Salário digno, fruto de qualidade e sustentabilidade são resultados de integração de comunidades e posse de terras
A fala causa impacto. “Essa região tem cacau há 250 anos, mas o agricultor nunca comeu um chocolate de qualidade”. Quem afirma é Luciano Ferreira da Silva, agricultor do Assentamento Dois Riachões e coordenador político da Rede de Agroecologia Povos da Mata, no Sul da Bahia.
É assim que ele nos abre as portas para que comecemos a entender o histórico de lutas em torno do cacau, um panorama em que poderosos interesses privados muitas vezes se sobrepuseram ao desenvolvimento coletivo, até que a organização comunitária iniciou uma reação.
Durante o período colonial, a economia daquela região era concentrada na produção de açúcar. Havia ao menos oito engenhos na Capitania de São Jorge dos Ilhéus em 1560. Foi com o passar do tempo e o desenrolar da crise da agroindústria açucareira que a produção de açúcar diminuiu. Em 1770, só existia um engenho em funcionamento.
“Só um grande engenho vai permanecer, que é o de Santana. O engenho chegou a ter 300 escravos e conseguiu se manter funcionando durante três séculos. Mas a decadência do setor ocorreu, principalmente, por causa de guerras com populações indígenas”, conta Gerson Marques, historiador e pesquisador.
Enquanto isso, o consumo de chocolate crescia em países da Europa e nos Estados Unidos. Como regiões quentes e úmidas têm clima propício para a plantação dos cacaueiros, a coroa portuguesa viu no Sul da Bahia uma grande oportunidade de investimento. O processo da transição da economia açucareira para a cacaueira não exigiu muito tempo. E, junto com ela, veio outra transição: da escravidão para o “trabalho assalariado”.
Dez reais por dia era a média que Edvaldo dos Santos ganhava para cuidar da roça de cacau de um fazendeiro, na região do Revés, no ano de 2007. Segundo ele, no final das contas. recebia pouco menos de R$ 400 por mês.
“A gente era responsável por colheita, roçagem e quebragem, das 7 h às 16 h. Ganhava diária ‘seca’, sem salário, sem nada. Não tinha carteira assinada, não tinha nada”, conta o agricultor.
Edvaldo, hoje com 41 anos, cresceu como descreve Jorge Amado, “impregnado pelo aroma das roças de cacau, que ele soube desde cedo que valia ouro para os patrões de seus pais, trabalhadores rurais que sempre ficaram com migalhas daquele festim”. O pai, nunca conheceu. Foi criado pela mãe, que a vida inteira trabalhou como meeira nas roças de outros fazendeiros.
O salário mal dava para comprar o alimento do mês, já que na roça do patrão era proibido que os meeiros plantassem hortaliças, frutas ou qualquer outro tipo de alimento, mesmo que fosse para a subsistência das famílias.
“A banana podia perder, apodrecer, cair no chão, mas os trabalhadores não podiam comer”, conta o agricultor.
Edvaldo conheceu o Movimento Estadual de Trabalhadores Assentados, Acampados e Quilombolas (Ceta) antes da ocupação do Assentamento Dois Riachões. Ficou nove meses acampado às margens da rodovia BA-652.
“O processo é lento pra você ter seu pedaço de terra, ser dono, mas foi um novo caminho pra mim. Eu vim morar num lugar que eu me sinto bem, vivo bem e o futuro é melhor, porque cada dia tenho o sonho de crescer”, conta.
O movimento é parte da Teia dos Povos, uma organização política que trabalha com um projeto amplo de territórios agroecológicos por meio da união dos povos tradicionais do Sul da Bahia.
“O processo é interagir dentro das comunidades e povos tradicionais para que a a forma de produção, a cultura, possam estar cada vez mais vivos. No mundo globalizado em que nós vivemos, a internacionalização do capital não atinge só o campo da extensão da terra, mas também atinge o campo ideológico. Os nossos jovens são cada vez mais vulneráveis ao novo, que é o novo que destrói aquilo que faz parte da nossa cultura. Então, a gente interage com as comunidades a partir da Teia dos Povos, no sentido de lutar pela defesa do território e, ao mesmo tempo, lutar para preservar e manter a cultura”, diz Luciano Ferreira da Silva.
A organização política da Teia dos Povos se baseia em quatro escolas e é introduzida desde cedo para as crianças da comunidade. A “Escola das Águas”, que dialoga com os terreiros de Candomblé e com a cultura africana; a “Escola do Arco e Flecha”, que dialoga com as comunidades indígenas; a “Escola da Floresta”, que dialoga com o bioma Mata Atlântica; com o bioma Caatinga e com os sistemas agroflorestais; e a “Escola É do Chocolate”, que representa a produção de cacau na região.
“Hoje, quando a gente traz para dentro da comunidade uma pequena fábrica de produção de chocolate, que os filhos de agricultores são os caras que fazem esse chocolate, que brincam com os cheiros, com os aromas, que brincam com o que querem naquele chocolate, a gente reafirma a nossa cultura e compreende o processo de verticalização da produção”, enfatiza Luciano.
De acordo com o historiador Gerson Marques, o cacau teve quatro fases distintas na região.No processo de “verticalização” mencionado por Luciano, os agricultores participam de todas as etapas da produção e é o quarto e último momento.
“Esse novo modelo é nascente, tem 19, 20 anos que está surgindo. Estamos no início de uma quarta fase, que verticaliza a produção e que o produtor tem controle maior sobre todas as etapas. É um modelo que valoriza o chocolate, o cacau fino e derivados.”, explica.
Linhas gerais, a “verticalização” incentiva o agricultor a atuar em todos os setores da cadeia, produzindo do fruto até o chocolate.
A vassoura de bruxa sobrevoou a Bahia
A microrregião de Ilhéus-Itabuna configurou, durante muitos anos, o principal polo de produção de cacau do Brasil. A região cacaueira – instalada desde meados do século 18 – é, essencialmente, formada por pequenos produtores e compreende mais de 250 anos de atividade.
O cacau é quase que inteiramente cultivado pelo sistema cabruca, método onde preservam-se as árvores nativas junto com o plantio do cacau e, por consequência, há maior diversidade de fauna e flora na região, o que não é mérito só do cultivo orgânico.
Porém, um fato histórico ocorrido no final dos anos 1980 levou a região cacaueira à decadência socioeconômica. A proliferação do fungo chamado ‘vassoura de bruxa’ gerou um processo de exclusão social, que, segundo Gerson Marques, “deixou entre 150 a 200 mil desempregados”.
“Existe um processo aberto pela Polícia Federal, com a ajuda da Unicamp, que concluiu por uma tese de que foi uma ação criminosa, de que a vassoura não teria chegado de forma acidental no Sul da Bahia. Mas o grande cacauicultor usou a vassoura como uma boa justificativa para a a falência, que já existia”, relata o historiador.
Ele explica que foi a concorrência com o cacau africano que fez o preço do fruto do Brasil cair no mercado internacional.
“A vassoura, ela é um marco, que vai dar um empurrão final, que vai encerrar esse ciclo e levar à falência generalizada”, conta.
Desde então, os produtores que não faliram têm tentado se reinventar, controlando a doença com fungicidas biológicos, migrando para outros segmentos, como a fabricação de chocolate e a plantação de cupuaçu, ou cultivando cacau orgânico, caso de agricultores que aderem à Rede Povos da Mata.
“Reforma agrária”: sabedoria
Depois de plantadas, as sementes do cacau são separadas do fruto e ficam 48 horas no cocho – um local escuro – com uma temperatura entre 40º e 70º. As sementes são levadas para a estufa e lá permanecem por um período que varia de quatro a quinze dias.
O assentamento produz vinte toneladas de cacau orgânico por ano, que são vendidas para empresas do setor de chocolate premium. Além disso, os agricultores participam de circuitos de comercialização regionais e do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) orgânico, onde vendem nibs de cacau e chocolates orgânicos e itens hortifrutigranjeiros.
Atualmente, o Assentamento Dois Riachões tem quatro selos de produção: o Selo de Orgânicos da Rede de Agroecologia Povos da Mata; o Selo de Orgânicos Internacional da Ecocert; a certificação do movimento Slow Food, que incentiva o consumo de comida saudável,, sustentáveis e que preservam as tradições locais; e o Selo de Indicação Geográfica Sul da Bahia, que legitima a qualidade das amêndoas e de toda a cadeia produtiva do cacau, pelo respeito ao meio ambiente e a melhora na condição de vida dos agricultores.
O assentamento é uma referência de produção de cacau orgânico e outros alimentos de base agroecológica.
“A gente ficou reconhecido como uma comunidade que cumpre a função de melhorar os municípios, de levar comida saudável para as pessoas”, destaca Luciano.
A média do salário do agricultor que vive no Assentamento Dois Riachões passou de R$ 246, em 2008, para R$ 2 mil, em 2019. Todos os trabalhadores têm cursos que os qualificam para aperfeiçoar as atividades no campo:
“Eu tenho dois certificados: como produtor orgânico, do Slow Food, e muitos outros cursos. Hoje, eu tenho como dizer ‘sou produtor e moro na reforma agrária que me trouxe sabedoria e conhecimento’”, conclui Edvaldo.