reunir todos os interessados na questão da água – o que parece bastante gente, mas é mais dinheiro do que gente. O encontro carrega a crença de que o que é bom para as empresas é bom para mim e para você. É patrocinado por corporações das mais diferentes áreas interessadas no negócio da água, assim como o WRG.

Um dos coordenadores do Fórum Mundial da Água foi Roberto Muniz, então senador envolvido diretamente na questão do saneamento e ex-presidente da Abcon.

Toda essa conversa sobre água e infraestrutura fez lembrar também do secretário de Desenvolvimento da Infraestrutura do Ministério da Economia. Diogo Mac Cord de Faria, como já mostramos, é um dos criadores do Infra 2038. Foi em setembro de 2018 que a turminha da Fundação Lemann se encontrou para um café despretensioso no qual decidiram levar o Brasil ao topo da infraestrutura no mundo.

De lá para cá, o Infra 2038 se envolveu em debates políticos como o da MP 868 – mas não representado publicamente por Mac Cord nem por seu coordenador, Carlos Motta Nunes, também superintendente da Agência Nacional de Águas. Em março de 2018, ou seja, enquanto Brasília recebia o Fórum Mundial da Água, Mac Cord passou a integrar justamente a Abdib na qualidade de membro do comitê encarregado de discutir saneamento.

A partir de janeiro, ele mudou de lado do balcão e passou a discutir com a antiga empregadora os rumos da MP 868.

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