Desmontados por Bolsonaro, programas de alimentação se tornam questão de urgência em meio à pandemia
A fome causada pela crise do coronavírus matará mais gente que a própria doença no Brasil? É cedo para pensar em respostas. Mas não é cedo para se fazer a pergunta. As medidas adotadas desde o primeiro dia do governo de Jair Bolsonaro, somadas àquelas tiradas da cartola na última semana pela equipe econômica, formam uma tempestade perfeita.
O absurdo do auxílio de R$ 200 para trabalhadores informais e de R$ 261 a R$ 381 para formais só poderia ser atenuado por um funcionamento perfeito do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan). O problema é que as políticas públicas e as organizações que sobreviveram a Michel Temer foram destroçadas por Bolsonaro.
Desde a primeira hora
A agenda de alimentação é uma prioridade central do governo: a medida provisória inaugural do presidente, assinada em 1º de janeiro de 2019, começou um processo acelerado de desmonte das estruturas que tiraram o Brasil do Mapa da Fome das Nações Unidas, cinco anos antes. Foi fechado o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), que servia como um espaço de interlocução entre a sociedade e a Presidência da República. As políticas públicas atreladas a essa agenda foram oficial ou extraoficialmente encerradas.
A crise do coronavírus acelerou em alguns anos a chegada das consequências. Em um texto publicado em novembro de 2019 já alertávamos que, diante de uma situação emergencial, os estoques públicos de alimentos não aguentariam. Não era preciso ser genial para chegar a essa conclusão: simplesmente demos ouvidos aos técnicos da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Algo que o governo não fez.
Sem estoques
Organizações da sociedade civil têm cobrado que se dê prioridade à distribuição de cestas básicas às pessoas mais pobres. O problema é que os governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro praticamente zeraram os estoques estratégicos de alimentos, justamente o passo imprescindível para que se possa compor as cestas.
Os estoques estratégicos viabilizam um programa fundamental em momentos de crise: a Política de Garantia de Preços Mínimos (PGPM). Quando há uma possibilidade de desabastecimento no horizonte, a Conab usa o programa para vender parte dos estoques a custo baixo e controlar os preços do mercado. Em tempos de oferta elevada, garante valores competitivos para que os pequenos produtores não sofram na mão dos grandes compradores. Sem estoques públicos, a população fica na mão de quem vende – pelo preço que bem entender.
Em dezembro do ano passado, o país não tinha praticamente nada de estoques de feijão, num processo de queda que vem desde 2015. No caso do milho, os estoques caíram pela metade ao longo do primeiro ano de Bolsonaro. A armazenagem do grão, fundamental para a alimentação de animais, segue em queda livre, e agora figura em 240 mil toneladas – 5% do que tinha no começo da década. O detalhe é que 95% estão concentrados no Mato Grosso, o que, em caso de dificuldade de circulação, é uma péssima notícia. Em arroz, havia 20 mil toneladas, contra 463 mil em 2012.
Com isso, a distribuição de cestas é muito difícil nesse momento, salvo que o governo pense em apelar para biscoitos, salgadinhos, o miojo de que o presidente da República tanto gosta. Recompor os estoques com urgência demandaria que a população fosse a prioridade do governo – nada na postura de Paulo Guedes, ministro da Economia, faz crer que seja. Em 2019, segundo a Conab, na Revista Indicadores da Agropecuária, foram distribuídas apenas 81 toneladas de alimentos para 9 entidades. Para que se tenha uma ideia, foram 2,3 milhões de cestas básicas entre 2015 e 2018.
A lenda do Mito
Para que esses estoques sejam formados, o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA) precisa funcionar. Porém, o PAA vem ladeira abaixo há alguns anos, e agora, na hora H, é praticamente uma lenda. Essa iniciativa é uma típica estratégia de ganha-ganha: a compra protege os agricultores com mais dificuldade de encontrar mercado e assegura abastecimento alimentar às famílias mais vulneráveis.
Essa semana, um conjunto de entidades encabeçadas pelo Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar publicou um conjunto completo de medidas que deveriam ser adotadas para conter as consequências sociais e econômicas da pandemia. Entre elas estão a retomada do PAA, com prioridade para a doação a pessoas de baixa renda, e o uso de mecanismos de controle de preços dos alimentos básicos.
Em 2019, as compras do PAA para doação beneficiaram somente 4.792 agricultores, num total de R$ 32 milhões. É um décimo do número de beneficiados em 2014, quando R$ 286 milhões foram distribuídos. E 5% de 2012, quando o governo comprou de 95 mil agricultores um total de 213 mil toneladas apenas para doação, desembolsando quase R$ 400 milhões.
Não faz sentido
No ano passado, o governo começou a desmontar os estoques públicos da Conab sob a alegação de economizar em torno de R$ 10 milhões ao ano (só de cartões corporativos do Planalto gasta-se tanto quanto). Com isso, 27 das 92 estruturas da companhia foram fechadas ou vendidas. A ideia é de que o Estado não precisa atuar nas áreas onde o agronegócio apresenta eficiência. O problema que Tereza Cristina, da Agricultura, não pretende enxergar é que mesmo em áreas do agronegócio há pequenos agricultores que precisam acessar esses estoques, seja para semente, para alimentar animais, para comercializar.
Em agosto do ano passado, conversamos sobre a venda dos armazéns com o agrônomo Luis Carlos Guedes Pinto, ministro da agricultura durante o governo Lula e um dos idealizadores do PAA. “Sou absolutamente contrário, não faz sentido”, nos disse. “Essa é a lógica do atual governo, no qual o interesse público não é o principal. Parte-se do pressuposto equivocado de que a iniciativa privada resolve tudo.”
Em caso de colapso
Documentos que revelamos no ano passado mostram a contrariedade absoluta de vários departamentos técnicos da Conab com a decisão de se desfazer dos estoques. As análises expõem que, diante de um imprevisto, algo muito comum quando estamos falando de agricultura, o Brasil poderia ter um sério problema. Ninguém imaginava algo da magnitude do coronavírus.
Durante a greve dos caminhoneiros de maio de 2018, se não fossem os estoques de milho da Conab, o Espírito Santo, um dos maiores produtores de frangos e ovos do país, teria vivido um colapso, como nos relatou um técnico. A crise do coronavírus faz prever, em um cenário realista, fronteiras fechadas por alguns meses e restrições de circulação dentro do território nacional. É difícil projetar o tamanho do estrago.
Para alimentar os animais, é fundamental o Programa de Vendas em Balcão. No ano passado, 19 mil produtores acessaram essa iniciativa, num total de 135 mil toneladas. Em termos de peso comercializado, não houve uma mudança significativa, salvo pelo período de ápice, na metade da década (em 2013, foram 719 mil toneladas para 207 mil produtores). Mas o programa claramente passou a chegar a menos produtores, o que já pode ser um reflexo do fechamento dos estoques.